UNIVERSO PESSOAL (Conversando com Deus)

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- Foi-se…

- Que essa santa alma possa descansar em paz… Amem!

- Quanto anos tinha?

- Quase noventa.

- Xiiiiiiii, teve sorte, né?!

- E foi rápido, nem sofreu.

- É, mas ele não aproveitou muito da vida.

- Era tão pobre assim?

- Que nada, tinha uma fortuna guardada no banco.

- Muié, você me deixa boquiaberta…

- E sabe quem vai herdar tudo isso?

- ....

- Aquela lambisgoia de Arlete.

- Jura?! Aquela papa-hóstias que vive mexericando?

- Sim senhora! Nos últimos anos paparicou bastante o veinho tanto que ele acabou se apaixonando por ela.

- E agora tá feita, podre de rica!

- Bem que o defunto podia ter se lembrado da gente, né?

- Pois é, afinal somos suas sobrinhas legítimas!

- Espero que o infeliz seja recebido como se deve pelo capeta em pessoa.

- É o que ele merece. Amem!

Enquanto isso, em outra dimensão, o defunto, na flor dos anos, se encontra, sozinho, no meio de um lindo jardim.

- Hei, psiu…

O jovem se vira e se depara com um senhor de meia idade, grisalho, parecido com George Clooney, um de seus atores preferidos.

- Você é um anjo?

- Tenho cara de anjo?

- Parece que não. Inclusive não vejo nem asas e nem uma longa veste branca…

- Com certeza! Prefiro até um terno sem gravata, mas que seja de Armani.

- Muito bom gosto, parabéns. Então o senhor é São Pedro?

O desconhecido não responde, mas, com um sorriso maroto, aponta o dedo na direção do céu.

- Minha nossa, mais importante que São Pedro só pode ser… Deus?!

- Em pessoa…

- E o que o Senhor queria de mim? –responde o recém-falecido meio acanhado.

- Nada de especial, apenas bater um bom papo pois gosto de conversar com os humanos.

- Obrigado, Senhor, isso me deixa bastante lisonjeado. Mas… não queria que perdesse muito do seu precioso tempo só para bater boca comigo…

- Perder tempo? Imagina… temos a eternidade a nossa disposição. Aqui o tempo não conta.

- Posso fazer uma pergunta?

- Todas aquelas que desejar.

- Que lugar é esse?

- Você que sabe!

- Eu?!

- Sim, esse lugar foi gerado pela sua própria fantasia, pelos seus desejos conscientes e inconscientes.

- Ah, então não é um mundo real.

- É real pra você, isso é o que mais importa.

- Efetivamente parece um lugar bem bonito e agradável. Significa que estou no Paraíso?

- Se esse nome lhe agradar, pode chamá-lo de Paraíso.

- Mas, desculpe a curiosidade, e os malvados onde foram parar?

- Na sua opinião aonde deveriam estar os meliantes?

- No fundo do Inferno, oras!

Numa fração de segundo, Deus faz um gesto imperceptível com a ponta da mão e, diante do olhar horrorizado do jovem, se materializa uma visão apocalíptica. Nas espiras abrasadas de um imenso e medonho buraco negro, inúmeras figuras gritam e se desesperam lançando maldições e blasfêmias terrificantes.

- Minha nossa, uma terrível punição… mas o Senhor não acabou de me explicar que tudo isso que estou vendo é apenas uma realidade pessoal, puramente virtual?

- Confirmo o que disse.

- E o Inferno que acabei de ver agorinha?

- Mesma coisa…

- ….

- Não é esse o castigo que você acha justo para os criminosos?

- Acho sim!

- Então qual o problema se é real ou virtual? No seu universo isso é real. Tá satisfeito assim?

O nosso amigo, não sabendo bem o que responder, tenta disfarçar olhando o panorama e inventa outra pergunta:

- Lá em distância enxergo umas montanhas cobertas de neve, mas estou estranhando a cor. Umas são cor de rosa, outras verdes, outras bege… Como se explica isso?

