Ciúmes
Baixo, atarracado, circunspecto. Tinha fama de valentão. Sabe Deus o porquê, a moça de beleza radiosa se encantou por ele. Namoravam no portão baixo na frente da residência modesta. Às vezes o sogro chegava, puxava conversa, indagava pelas novidades do bairro São João. O velho era migrante, nordestino.
O sogro aprovava com aquiescência sisuda a fama do valentão. Não entregaria a mão da filha a nenhum desses baianos frouxos que se veem por aí, que até dão pena de tão covardes.
- Eu me garanto – rosnava o genro, sob aprovação.
Um dia o sogro, confiante, repassou o antigo revólver calibre 32 – que repousava, inútil, há anos, numa gaveta – para que o genro tentasse vender. O velho enfrentava uns aperreios financeiros, a arma valia pouco, mas o dinheiro ia ajudar a quitar umas dívidas. Quando se aprumasse, comprava outro.
- Faça o favor de vender. Nem tenho a quem oferecer – se justificou o velho, olhando no olho.
Saiu com o revólver na cintura.
Dois adolescentes que assaltavam de moto refugaram a arma por causa do calibre, preferiam tentar a sorte com o tradicional “trezoitão”, que impunha mais respeito; um pernambucano examinou com vagar, mas rejeitou, achava que aquilo poderia falhar e ele vivia em desavenças, tinha inimigo traiçoeiro pelas cercanias, não podia arriscar; um mecânico ficou interessado, só que não tinha todo o dinheiro, precisava de prazo, tentou contraproposta, mas o negócio não prosperou; queria o revólver para se garantir contra ladrões, residia na periferia, lá havia desordeiros.
Apalavrou a venda com um segurança de loja, mas no dia combinado o sujeito não apareceu para consumar o negócio. Explicou à tarde ao sogro que não conseguiu arrematar a transação, mas ia seguir tentando.
À noite brigou com a namorada por causa de ciúmes, sacou o revólver da cinta e deflagrou um tiro certeiro contra o busto lívido.
Ela caiu. Ele fugiu correndo.
- Pega, pega – Gritaram transeuntes, que partiram no seu encalço.
Passou a madrugada em claro numa cela úmida, escura, pegajosa. Pelas grades, via a luz leitosa da lua se derramando sobre o piso de cimento do pátio da cadeia. À volta o ressonar intranquilo dos colegas de infortúnio, vultos que não distinguia, espichados sobre catres de concreto.
Viva, a namorada fora levada para o hospital. Desde o clarão do disparo tudo acontecia como num filme. Os minutos se arrastavam. E, as horas, eram intermináveis.
Pela manhã foi convocado à sala da carceragem: a imprensa o aguardava, sequiosa. Fotos. Gravadores ligados, canetas nervosas que rabiscavam informações, muita agitação porque o episódio despertara comoção pela cidade. Explicou as negociações infrutíferas, a briga, o estampido que fraturou a noite morna. E agora aquela situação, a moça padecendo no hospital.
- ...você não sabe que ela morreu...? Indagou um repórter, cauteloso, a voz pesarosa.
- Ela morreu... não sabia... – e a voz sumiu. E o corpo rijo começou a tremer. Os olhos vivos se embaçaram, sob dolorosos devaneios. Fazia calor na antessala da carceragem, mas ele tremia, uma tremura incontrolável, até os dentes batiam, parecia um caititu.
O repórter recuou, mudo. A caneta se aquietou, inútil, nos dedos crispados. Nenhuma palavra traduziria aquele momento. Houve silêncio. Aquela cena o jovem repórter nunca mais esqueceria.
Foi por ele que o criminoso soube da consumação da desgraça.
Foram se afastando lentamente, mudos, no mais inverossímil dos epílogos para uma reportagem...