Fragmento Interno

As cortinas cheiravam a pastilha valda. O médico entrou, apalpou primeiramente minha banha. A barriga era lasciva a cada toque dos dedos dele. Me virou de costas, investigou meu ânus como faria Genê. Eu era trouxa de lavadeira, suja e com orgulho massacrado. Meus olhos acompanhavam a tragédia humana. Ele cobriu-me novamente e sem me olhar disse: - “Será esta tarde. A enfermeira passará com a papelada para que você possa assinar. Já lhe expliquei tudo, todos os motivos e os objetivos” .

Ele saiu. Aquele estetoscópio olhava-me pelas costas. Pensei em gesticular um palavrão, mas de nada adiantaria. A porta se fechou. O quarto cheirava a águarrás, tudo branco, limpo, estéreo, uma escrotice asseada. Olhei a janela, serei o mesmo depois, serei ainda, em algum lugar visitarei meus sonhos desta tarde morna. Encurvei-me mais na cama, queria ver o chão, ver em que altura estava, não tive medo de cair. A placa metálica lisa e dura, o colchão era estreito, minha barriga quase se alastrava pelas bordas. Já ali — há uma noite, depois de tantos exames, o vexame da conclusão médica; não que eu seja machão, mas da individualidade do homem que estou defendendo, não culpo o prazer por isso, mas tenho que me preservar, não que eu seja virgem, mas expor as ferramentas que não se controlam, expor-se a dedos tão grosseiros, não é a mesma sensação que quero, isto seria uma impossibilidade, mas de tamanha aflição, ser objeto sem ser desejado. A enfermeira entra no quarto, já havia pensado na noite passada. Rubriquei me convencendo da precisão. Ela saiu mostrando o seu traseiro chapado, suas pernas finas, o cabelo era de mulher que pratica telequete na tevê. Sonhei muitas vezes com enfermeiras hollywoodianas, mas agora o prato é outro, como comida de hospital: insossa.

Virei para o lado, custei a descobrir essa técnica, mas não é tão difícil assim, basta um pouco de malabarismo. Proibi meus parentes de me vistarem, já basta ser chacota de estetoscópio, virar vocabulário patológico. Não queria ver diabos parentais, minha forma, meu comportamento, meu medos. Deus é pai e por isso mesmo me entendo muito mal com ele, ter uma barreira intransponível já é o bastante, vim sozinho, ardendo em pé no ônibus. Vim como trabalhador, como vadio vagabundo, sou posseiro dos meus ímpetos, não venham com reforma agrária para cima de moá. Ninguém me fiscaliza agora, sou o braço de cada ar que está aqui, possuo o tempo e possuirei talvez o sono incomparável.

Anestesia já faz efeito, embaralho-me nas luzes, a maca desliza na vertente horizontal, os tetos são os mesmos, vejo algumas pessoas, nenhuma delas me olha, sou corpo; massa e gravidade, sou peso num bloco de cimento, estão me levando, a vista está quase toda negra, o sono se mostra irresistível, as pálpebras deitam por cima de minhas luas, já não vejo, sou sentido quase nulo, e de quase me perturbo, flutuo em nuvens, não sei quando vou acordar, tenho vontade de gritar, me falta articulação, pensei em parar o processo, mas, como? O sono me enforca, rodopio pela mente, não atravesso o bloco, a multidão vaia o centroavante, Beatles, Sônia Braga, que mulher, já despeço, de mim espero um sorriso ao acordar.