- Aquela não é neve, é sorvete; todos os sabores que você mais gosta. Quer experimentar?

- Adoraria, mas ficam longe…

- Nem tanto quanto parece. Vamos, assim a gente conversa durante o caminho.

- Ainda lembro de quando comprei um picolé e tive uma forte dor de barriga. Parece que o sorvete estava contaminado. Aqui posso confiar na qualidade, né?

- Naturalmente, tudo pasteurizado!

- A propósito, posso saber porque quando o Senhor fez o mundo criou também as bactérias, os vírus, os parasitas e todas as outras moléstias?

- Na verdade eu não criei nada…

Diante dessa resposta o homem fica como paralisado.

- Falo sério. No início existia o Tudo, que logo se dividiu em duas partes: de um lado, uma quantidade imensa de energia do tamanho de um átomo, do outro lado estava eu, matutando qual a forma melhor para fazer com que esse objeto meio esquisito gerasse galáxias, estrelas, planetas, selvas, animais e, enfim, seres pensantes. Tive que escrever e reescrever muitas vezes as equações até elas ficarem corretas para que essa geringonça tomasse vida mas, enfim, consegui. Naturalmente, como sempre acontece com os projetos mais ambiciosos, nem tudo pode parecer perfeito, mas, basicamente, funciona.

- Está de parabéns! Mas, se por exemplo não tivesse criado a tensão superficial da água, os mosquitos e as muriçocas não teriam como depositar seus ovos e, portanto, não existiria malária, dengue, febre amarela, etc.

- Justo, mas também não teríamos os vegetais, pois a linfa, para correr dentro das plantas, necessita dessa propriedade da água.

- Verdade, não tinha pensado nesse detalhe.

- Bom, prometo que, se fabricar outro universo, irei rever certas equações. Falou?

- O Senhor sabe ser bem espirituoso… O humor é outro de seus atributos?

- Não, essa virtude eu aprendi observado vocês humanos.

Mais uma vez o nosso amigo fica pasmo.

- Deus que aprende as coisas? Desde quando? Não deveria ser onisciente, omnipotente, todo-poderoso?

- Quem fala isso são os teólogos. Pessoalmente me acho apenas um excelente matemático e um exímio arquiteto, um ser cuja inteligência fica um pouquinho acima da média… Hehehehe. Mas confesso que muitas coisas fui aprendendo com o tempo.

- Mas afinal, por qual motivo fez o mundo?

- Ainda não entendeu?

- Não, desculpe a minha ignorância… Se puder esclarecer…

Tendo chegado aos pés das montanhas feitas de sorvete, Deus enche duas taças da deliciosa iguaria e oferece uma ao jovem. Enquanto degustam vários sabores Deus pergunta:

- Me responda sinceramente: prefere aproveitar desse sorvete sozinho ou em boa companhia?

- Em companhia, é evidente.

- Idem! E também achei justo que inúmeros outros seres pudessem gozar de tanta abundância.

- Mas a vida é um vale de lágrimas, as pessoas sofrem terrivelmente. Por qual motivo o Senhor não escuta as súplicas dos que o invocam a toda hora?

- Escuto sim, mas não posso fazer muita coisa… Afinal sou arquiteto, não doutor, psiquiatra o enfermeiro. Para o alívio das dores já tem a ciência médica enquanto, para o conforto do espírito, existem inúmeras religiões e filosofias: basta escolher uma...

- Mesmo assim o sofrimento pode ser enlouquecedor.

- Eu sei, mas um dia terá fim e, mesmo que possa parecer interminável, um belo dia acaba. Mas, em compensação, a eternidade não acaba nunca!

- Então o corpo perece e a alma é imortal. Mas por qual motivo o Senhor não criou diretamente as almas sem ter que passar pelo sofrimento do corpo?

