Ramiro da Cartucheira

Então eu vou lhe contar. São quase cinquenta anos guardando isso e não posso mais. Quiçá me entendam – os dois – por retirar de profundezas fundas o que lhe relatarei agora. Se não, pelo menos terei a consciência um pouco mais leve, que de cansado estou por carregá-la.

Tudo começou nas férias que passei em casa de minha avó, nos Olhos D’água. Mês de janeiro. Chuva e barro vermelho. Era o fim do mês, no aproximar do retorno às aulas quando peguei aquele caminhão leiteiro, no Bom Jesus.

Menino em roça não conta, por isso não me notaram de início. A conversa girava séria, com semblantes duros. O assunto: Ramiro da Cartucheira. Alguém o vira nas bandas de Delfinópolis, depois do Morro do Níquel. Prestei atenção àquela conversa, ainda que temeroso, parecendo adivinhar um rebuliço que viria e que mudaria a vida de nós – os três.

Chamaram-me à conversa, por verem meu interesse. Não os conhecia. Nunca mais os vi. Em noite de sonhos ruins já cheguei a imaginá-los como assombrações – Deus nos guarde! Sentei-me mais próximo, ajeitando-me sobre as latas de leite. E me contaram as desventuras do famigerado bandido. Roubos, assassinatos de famílias inteiras para os lados de Franca, sempre com um tiro no peito. Também a pauladas, a machadadas. Sua fama correra as redondezas do Carmo à Capetinga, de Piuí a Guaxupé. Eu guardava cada detalhe, enquanto se me mudava o medo em uma estranha curiosidade por saber mais daquele bandido.

Foi no intervalo do primeiro dia de aula que revelei aquilo ao Testa e ao Vaguinho. Este, assustado; aquele, admirado, mais que eu. De olhos parados, fitando distante, disse: “Imagina a gente pegando esse bandido?” A ideia absurda, tinha lá seu sentido. É que muitos além da polícia já haviam tentado capturá-lo, mas em vão. Admitimos após vários bate-bocas que não era loucura pensar naquilo. E criança lá tem juízo? Ora. Devia de ter filme de bang-bang na televisão não. A gente passa a gostar do Django. E depois?

Contei que no caminho me disseram que ele vinha para essas bandas de cá. Pessoas o viram perto de Itaú, sinal de que vinha, amoitando-se. Se não fosse para a Ventania e nem para os lados de Capitólio? “Então ele vem pra cá!”, exclamou o Testa, animado não sei com o quê.

Vaguinho se desfez do emburramento. Perguntou mais detalhes da conversa que ouvira no caminhão. “Eles conhecem o Ramiro!”, eu, experimentando o prazer de ter a atenção jamais conseguida dos dois. “O cujo anda de noite” – eu com voz sussurrante –, “antes da meia-noite, a pé”. Falava devagar, guardando o suspense ao máximo. Já ia terminar o intervalo. “Ele tem um par de esporas que tine; dá pra ouvir de longe”.

Era tudo o que precisavam saber. Eu não entendi aquela conclusão de Testa: “Tenho um plano!”. Pegar o Ramiro? Devíamos estar loucos. Estávamos. Mas a idéia ganhou força, mesmo com o medo meu e a cautela de Vaguinho. “Tem outra informação importante”, retomei ao final da aula a conversa. “Diz que o Ramiro costuma andar uns cinco dias e se esconder no mato por mais dez”. Por isso ele aparecia e desaparecia, foi o que os dois homens disseram.

Se passara por Itaú, cinco dias, mais dez, uns dois de margem de erro, batata! Ele passaria pela Boa Vista entre o dia 12 e 16. Era o tempo que tínhamos para montar a armadilha. O estranho é que não havia comentário por ali sobre o Ramiro. Mas os homens do caminhão pareciam certos. Era nossa vantagem: ninguém sabia da vinda do Ramiro. “Mas não tínhamos que avisar as pessoas?”. Talvez, mas aí nosso plano ia para o brejo.

Vaguinho era o cabeça, Testa era o agitador. Eu, o medroso. Fui aos poucos me arrependendo de te começado aquilo. Imaginava que se orgulhariam de mim por contar histórias tão aventurosas, queria ter aquela atenção deles. Mas pegar o Ramiro? Que é isso?! Fui no embalo, tinha que ir.

O plano era simples – simples coisa nenhuma! A grande árvore de óleo na curva da estrada que vai para a Cachoeira tinha um galho maior que cobria a estrada. Ele tinha que passar por ali, quem sabe indo para o Guapé ou para Ilicínea. Se serrássemos até quase partir e o amarrássemos, teríamos a arapuca: na hora em que ele passasse, o facão cortaria a corda e acertaríamos em cheio o tal. O plano era perfeito! Era? Era não. Em verdade, uma temeridade. E eu que nem pegar passarinho conseguia.

O que podia acontecer – iludidos pensávamos – era que Ramiro morresse... Estremecemos. E se isso? Testa ficou firme: “Que seja!”. Vaguinho, calculista: “É o risco”. Eu não disse nada. Suspensa até amanhã a idéia.

