Reminiscências

Havia no céu uma alegria no rosto da manhã. O mar devolvia um dos seus braços vultuosos. Não havia praia que não desmanchasse as areias do lugar. As gaivotas acreditavam que ali existiam os peixes. Por sobre os coqueiros habitavam ninhos; sinais eu vi e ouvi. A casa de meus pais era tamanha, quadrinho na memória, fotograma da história de família, álbum de retrato antigo, sinais do tempo sinistro ziguezagueando pela calçada de uma escola maldita, perdida e debilmente deseducada. Nas lembranças de minha infância os pecados corriqueiros tornar-se-iam remorsos e as finalidades deles muito tempo depois eu descobriria em puras e impuras reminiscências. Existia algumas moléculas de água no banheiro arredondado e limpo. As sentinelas de vidro acesas ainda no começo da manhã diziam para tranquila e atrasada existência, viva em sinais articulados na cozinha, como a noite havia virado dia. Tudo isso somava-se com a imagem de minha mãe deitada, feliz na cama de sábado, atravessada de travesseiros e marido, era meu pai velozmente alegre ora essa ou ora outra, neste trajeto inigualável da família se escondia as primeiras horas do dia, da noite, da vida do meu presente ao meu futuro, repleto de um passado indeciso e afogado pela escola sem raíz nenhuma, inebriavelmente militar. Naquela época sem democracia, onde as ruas eram armas de pequenos tiranos, não que um dia a diferença viria essencialmente valer, mas em se tratando de palavras e trabalho, sobre a dignidade e a liberdade pouco se pode acrescentar enquanto a existência delas estiverem sob a investigação econômica, toda observação fica contaminada e todo o desenvolvimento ainda é áspero, desumano, ridículo, fictício, impróprio. Ao terminar de fritar aqueles ovos contaminados de antibiótico e de medicina, tudo permaneceria igual, a calada e a noite voltariam sempre a isolar o mundo meu, do mundo dos outros; talvez tudo fosse objeto de amor; pequeno amor é verdade, mas tanta semelhança e tanta diferença fazia em mim ser amado por aquela mulher. Nas sonoras têmporas do armário, na garagem inimaginável para tantas roupas, ocupadas pelas minhas poucas que eu tinha, que haveria de ter, ainda sonhava, mesmo que fosse por um breve século piscante dos meus olhos, que ainda teria como Franscisco, uma única veste, uma pele única de animal que ao passar do tempo é tantas como só o tempo pode bordar. O corredor que antes num incansável apartamento era o meu pequeno estádio, bombom dos meus sonhos de futebol que me acompanhariam pela imaginação para sempre, agora o mesmo corredor era a fralde vasta da imensidão feliz de viver num pátio de aeroporto, taxiando transeuntes da piscina e da vida, passageiros de alegria descontente porque haveria de ter fim, e assim na alegria do fim o sol limitado deixava na sombra a nudez da água azul para as noites de lua. E tudo isso deitava no teto da cama que ascendia em vivas ondas as minhas tão amadas bravuras do mar. Minha mãe adiava este acordar ainda um pouco mais e preguiçosamente, consumindo o desprezo pelas rugas sem deixar de cultivar a vida e o viver. Na sala, formada de abertura, espalhada de parede e telhado, o ar sonoro recobria o bolo de minha infância aprisionada de clara sem a neve doce da liberdade, e tendo, no assoalho as lindas tábuas, paralelas de uma geometria paterna, onde tudo deduzia da simples reta, de um pequenino plano, de um único ponto se locomovia na fábrica abstrata raciocínios poéticos. Eu crescia ultrapassando a métrica da família. O amor que me acompanhava alegremente pelas escadas até a cozinha estava acordando quase ao meio-dia. O sol incetava verão. Nada disso fluía rapidamente, a metamorfose do sono para a vigília era incorporada melindrosamente. Na piscina, ambição de interior, fundada num lago sem aresta delimitada, onde a turbidez se apresentava bandeirantemente, ali minha mãe temia pelas nossas vidas na travessia do lago, enquanto que a geometria de papai nos levava aos confins dele, sem perdoar o medo da morte, sem perdoar a aritmia do coração, sem perdoar o amor que pálido e retido muitas vezes faz dos filhos bonecos velhos e sem graça, mas este defeito ele não tinha, cabia a mamãe o recato do medo, papai pelo contrário, magro e visçoso nos lançava em voz alta a travessia pela vida, o perigo prazer de viver ele vivia de longe, mas nem por isso perdia dos seus olhos a miragem clara do deserto percorrido pelo homem. Assim a água azul da piscina devolvia a ambos uma tranquilidade soberana, reunia a festa interiorana com a faticidade do viver.

Tumultuado no travesseiro aceso.

A rua recentemente viva, sem placas, desenvolvia na cidade ainda que, provisioriamente, um bairro fantasma. Ouvia na tarde de domingo rádios, minhas milhares mulheres todas as ruas, era segunda-feira com roupa suja para se lavar e a favela olhava fixamente o céu que descobria nos meus olhos a única verdade que nunca deixei de acreditar: o que é bonito de se ver nem sempre é bonito de se viver.

O carro desceu correndo a vida. Meus pés guiavam o rolimã de madeira até a curva que capotou-me. Deixei para trás as inverdades de família. Já olhava para cada um dos entes com desconfiança, e não percebia mais diferença entre os rostos familiares dos rostos estranhos. Transladar entre os seios era a saída que mais me matava. Vieram os livros me fazer companhia, descoberta tardia e significativa. Os livros não substituíram a esfera, a música não substitui meu pai. O homem que fiquei sendo não conheceu grandes irmãos, e a beleza de tudo não se encontrava ali, quando se está próximo de morrer o que mais se deseja é viver, intensamente, calorosamente. O que me matava era a geladeira, a luz, a água, o vento, o riso, a porta, o chão parado, a chuva, o carro. A terra do jardim tinha um cheiro tão forte ao ser molhada. O café cor de jacarandá reluzia na altura do meu nariz e eu enxergava a multidão na vidraça, os gritos e as luzes piscantes, havia na vida uma ternura oculta, algo que se esconde como o pedaço de chocolate no café, e é só ao mexer ou chegar ao final da xícara para se ver o afeto. O que acontece não é quadrado, a bola corre deslindamente pelo campo de qualquer olhar. A claridade não tem sentimentos impróprios, improváveis. O que era improvável na minha família era saber a que horas a cozinha dormiria, quando a água deixaria de correr o leito dos canos.

Toya Libânio
Enviado por Toya Libânio em 24/01/2019
Código do texto: T6558017
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