Tudo me dói e ainda não acordei, pelo menos penso que não. Abro os olhos, não devia tê-los aberto, não devia, pensei que não tinha mais olhos. Estaria eu dormindo ainda, estaria ainda vivo. Alguma coisa preta na minha frente, meu braço esburacado de agulhas e mangueiras, olhei para a coisa à minha frente, na minha frente, era um vulto negro, ainda não distinguia o que era; estava eu no éden? Estava eu em algum lugar, meu corpo ainda existiria, toquei meu pinto com a mão, tudo em ordem, tenho carne, tenho sexo, sou humano. A vista veio se firmando, no gelo do quarto, o vulto foi tomando forma de gente, não sei se pode dizer isto de um padre, mas deixa para lá, agora o que me perturba é o que este indivíduo está fazendo aqui, me espia como camaleão, como serpente a um rato, não me tornei ainda um animal tão desprezível. Olho para sua roupa, além do negro estava com uma faixa roxa, o que significa isso, estou vivo, ainda sou um repórter e ele me entrevista com um olhar de santa inquisição, não conseguia falar, mas ele me olhava assim como eu o olho. No quarto, eu e a besta, o próprio diabo queria me pregar uma peça. Uma voz ouvi: “Quase se despediu daqui. Kulho você é um touro”. Ele disse meu nome, eu tenho ouvido e ainda me xinga, ele, é claro, pensou que eu iria morrer, mas não morri, posso ver seu óculos grandão, o rosto inchado, deve ter chorado por mim, gastou lágrimas à toa, idiota, deus não quis me levar e nem eu queria ir com ele. Alguém entra no meu quarto, devia estar do outro lado da colina, pois não vejo ninguém com forma humana, ouço apenas a porta se fechar, parece o som de uma bomba atômica, tudo parece tão estrondoso, não me lembro de nada, não me lembro nem de que acordei, mas sou vigília agora. Ele vem vestido de branco, o padre se vai, nem se despediu. Era meu médico, falou uma porção de coisas, mas só entendi a última frase “Você vai ficar bom”. Estive ruim, realmente estive. Quiseram me matar, mas estou aqui. Ele se virou acenando. Pensei na redação, o que aqueles cossacos estariam fazendo, aposto que já colocaram alguém no meu lugar, arrancaram a foto de minha loura preferida, a minha mesa deve estar um lixo de tão arrumada, mas eles me pagam, todos eles, sinto o peito aquecer. Há dias que não como, pelo menos não me lembro. Até que um lombo cairia bem, umas espigas de milho cozidas, uma farofa italiana e, para fechar o menu, uma trepada com minha secretária, aquela bunda já me fez muito feliz, o sono já me volta a seduzir, não quero dormir, não quero sonhar com lobos comendo minha barriga, minha fofa barriga.

Perfeitamente. Enxergo perfeitamente, o quarto é o mesmo, frio, mais ácido de tanta limpeza. Uma enfermeira entra, parece ser mais atraente do que a outra, me traz um prato de sopa, parece lavage maggi, bebo sugando cada colherada, que intransigência a minha de aceitar, perdi minha teimosia feliniana, ela tira minha temperatura, me liberta das agulhas, depois se vai. Meu quarto virou posto de B.N.H., muita discussão sobre o caso, sobre a recuperação financeira. Cada dia que passa minha coordenação de idéias melhora, os médicos discutem meu caso na minha presença, nada entendo, o vocabulário médico num todo é de grande pressão, é vampiro de minha gordura. Não aguentava mais sopa. Um mês depois da operação, estou cansado de ficar deitado, as forças do tédio crescem.

Evaldo entrou na sala, na mão um caderno, olhou para mim, discursou todo o tratamento para no final dizer o bem-vindo “Você está de alta, aqui estão minhas recomendações, siga-as. Passar bem”. Saiu do quarto como um grilo em noite do luar. Levantei da cama, da casa, fui ao banheiro, troquei de roupa. Não li o papel que Evaldo me deu, joguei aquela folha fora e com ela toda minha raiva masturbada na cabeça se foi pela descarga.

Desci de elevador, era tarde morna das três, a tarde se divide em duas: até as três, tarde morna, após as três, tarde litro, a imensidão morena nos olhos de um sol que quer se deitar. A rua estava clara, céu rugoso, não sabia para onde ir, não sabia para ir, se iria a algum lugar, o que fazer. Trabalhar seria responsabilidade demais, ir para casa, estou cansado de paredes; ar livre, sem trânsito, é disso que um paciente precisa. Sou um repórter, esta alma indagante precisa ver coisas, carros, gente, cinema, sexo, mulheres, criança nem com as mães, preciso ver o terror, relatar para mim mesmo todo o acontecido, tá na hora da andar.

Isabel de decote largo, que seios, me cumprimentou com aquele calor de buceta com saudade, olhei para ela, é claro que no decorrer da conversa não falei que tinha saído do hospital, iria deixá-la insegura, as insinuações, o copo de uísque ao meu lado, ela com seu cabelo ruivo, a boca permanentemente molhada pelo gim, o cigarro na mão e nós dois num bar do centro, numa tarde litro, a falar bobagem, a esperar, pelo menos eu, um beijo, um sarro, um gozo. Um mês isolado e muita fome de tanta coisa. Comemos, bebemos, eu esperava como um rato, este papel faço bem, gosto da podridão noviça, sou homem que tem papel para qualquer texto, sou homem que não sabe nada sobre o amor, nunca amei, a mais doce das laranjas, beija-flor sou, sou categoricamente mesquinho, um rato é verdade, não me minto, nem também às mulheres, mas ser um pouco do que o batonzinho espera foi sempre minha linha; sei do vazio que isso dá, toda noite percebo em minhas rugas a falta de ternura, me acostumei, minha gordura, minha casca, minha realeza pútrida, e daí, sem essa de mudar, já é tarde, amor é para quem tem, quem se criou com chance, fui bolão na escola, gordão na faculdade, tadinho bicha no exército, e geléia cara de pau no serviço, agora não dá mais, Isabel se quiser, serei um rato, mas roerei cada miligrama das suas fantasias, o papel é este, já sem medo da minha consciência enfrento tudo por um pouco de tesão agregado.