- Calma, calma! Antes de tudo me diga uma coisa. Você já teve algum pen-drive?

Apesar de não entender a lógica, o jovem responde:

- Minhas sobrinhas têm e me explicaram o funcionamento.

- Veja bem e tente acompanhar o meu raciocínio. A que vocês humanos chamam de alma, na verdade é algo de muito parecido com um pen-drive. Seria, digamos, um suporte onde ficam armazenadas todas as informações geradas durante a vida, ou seja sentimentos, lembranças, emoções, desejos, e assim por diante. Quando o corpo perece, a essência do ser humano é conservada e ele pode continuar a viver novamente, mas com uma diferença fundamental…

- Qual?

- Que anteriormente a vida era dominada pela dura realidade material, enquanto agora são os sonhos e os desejos que fazem a realidade. Portanto, se você sonhou com um mundo de paz e harmonia, terá paz e harmonia. E quem cobiçou arrogância, violência e injustiça é isso que vai encontrar.

- OK, mas por qual motivo não fabricou diretamente as almas sem que a gente tivesse a necessidade de experimentar a dor?

- E ia por o quê dentro desses "pen-drives"? Personalidades imaginárias, experiências mentirosas, falsas lembranças? Você ia gostar de ser um homem totalmente artificial, mesmo que sensível, igual o robô do filme Inteligência Artificial de Spielberg?

- Sinceramente não! Prefiro ser real, prefiro ter passado por doenças e mágoas, mas me sentir autêntico e concreto. Mesmo assim, ainda permanece uma dúvida…

- Diga…

- O que acontece com os indivíduos que faleceram muito pequenos e quase não guardam lembranças nem boas nem dolorosas, tipo as crianças mortas ainda antes de aprender a falar?

- Por que pergunta? Quer adotar uma? Se deseja colaborar poderá ajudar uma criança a se desenvolver e se tornar adulta. Quer?

- Quem sabe, talvez mais pra frente… Antes preciso entender esse meu universo pessoal, saber como ele funciona exatamente. Por exemplo, estou sozinho aqui?

- Mais uma vez isso depende de você. Se quiser a companhia de outros seres humanos a terá. No entanto…

O jovem fica no aguardo de uma resposta, mas, como Deus permanece calado, continua:

- No entanto?

- Mediante o seu desejo, a sua vontade, pode materializar qualquer objeto ou pessoa, mas saiba que serão apenas seres virtuais, como nos sonhos, embora possam parecer bastante reais. Apesar dessa aptidão parecer ser o máximo da realização pessoal, envolve um perigo sutil…

- Nossa, tá falando sério?

- Muito sério. Não são poucos os indivíduos que se instalaram em seu universo particular tornando-se senhores de seu mundo apenas para saborear o prazer do poder, do dinheiro, da glória, do sexo...

- É proibido fazer sexo aqui?

- De jeito algum, mas acontece que essas pessoas se cristalizam, se fecharam aos outros e vão permanecer por um tempo indefinido nesse meio-termo perdendo a oportunidade de interagir, de se integrar com outros seres reais. Nada contra experimentar e gozar das coisas que foram negadas durante a vida terrena, desde que não seja perdido de vista o percurso da evolução final.

- Então melhor eu procurar dividir esse meu universo com outras pessoas reais…

- Claro! Mas sem pressa e lembre-se que, nesse caso, não será mais o “seu” universo, será o "vosso" universo, portanto deverá ser de agrado também aos outros convidados. Pode demorar bilhões de anos (tempo aqui temos de sobra), mas um dia irá existir uma espécie de galáxia contendo todos os seres gerados durante milênios. Eu estarei no centro dessa galáxia que, finalmente, será perfeita representando assim o lógico desfecho do meu trabalho de arquiteto. Por enquanto vou lhe revelar outra surpresa agradável...

- Ou seja?