Na escola, trocamos olhares medrosos, curiosos, ora convictos. Fechado o veredito na hora do recreio: como tanto mal fizera o dito Ramiro, se morresse, não seria pecado. Livres estaríamos da ira de Deus. Seria como uma missão secreta, ninguém saberia a identidade do assassino. Das duas, uma: se ele vivesse, estaria preso no galho e buscaríamos o pai de Testa, que morava mais perto, para testemunho; se morresse, voltaríamos escondidos para a casa e guardaríamos o segredo para sempre, orgulhosos. Tranqüilizei-me. A coisa tinha uma lógica. Mas e se ele nem morresse e nem ficasse preso? É claro que nisso não pensamos.

Vaguinho, afobado, disse no outro dia: “O povo tá falando que o Ramiro da Cartucheira está na região, perto de Passos. Notícia do dia sete!”. Nosso cálculo estava certo. Paciência. O povo sabia do Ramiro, mas não do nosso plano.

A idéia da serra não vingou. O jeito foi usar o facão. Nas três tardes, nos revezávamos para o corte daquele tronco, escondendo-nos se alguém passava na estrada. A corda não era problema. Testa pegou do pai, que tinha tantas que nem daria falta. Na volta, nos molhávamos com a água do rego, para acharem que tínhamos ido nadar no córrego.

Chegou o dia 12. Arrumei de dormir na casa do Testa, o que era costume. Vaguinho também. O combinado era fazer isso nas três noites seguintes. Motivo? Criança sempre inventa. Estávamos eufóricos, de não conseguir esconder. A armadilha estava pronta. “Se for nessa noite?”, pensamos, em voz alta. E se não fosse?

O pai de Testa queria jogar baralho. Não quisemos, de propósito. “Amanhã vocês têm cuidado. Inda bem que é sábado, sem escola. Viram o Ramiro da Cartucheira na estrada da Barra pra Cachoeira. Polícia vem amanhã pra região, dizem”. Arrepiamos. A estrada da Cachoeira! Ele vinha era hoje, não havia dúvida.

Às nove, fomos dormir. Aquietada a casa, fugimos pelos fundos e fomos para o local da prisão do Ramiro. A noite de lua, o medo, o fascínio. O resto eu tento reconstruir, mesmo que me fuja algum detalhe. Você me compreenda.

* * *

Doíam-me os pés e os braços. Cortados, furados, sangue já não era novidade. E o Testa? Caiu, não caiu? Vaguinho sei que conseguiu fugir como eu. Não sei, não consigo lembrar agora que corria pela mata adentro. “Não teve tiro”, dizia ela, a voz apaziguadora dentro de minha cabeça. Sem tiro, ninguém morreu. “Testa?!”, um grito ecoou. Era Vaguinho, voz de choro e de machucado. Fui atrás. Devia não, mas era amigo. Amigo é o que a gente protege, mesmo no perigo. Chamei por ele, em voz mais baixa, fui chamando, pra tentar achar. Achei, na beira do rego, onde tem uma clareira da mata. Dava pra se ver.

Então soube: na hora em que a corda foi cortada e o galho começou a cair, no negaceio do Ramiro, Testa caiu, junto com corda, facão e tudo. Eu não vi? Se vi, esqueci. Mas o que Vaguinho falou foi que eu corri antes, quando o cujo chegava perto. Fui eu então que denunciara a armadilha? Vaguinho não ia dizer isso nunca, mesmo se fosse. Amigo é o que a gente conta só o que não o prejudica.

Vaguinho tinha conseguido correr, árvore abaixo, estrada afora, mata adentro. Mas deu pra ver o Testa segurado pelas pernas. Ramiro era um gigante. Era? Importa nada isso. Levou o Testa. Pra nunca mais ser encontrado.

Anos depois, quando prenderam Ramiro, lá pras bandas de Goiás, disse que não lembrava. “Que minino?”. Resposta dada ao delegado que não curou nenhuma ferida, nem nossa, nem da família do coitado. Que nunca me perdoou, nem vai. Mas vá lá. Criança tem reserva de misericórdia, mesmo nas artes de tragédia.

Por penitência ou culpa, assumi a autoria do plano. Tinha que fazê-lo, pelo Testa. Devia isso a ele. Eles não se espantaram? Um pouco. Aquele menino mirrado ter esse tanto de ideia! Mas precisavam de um maestro e eu lhes dei minha batuta. Um pouco era verdade; eu trouxera a notícia do Ramiro. Outro pouco não. Vaguinho não concordou, nem desconcordou. Disse nada. Nunca mais nos falamos, era o mesmo que sofrer tudo de novo. Era um segredo agora conhecido que a gente precisava continuar guardando.

Onde mora? Sei mais não. Crescer é sumir, no mais das vezes. Dizem que foi pra São Paulo, construção civil. Endoidou? Dizem. Ele foi sempre introspectivo. Pessoas confundem pensar pra dentro com ausência de ideia.

Eu? Ora, eu sigo. Já dobrando o alto de meia vida, que não vai ser longa de tanta força que já gastei em querer voltar no tempo.

Então eu lhe pergunto: por que esse mundo de coisa acontece na vida que não devia? É pra se deixar lição pra outros? Lição de não brincar com coisa perigosa? Que seja. Que tenha alguma valia o que agora conto. Pra quem perdeu a infância e depois a mocidade do remoendo de uma aventura, um ventinho de consolo descansa a mente. Que já muito cansado estou, de correr pela vida como naquela noite pela mata. Agora os pés e braços sangram mais não. Só o coração.

.

José Carlos Freire
Enviado por José Carlos Freire em 25/02/2019
Reeditado em 25/02/2019
Código do texto: T6583918
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.