Uma experiência com o fogo

Faltavam ainda algumas semanas para o início do inverno, mas já se sentia um frio considerável na cidade e foi com alívio que cheguei em casa, ainda tremendo por causa do vento congelante. Minha esposa e meus filhos não haviam chegado e me dirigi à lareira para iniciar um fogo, a fim de me esquentar um pouco. Eu estava distraído e, quando percebi, o fogo havia atingido as minhas calças. Isso não me assustou de nenhuma maneira. Em verdade, tudo o que senti naquele momento foi uma ligeira irritação por eu ter sido tão desatento. Naturalmente, tentei apagar o fogo, extinguindo as chamas com as mãos, pois o fogo ainda estava no início. Entretanto, a minha tentativa teve o efeito contrário, pois o vento extra fez com que o fogo crescesse e se deslocasse mais rápido, enquanto subia para cima de mim. Num instante, não apenas as minhas calças, mas também o meu casaco começava a incendiar.

Ainda hoje me espanta o fato de eu não ter, de nenhuma maneira, sentido medo diante daquela situação. Continuava tentando apagar as chamas por meio das minhas mãos, é verdade, mas não havia em mim o desespero que se imaginaria diante de perigo tão evidente. De certa forma, era como se eu fosse um expectador do que se passava comigo mesmo. Eu nem mesmo cheguei a gritar ou chamar por ajuda, o que pouco adiantaria, pois, além de estar sozinho, os vizinhos mais próximos ainda viviam longe demais.

Em algum momento, eu me dei conta de que os meus esforços eram insuficientes para controlar o fogo. As chamas haviam destruído a roupa sintética e começavam a alcançar o meu rosto. Na época, eu usava um cabelo relativamente comprido, e foi por ele que o fogo continuou a sua marcha feroz. Eu já tinha muita dificuldade para respirar, sentia que não demoraria até perder a consciência. Então eu disse para mim mesmo: “Desista! Chegou a sua hora de morrer!”. Afinal, respirar era impossível e ninguém viria em meu socorro. Passei, então, a aceitar aquele desfecho. Esse momento não foi acompanhado de nenhuma angústia. Ao contrário, era como se eu estivesse tirando um grande peso das minhas costas. Senti-me aliviado e tive certeza de que tudo estava do jeito que tinha que ser, inclusive a minha morte.

Senti então uma grande paz e tive a impressão de alcançar aquilo que seria o “absoluto”, e mesmo a “eternidade”. Honestamente, não é fácil colocar em palavras o que senti naquele brevíssimo instante. Foi tudo muito rápido, como se pode imaginar, mas de algum modo, no meio daquelas chamas, o tempo se comportava de maneira diferente. Analisando hoje, eu mesmo fico admirado pelo fato de tanta coisa ter passado pela minha cabeça e de tantas variações na disposição de espírito terem ocorrido naquela hora. Era como se eu tivesse escapado do jugo do tempo.

O fato é que eu cheguei, nos estágios finais, a uma grande compreensão a respeito de mim mesmo e do Universo. Eu estava interiormente realizado, pensei na vida que havia vivido e achei que ela havia sido boa, do jeito que eu havia vivido. Não havia o que alterar, não havia nada para completar. Não me importava em nada o fato de morrer ainda jovem.

Eu simplesmente abri mão do controle sobre a minha vida e deixei que acontecesse o que tinha que acontecer. Meu corpo cambaleava, enquanto meus braços esvoaçavam, já sem nenhum domínio. Tudo isso eu acompanhava com indiferença. Era como se o meu próprio corpo já não me dissesse respeito. Era chegada a hora da minha morte e eu a aceitava.

Contudo, em seguida o meu filho adolescente assomou à porta. Rapidamente, ele se deu conta do que acontecia. Correu até mim, empurrou-me para o chão e extinguiu as chamas usando um tapete. Depois chamou os médicos. Eu via os seus esforços, mas ainda era com os olhos de um observador. Não tinha nenhum interesse especial pela minha pessoa.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 10/02/2019
Reeditado em 10/02/2019
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