Deus começa a falar em inglês, russo, alemão, árabe e japonês e o nosso amigo não apenas entende tudo, mas entra na conversa usando os mesmos diomas. Enfim perguna:

- Como é que consegui manter uma conversação em línguas que nunca estudei? É um milagre?

- Nada disso. A resposta é muito mais simples. Tudo o que você e bilhões de outros seres inteligentes aprenderam durante suas vidas pode ser compartilhado, pois os “pen-drives” estão interconexos igual uma imensa rede de computadores. Naturalmente você mesmo decide qual parte do seu saber pode se tornar accessível aos outros. Se gosta de tocar piano e nunca estudou música, tocará perfeitamente, poderá pintar igual Rafaelo ou Modigliani ou vasculhar os segredos da Física usando a sabença de Einstein. Se estiver a fim de visitar a Antiga Roma, assim como ela era na época de César ou o Egito dos faraós, não haverá problemas, pois as lembranças daqueles que viveram na época estão ao seu dispor. Poderá, por exemplo, reviver a batalha de Waterloo vendo-a seja com os olhos de Napoleão que com os do Duque de Wellington.

- Nossa que legal! Fiquei bastante empolgado… Posso ter um pouco mais de sorvete?

- Fique à vontade e lembre-se que aqui ao lado temos um restaurante onde poderá saborear os pratos mais gostosos que já foram inventados. E é tudo grátis… Até mais e, se precisar, me chame.

O jovem entra no local, enxerga uma mesinha onde está sentada uma menina muito graciosa e pergunta:

- Moça, está esperando alguém?

- Sim, estou esperando você…

- Faz muito tempo que me espera?

- Não, menos de duzentos anos. Vamos ordenar o almoço?

- Com muito prazer! Um Senhor lá fora acabou de me informar que nesse restaurante se come divinamente…

- Se come e se bebe divinamente! Tin-tin!

- Tin-tin…

Após um almoço pantagruélico, o nosso amigo, a convite da menina, sobe num dos aposentos e permanece em boa companhia durante uns anos até que, saciado também esse seu apetite carnal acumulado durante a vida inteira, resolve dar uma voltinha a pé. Sai do hotel-restaurante e inicia a caminhar em direção de uma bela lagoa próxima.

- Matou a fome? –pergunta Deus com sutil ironia.

- Desculpe meu Senhor, não tinha lhe visto.

- Claro que não me viu, pois, entre outras inúmeras virtudes, possuo também o dom da invisibilidade.

- Falando em virtudes, é verdade que o Senhor é infinitamente bondoso?

- Qual a sua opinião a esse respeito?

- Bem, diria que sim e, sem dúvidas, parece ser um excelente companheiro… Posso lhe chamar de você?

- Hummmm. Prefiro que me chame de doutor, pois tenho doutorado e pós-doutorado em todas as disciplinas que existem no Universo, inclusive aquelas que ainda não foram inventadas.

- Tudo bem, doutor. Quanto a mim, apesar do meu imenso desejo em aprender sempre algo de novo, a vida não me proporcionou a oportunidade de frequentar uma faculdade e…

- Como já lhe expliquei, aqui poderá realizar todos os seus desejos, e aprender qualquer disciplina com a velocidade da luz.

- Ótimo, vai ser uma maravilha! Estava dizendo que, apesar de não ter estudado, custeei a faculdade das minhas sobrinhas, tratando-as com amor e carinho, como se fossem minhas filhas.

- E é por isso que agora se encontra aqui e não recebendo lambadas daquele chifrudo que mora lá em baixo! Hehehehehe.

- Muito lhe agradeço, doutor, mas falando em filhos, ainda não lhe perguntei como está o seu…

- Moço, de qual filho está falando? Como posso ter um se nunca quis me casar!

O nosso amigo fica simplesmente estarrecido.

- Como assim?! Estava perguntando como está seu filho Jesus.

- Ah, agora caiu a ficha. Acho que você está se referindo aquele hippie cabeludo que andou pregando na Palestina e acabou apanhando tanto dos sacerdotes Judeus quanto dos Romanos.