Como esperado, rumamos ao motel, já na cama, ela retirando de mim toda a salinidade, dando todo o seu ser chulo, e assim, o mais mereço, que mais, nada mais. Eu ali a olhar, a nave nua, a melar meus olhos de seios, a esperar pelo túnel, e o mais poderia esperar, mais o que esperar, amor, espero como jacarandá, a devastação será completa. Os corpos se embolavam, se embalavam, tudo bem, eu com a minha sujeira a lamber ventre e vale, crista e punho, foi lá quando tudo começaria como etapa nova, a penetração se isolou do meu pinto, amoleceu, Isabel encurvou-se de vermelho, eu muleta de meu desejo, nada para falar, tentar de novo, sacar um álibi, tudo seria um lugar sem teto, tive asco do asco de mim mesmo, não vergonha, asco do asco, pelo que eu sou, isto representa a perda da minha única fonte, asco do meu asco que sou, falta de amor, não poderia faltar pinto, sou eunuco, gordo eunuco, demais, gordo eunuco sujo, asco do asco, asco do meu asco, isto sou eu, sou; repórter faça uma matéria da miséria, redija sem teor de repressão, redija os seios ardentes decepcionados, cavei, experimentei, não me arrependo, cumpri como se promete, um tipo de vida, sou o completo, sou inteiro, asco do meu asco e amor. Saí para o banheiro, tiro uma sem resfolegar, tiro outra para me torturar, Isabel aparece na porta do banheiro, ela me vê gozar, lambe as últimas gotas, deixa-se se penetrar na boca, eu ali, pêlos, guimba, guimba de cinzeiro, lugar de honra, escolher é ser ato, apto, não reclamo, como posso, flutuo em nuvens. Me visto, ela me acompanha, a rua é noite, voltar para casa não, Isabel já tinha ido, jantaria com seu marido, estou na rua, permanecerei nela. Fui para um bar, a beber, bebia uísque sem gelo. O personagem me atravessou, agora me relato.

Pessoa física completa, pessoa mental esperta, direção de vida, xinologia, mesmo assim, sou vidro cheio, recolhi meus cacos na cama, o amor algumas vezes me faz falta, é quando perco atitude do meu mal; uma mulher senta na minha mesa, provavelmente uma prostituta, ainda não sei, é da minha laia, com certeza. Onde eu estava, estava a pensar no que me propus de ser caçador de prazer, sem reserva de papel, sem me reservar de nada, a busca da satisfação, mesmo que para isto tenha eu ser a pulga da peste negra. A mulher puxa pano, encosta sua mão na minha coxa, se faz preço, tudo tão rápido como mercadoria de camelô, não percebo, mas já estou lá a andar, com a mão na bunda dela, ela me direciona, subimos uma escada esguia, o quarto se abre, ela me pede o dinheiro, justo dinheiro, tudo começa, tudo faço, a hora se passa, ela tenta se levantar, digo que dinheiro não falta, retorna o retorno do humor caloroso e já não quero mais nada, a noite passa, já me sinto na rua, descia as escadas, ainda bêbado trajado de pobreza, me lambuzo na rua, o sol a raiar, eu, andar, preciso, o motivo de tudo me olha, não dou atenção, ao atravessar uma rua, uma simples rua, me dou conta dos contos, de tudo, dou conta do máximo que sou, ao máximo que fui, de limite realmente não vivo, a noite se foi, o dia é grande, abro a porta do meu apartamento, tudo na luxúria de um repórter solteiro, uma tremenda zona, vou tomar banho, a água quente me amolece, às duas pego serviço, deito na cama, tudo não passa de um sonho, pensar barato é bom, descompromete, mas não venha com essa jovem! Se você quiser, não queira, me levanto, daí em diante, já não narro nada, o jornal no qual trabalho provavelmente terminará a matéria; eu depois do hospital, me operei na rua, infecção geral, emergência generalizada. Acordei estendido no chão da cozinha, pessoas me rodeavam, uma panela preta fumegava no alpendre, um cheiro de gás melancólico, a ambulância zuniu lá fora, não era polícia, estava eu lúcido, mas em respeito a mim mesmo, desmaiei... quando durmo, apodero de mim, por uma única chance, desmaiei.

Toya Libânio
Enviado por Toya Libânio em 24/01/2019
Reeditado em 24/01/2019
Código do texto: T6558013
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