Vi o comboio Nazista
Coincidentemente o dia clareou cedo e ensolarado naquela manhã de inverno, uma coincidência nauseante que agrediu meu estômago no instante exato que vislumbrei a cena por entre as frestas nas ruínas que nos envolviam.
Comigo estavam quatro civis, jovens cristãos sobreviventes ao recente esforço alemão para exterminar a comunidade Judaico-cristã polonesa, agora obrigada a coexistir com os escombros do país e a se esconder entre as sombras, debaixo do frio e da fome. Entretanto, somente eu estava desperto para presenciar a procissão diabólica adiante de nós. Eles dormiam empilhados num canto menos atingido pelo vento congelante e a neve que caíra interruptamente naquela madrugada, escondidos aos olhos que perambulavam nas redondezas; dos rasgos nos trapos de dormir que os cobriam, via-se o semblante da guerra: a fome.
Meu semblante não diferia do deles, estávamos todos famintos, o que sobrara em nossos corpos eram ossos precariamente envoltos por músculos e pele, nada mais; nossas veias percorriam os membros como raízes semimortas.
E aquela cena repugnava-me, a cena além dos escombros do prédio que resguardava minha presença no local e tardava minha morte quase iminente. Espreitava a movimentação de um comboio recém-chegado à praça central do que, no passado, chamei de lar. A ininterrupta série de bombardeios do último ano havia usurpado a beleza da cidade de Varsóvia e transformando-a em cinzas, fogo e morte.
Os praças do comboio não partilhavam de nosso sofrimento, muito menos os oficiais de alta patente que me pareciam os grandes responsáveis pela movimentação matinal daquela tropa, trazendo-a - ao que percebi - desde fora da Polônia de volta à cidade há muito rendida ao jugo Hitlerista. Um movimento sem embasamento militar que primeiro me instigou e em seguida demonstrou o cinismo e a crueldade nazista. Marchavam cantarolando aos berros, gargalhavam entre si em espírito despreocupado e alegre. Apesar de o comboio ostentar a presença de caminhões e meia dúzia de tanques panzer os militares flanqueavam os veículos a pé, a perversidade cintilava em seus olhos, demonstravam a cada passo o prazer em pisotear o humilhado povo polonês.
Instalaram-se sobre a pequena esplanada antigamente cercada por comércios, na distância de aproximadamente cinquenta metros de onde observava. Vi descer dos caminhões quatro dezenas de mulheres trajadas com roupas novas e limpas, tão sorridentes quanto os déspotas que nos assassinaram. Os últimos caminhões da frota carregavam não gente, mas toda a sorte de coisas; logo que encostaram às imediações da esplanada os praças se puseram a descarregar os veículos, a afobação alegre acentuava o quão deturpada, corroída diabolicamente a consciência daqueles seres humanos estava. Armou-se no local em pouco tempo o aspecto de uma festa, com mesas, cadeiras, rodas de dança regada à música típica e um tentador banquete de pão, carnes e cerveja. O festim germânico, a chacota à Polônia, a humilhação do povo dominado e destruído; o riso perverso do carrasco, a fome, o desespero e morte do subjugado.
Tirei meu rosto da fresta que dava vista à celebração nazista, inundado por impotência, desespero, fraqueza e fome; carreguei meus olhos de encontro aos jovens semimortos que dormiam empilhados..., e chorei.
Chorei o choro amargo da desilusão, do abandono e do desespero. Solucei e envolvi meus joelhos com os braços.
O dia ensolarado e belo que havia de resgatar nossa esperança se ofuscou, o sofrimento tardaria a ir embora da Polônia, o céu continuaria tempestuoso enquanto o nazismo fizesse de nosso lar um tapete sob suas botas.
Minha face clama aos prantos até que seja chegada a hora e eu durma o sono de sossego em meu túmulo.