- Ele mesmo, seu filho Jesus Cristo.

- Ele é meu filho tanto quanto você, em outras palavras, todo ser humano é meu filho.

- Mas ele não é apenas humano, também é divino!

- Por acaso eu lhe disse isso? Quem botou esta ideia na sua cabeça?

- Foram os padres, a Igreja, o papa, a tradição, os próprios Evangelhos. Enfim, ele mesmo declarou mais de uma vez ser “Filho de Deus”. E Jesus não era capaz de mentir.

- Efetivamente ele era “Filho de Deus”, mas nunca foi meu filho, pelo menos no significado literal da palavra.

O homem fica ainda mais perplexo.

- Respira fundo, jovem, e siga a minha explicação tintim por tintim. Pra começar, já estudou história e literatura hebraica?

- Absolutamente não.

- Então, veja bem: a expressão hebraica “Benei Elohim”, traduzida geralmente como "Filhos de Deus", deve ser entendida como a descrição de anjos ou seres humanos particularmente poderosos, incluindo soberanos como David e até Herodes.

- Mas Jesus nunca foi rei, então…

- Então, no judaísmo, a expressão "Filho de Deus" era usada, ocasionalmente, no sentido de "Messias". No Antigo Testamento a palavra "Messias" (que significa consagrado, libertador) aplicava-se a várias pessoas: os reis, os juízes, bem como o sumo sacerdote, ou seja, um homem justo de quem o espírito de Deus se apoderava, fazendo com que o ungido realizasse maravilhas e demonstrasse ao povo que a sua autoridade procedia de Deus. Sendo que Jesus, além de exímio conhecedor das Escrituras, foi um Mestre particularmente sábio e virtuoso, achou-se no direito de se auto-apelidar de “Filho de Deus”. Nesse sentido ele agiu de forma coerente. O importante é não tomar essa expressão ao pé da letra, mas dar a ela a interpretação correta. Entendeu agora?

- A sua explicação ficou muito clara, no entanto continuo com umas dúvidas…

- Pode perguntar!

- Se Jesus não era Deus, mas um simples profeta, embora o maior de todos, como fica a questão da salvação?

- Você acredita que os humanos são todos filhos de Eva?

- Acho que sim.

- Portanto, se Eva pecou, a culpa dela irá se propagar de geração em geração até alguém se sacrificar para a redenção de todos, é isso?

- Foi isso que me ensinaram.

- Agora, raciocine. Vamos supor que o tataravô de seu tataravô tivesse cometido alguma ação criminosa, honestamente acharia justo que todos os seus descendentes fossem encarcerados por essa culpa?

- Claro que não, afinal a responsabilidade penal é individual.

- Isso mesmo! Inclusive a da Adão e Eva é apenas um lenda, uma mitologia que os Israelitas tomaram de outras culturas anteriores.

O nosso amigo baixa um pouco a cabeça, como para pensar mais profundamente nas palavras que lhe foram ditas.

- Espero, amigo, de não ter lhe causado espanto –pergunta Deus com um sorriso.

- Claro que não, mas me pegou totalmente de surpresa…

- Entendo, mas agora olhe essa lagoa, tá cheia de peixes. Que tal um bom peixinho frito?

- Aceito com prazer, obrigado.

- A propósito, já lhe contei que o meu signo é Peixes?

- E como pode ter um signo? Para ter um precisa ter nascido em um determinado momento.

- Verdade, mas no meu caso eu sou de todos os signos, portanto sou também dos Peixes.

- E o ascendente?

- Maionese...

- O que????

- Nada, estava apenas perguntando se, além do peixe frito, aceita um pouco de maionese. É da casa, é genuina e de primeira.

- Muito obrigado, deve ser deliciosa.

- Lembre-se de um detalhe importante… Após uma conversa filosófica é sempre bom alimentar o corpo com um bom prato de comida.

