Lembranças do passado

E nas memórias que eu tive daquele lugar, lembrei-me do cheiro de urina e fezes, do odor pútrido das privadas sem descarga e do perfume nauseante de jasmim que vinha dos sabonetes.

As ruas estavam desertas. A não ser pelos cachorros que por ali perambulavam magros de fome e de sede. Jogados ali sem destino e sem dono. Fui passando casa por casa. Vi a residência dos Silva, recordei-me da Patrícia. Uma moça de cabelos negros e olhos azuis como o oceano, triste pela vida, abandonada pelo marido, um filho da puta escroto.

Passei também pela casa da Dona Mariquinha, a maga dos doces. Quantos quindins eu comi, e que saudade do cheiro das cocadas e das empadas feitos pelas mãos dela. Sai da rua onde eu vivera boa parte da minha vida. Um filme passou e as lembranças continuaram a surgir, desde as boas até as piores.

Entrei no carro. O cheiro ali de nada parecia com o que senti há pouco. Era o odor do couro dos bancos, do perfume de limpo, bem diferente do cheiro de merda e de ‘mijo’ da minha pobre casa. Coitada de mamãe, tão jovem na idade, mas tão velha em sua aparência, um cadáver vivo, morta pelas surras de papai, mas viva pelo amor a seus filhos.

Sai dali o mais rápido que consegui. No retrovisor a miséria e a pobreza iam se afastando. Meus filhos sempre me pediram para que eu os levasse ao local onde eu nasci, mas eu nunca faria isso. Coitados, estavam acostumados com a luxúria e com a vida exagerada dos ricos, os meninos nunca sentiram o gosto podre e ardente da pobreza extrema, e fazê-los passarem por isso seria um erro?!

Passei por ruas em que pessoas moravam nelas, senti o fedor de esgoto e fezes e lembrei mais uma vez das surras que papai dava na mamãe. Numa dessas, o desgraçado quebrou um dedo dela, coitada da mamãe, chorava de dor e ele não fazia nada, apenas olhava aquela cena de horror, e eu no alto dos meus dez anos, sentado no chão de piso vermelho movia meu carrinho de madeira, o único que eu tinha, para frente e para trás.

A minha vontade era fugir dali, escapar daquela vida triste e sem graça, levar minha mãe embora junto comigo e oferecer a ela uma vida digna. Sai de casa com quatorze anos, fugido. Vi meu pai mais uma vez surrar minha mãe, uma sova que a levou a morte, assisti minha mãe sendo morta sem poder fazer nada.

Cresci como homem da maneira mais dura possível; fiz fortuna à custa de muito trabalho e esforço...

Resolvi levar meus filhos a um passeio. Meti os dois no banco de trás do carro e afivelei o cinto de segurança nos dois. Eles perguntaram aonde iriamos, respondi que seria uma surpresa.

Fiquei em silêncio o trajeto inteiro. Já eles me enchiam de perguntas que eu fingia não ouvir. Entrei na rua onde eu vivi minha infância, vi casas velhas, crianças descalças de pés sujos na rua, todas mal vestidas, com roupas usadas, provavelmente doações; olhei pelo retrovisor e vi meus filhos de cabelos cortados e roupas de qualidade, diferente daqueles meninos do lado de fora.

Parei o carro e desci. O cheiro não era nada agradável. Na minha frente uma casa pequena de muros descascados, com um portão de madeira caindo aos pedaços. Olhei mais uma vez para o carro e os meninos olhavam incrédulos aquilo.

Mandei-os descerem, eles obedeceram. Um deles questionou que lugar era aquele, respondi que eram ali que eu morava, claro, eles não acreditaram. Contei minha vida inteira para eles, do cheiro de merda, do cheiro de jasmim do sabonete, da falta de comida, das surras que meu pai dava na minha mãe. Mostrei para eles que vim do nada para dar a eles a vida que eles tinham hoje. Eles não gostaram da experiência, eles não estavam preparados para tudo aquilo.

Para eles a vida era fácil, e eles têm isso graças a mim, eles não precisam trabalhar, ficam entre os vários cursos no qual estão matriculados e a minha mansão. A diversão deles é o celular e o vídeo game, cada um tem o seu. No meu tempo de criança a brincadeira era correr na rua e jogar bola, meus filhos provavelmente nunca irão saber o que é isso.

Os dois voltaram para o carro, pareciam assustados, aproximei-me do veículo na tentativa de puxa-los para fora e mostra-los mais algumas coisas, mas foi em vão. Fiz o mesmo, entrei, liguei o motor e olhei pela última vez minha antiga casa. Despedi-me dali quase aos prantos. Deixei para trás meu passado de miséria e de frustração, para viver minha vida de luxo e status.

Fernando F Camargo
Enviado por Fernando F Camargo em 06/03/2019
Código do texto: T6591347
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