- Concordo em gênero, número e grau.

- Bom apetite!

- Obrigado, doutor, um prato realmente... "divino"!

- Doutor, aquele seu peixinho despertou o meu apetite, tinha um sabor de quero mais…

- Se quiser outro fique à vontade. No entanto, se posso lhe dar uma dica, guarde esse seu apetite para outras iguarias. Aqui perto temos uma “caverna dos salames”, com pão francês bem quentinho e crocante, apenas tirado do forno.

- Oba! Então vamos sem demora. Posso também ter um bom vinho?

- Branco ou tinto?

- Gostaria de tomar um Chianti.

- Com certeza. Também é um de meus vinhos preferidos.

Enquanto os dois experimentam vários tipos de iguarias, o nosso amigo pergunta:

- Doutor, sempre fiquei curioso ao extremo sobre um certo assunto.

- Ou seja?

- Os extraterrestres existem de verdade?

- Olha, no Universo temos mais de cem bilhões de galáxias sendo que cada uma abriga, no mínimo, cem bilhões de estrelas. Consequentemente, se em média apenas uma estrela em cada mil tivesse um seu sistema solar com um planeta em condições de hospedar a vida, calcule o número global de planetas aptos a desenvolver a vida inteligente.

- Ah, doutor, tenha dor de mim, trata-se de um número enorme e eu nunca fui craque em matemática. Gostava mais de filosofia…

- E aprendeu o que estudando essa disciplina?

- Aprendi que houve filósofos bons e outros malucos tipo, por exemplo, o alemão Ludwig Feuerbach. Pense que ele chegou a afirmar que não foi o Senhor que criou os homens, mas foram eles que criaram Deus! Hahahahaha.

- Por que tá debochando dele?

- Porque escreveu uma asneira, oras!

- E se lhe dissesse que ele tinha razão, e não apenas do ponto de vista antropológico e cultural?

Diante dessa resposta o pobre fica mudo e pasmo. O rosto dele perde a cor e sente-se como se a terra se abrisse debaixo de seus pés. Após uns instantes de silêncio embaraçoso, o jovem cria coragem e fala:

- O doutor quis brincar comigo, testar a minha fé, né isso?

- Não costumo brincar com certos assuntos.

- Já me deixou abalado quando me disse que não criou o mundo mas que apenas escreveu as equações para que a matéria informe tivesse as propriedades oportunas para originar a vida inteligente.

- Exatamente.

- Agora me vem com essa novidade afirmando que foram os homens que o criaram. Como pode ser verdade uma coisa tão absurda? Seria como dizer que uma certa mulher pariu a parteira que a fez nascer. É a mesma coisa, uma loucura sem nexo!

- Seria um absurdo numa dimensão onde o tempo se desloca unicamente numa só direção, procedendo do passado em direção do futuro, ou seja movendo-se em cima de uma linha reta. Esse é o conceito ocidental de tempo ontológico. Mas faça um esforço e imagine que o tempo seja circular.

E, assim dizendo, Deus, com um dedo molhado de Chianti, desenha uma circunferência em cima da mesa.

- Agora, meu amigo, diante dessa figura indique onde está o passado, o presente e o futuro.

- Realmente não há como; pois, nesse esquema, tudo fica relativo e não existe um passado ou um futuro absoluto. Mas a minha mente ainda continua confusa…

- Sendo que estudou filosofia, deve conhecer o significado do holismo, ou seja que o “todo” é sempre maior que a soma de suas partes.

- Sim, já ouvi falar…

- Por exemplo, o cérebro humano é composto por bilhões de neurônios, no entanto o cérebro possui uma personalidade, um “eu” que nenhum neurônio ou pequeno grupo de neurônios possui.

- Sim, e daí?

- Lembra quando lhe expliquei que a alma se parece com um pen-drive com a possibilidade de armazenar todas as informações e, acima de tudo, os sentimentos e as emoções coletados durante a vida?

- Lembro sim, doutor.

- O que acontece é que bilhões de bilhões de almas, analogamente aos neurônios, se juntam em torno de um núcleo inicial (o tal do Arquiteto) formando uma super-estrutura caracterizada por uma super-inteligência e outras propriedades surpreendentes. Em outras palavras, quando se chega a uma certa “massa crítica” a super-estrutura dá um pulo quântico transformando-se numa entidade que antes não existia e essa entidade é Deus. Claro?

- E depois?

- Quando o atual Universo terminar, virando uma sopa insossa de fótons e neutrinos, ai eu junto os cacos, os jogos numa singularidade menor que um elétron, escrevo as as equações e… “Fiat lux!”: eis que, de repente, vamos ter…

- Um novo modelo de carro?!

- Aff! Amigo, “Fiat lux” é latim, significa “Seja a luz”, como tá escrito no Gênese ou, para usar uma expressão mais moderna, podemos dizer Big Bang.

- Um novo Big Bang?

- Nãooooooooooooo!! Ai, que vontade de lhe dar um cascudo! Ainda não entendeu? É o primeiro e único Big Bang, aquele que deu origem ao mundo onde você viveu.

- Ximaria, que coisa mais complicada, mas deixa resumir. O doutor está tanto no princípio como no fim e é capaz de se gerar sozinho. Certo?

- Mais ou menos. Depois que o Universo começa a funcionar, as coisas procedem como você já as conhece. De uma certa forma eu sou o alfa e o omega mas, para chegar a ser Deus no sentido pleno da palavra, necessito da contribuição de inúmeros seres pensantes e sensíveis. É evidente como tudo isso funcione unicamente se o tempo for circular; se fosse linear o mecanismo seria absolutamente impossível. Obviamente tentei simplificar ao extremo, dando apenas os conceitos essenciais para que você entenda que Deus não pode existir sem os seres humanos e vice-versa. Por isso, quando lhe digo que você faz parte de mim, não falo apenas de um ponto de vista metafórico, mas estrutural, assim como um qualquer neurônio que concorre à formação de um cérebro e faz parte dele.

- Essa sua explicação me deixou meio tonto, mas, por outro lado, a teoria do tempo circular me ajudou a encontrar a resposta correta a uma pergunta que nunca saía da minha cabeça…

- Qual seria essa pergunta?

- Um velho amigo, meio maluco, quando queria pegar no meu pé, sempre me perguntava se nasceu primeiro o ovo ou a galinha e eu ficava abestalhado sem saber o que responder.

- Ahahahahaha. Essa foi boa! Mas falando em ovos, aceita um de chocolate fino?

- Ah, muito obrigado, adoro chocolate.

Com um aceno quase imperceptível, Deus materializa um imenso ovo de chocolate e entrega ao homem um martelo para que ele possa quebrá-lo. O nosso amigo fica sem palavras quando aparece a “surpresa”: um carro esporte zero quilômetro, com uma linda moça sentada do lado do passageiro.

- Nossa, mas essa menina eu a conheço, é Mariana. Quando tinha vinte anos, vivia apaixonado atrás dela, mas ela escolheu outro…

- Bom, agora divirta-se com o carro e a sua passageira, eu volto daqui a uns cem anos. Falou?!

Exatamente cem anos depois Deus aparece no mesmo lugar e pergunta:

- Tudo bem amigo? Curtiu bastante a surpresa?

- Adorei!

- E o chocolate?

- O melhor que já comi.

- Deveria estar bastante feliz agora…

- Sim, estou e agradeço de novo.

- Hummmm, será, mas lhe vejo um pouco perplexo...

- Bem, não posso dizer que esse universo pessoal não seja maravilhoso, no entanto sinto falta de alguma coisa que não sei bem explicar…

- Tente, abra-se comigo!

- Sabe, doutor, mas é que, até agora, não consegui ter uma visão global da realidade. Aqui onde estamos, ou seja no Paraíso…

- Nunca usei essa palavra até agora, disse apenas que, se isso lhe agradar, pode chamá-lo com esse nome.

- Tudo bem… A verdade é que me vieram na cabeça lembranças de muitas pessoas, fatos, acontecimentos e acabei me sentindo culpado. Acredita?

- Esclareça melhor…

- O doutor não lê no meu pensamento?

- Nunca faria isso, aqui vigora o respeito absoluto da privacidade de cada qual. Sem contar que, num mundo onde a sinceridade está na base das relações entre os seres sensíveis, a leitura do pensamento alheio torna-se completamente inútil.

- Então, sei que nunca fiz mal a ninguém, que tive meus pequenos defeitos, mas como parar de pensar naqueles que se sacrificaram para alcançar um ideal ou para ajudar quem sofre. Eu não fiz nada de espetacular, doutor! Vivi a minha vidinha apenas procurando esquivar os problemas, pensando na minha saúde, em ter um dinheiro guardado pra velhice, obedecendo às leis e tentando, nem sempre com sucesso, respeitar os outros.

- Não sinta-se culpado por isso: só ocasionalmente a vida oferece a oportunidade de mostrar o lado melhor das pessoas as quais, normalmente, não têm a obrigação de praticar atos de heroísmo. Afinal tinha razão Bertold Brecht quando escreveu: “Miserável país aquele que precisa de heróis”.

- Eu sei, eu sei, mas mesmo assim tenho consciência de que inúmeros seres humanos tiveram a coragem de dar um passo a mais doando-se aos outros, preocupando-se pelos outros e, principalmente…

- Principalmente?

- Amando-os!

O jovem baixa a cabeça e suspira profundamente enquanto Deus fica silencioso no aguardo de outras palavras.

- Sei de pessoas que deram suas vidas para salvar um inocente e, quem sabe, dependendo das circunstâncias, até eu teria criado a coragem para me sacrificar. Mas a grande maioria dos que admiro não precisou chegar a tanto, apenas tiveram atitudes positivas em relação aos que sofrem. Como disse antes, o meu esporte preferido foi me esquivar dos problemas assistindo de camarote aos dramas reais, assim como se assiste uma novela.

- E, com uma palavra, como você iria sintetizar essa sua postura diante do problema do sofrimento?

- Egoismo!

- Ainda se sente egoísta?

- É como se de repente todas as peças de um imenso quebra-cabeça tivessem se encaixado… Agora finalmente consigo enxergar a verdade. Antes ela estava escondida!

- A verdade não estava escondida, sempre esteve presente em seu coração, só que o seu egoismo abafava essa luz interior.

- Sinto-me culpado por isso, e nem sei se mereço estar no Paraíso.

- Cabeção! Nunca falei que está! Quantas vezes tenho que repetir esse conceito?

O nosso amigo fica sério, pensa rapidamente e faz essa pergunta:

- Eu queria saber qual foi o destino daqueles homens e mulheres que estavam com o coração repleto de amor.

- Sente falta deles?

- Sim, muita falta. Tanta, que as maravilhas que encontrei nesse lugar estão perdendo o seu sabor inicial.

- E gostaria de entrar em comunhão com essas pessoas?

- Queria sim!

- Então segure a minha mão.

- Pra onde vamos?

- Pro Paraíso, oras!

- Ah! Enfim esse lugar existe!

- Na verdade não é um lugar, é uma dimensão.

- E essa dimensão é feita de quê? Matéria ou energia?

- É feita de amor!

O presente texto se encontra também no meu E-book intitulado: "Viagem ao Centro do Cristianismo" que pode ser baixado grátis na seção E-livros da minha escrivaninha.

Richard Foxe
Enviado por Richard Foxe em 24/03/2019
Reeditado em 04/07/2020
Código do texto: T6606400
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