O primeiro beijo

O sol forte da tarde deixava as ruas praticamente desertas. Conseguia-se ver um gato ou outro atravessando a rua rapidamente, buscando não queimar as patas no chão de paralelepípedos.

Vinhamos, ele e eu, sabe-se lá de onde e íamos para qualquer lugar. De certo não nos importava o lugar de partida ou o destino, o caminho sim nos era valioso. Riamos alto como crianças, que éramos, provavelmente incomodando os idosos que se refugivam entre o ventilador e a tv na sala. De que riamos? Vai saber! Qualquer bobagem dele me fazia rir e qualquer riso meu o deixava bobo... Lembro-me com clareza quando resolvi executar meu "plano brilhante". Corro, encosto as costas na parede de uma casa de esquina, fazendo ele ficar de frente para mim, próximos para aproveitar a sombra fresca. Peço-lhe um favor qualquer, fingindo urgência e, antes que ele aceite fazer de graça, prometo um beijo como pagamento. Seus olhos de menino brilham, como se tivesse ganhado um presente desejado e inesperado. De pronto ele concorda e eu, quero "pagar a divida" antecipadamente. Mas nossos olhos se cruzam envergonhados e a coragem de ambos desaparece. Então que se deixe para a sorte! Par, fazemos, impar, não fazemos. (É quase sempre justa a maneira das crianças resolverem seus dilemas). 1... 2... 3... "Par, par, par" diz nossos corações, quase audíveis. 4 é par! Ele me olha, com medo e euforia. A coragem que me colocou naquele momento me traindo e sume.

- Par beijo na boca, impar na bochecha!

Sua animação se transforma em aflição mas tem que concordar afinal o jogo era meu. 1... 2... 3...! Não olho para baixo, em um ímpeto, agarro seu pescoço e puxo para mim. Minha boca apressada encontra a dele ainda fechada, desavisada. Nervoso, ele me abraça pela cintura, os dois sabíamos que a amizade de garotos mudava naquele instante. Talvez aquele seu abraço tenha sido uma tentava de prolongar o momento e teria funcionado caso não nos assustassemos com o um riso alto que inundou a rua. Abro os olhos com o susto e vejo passar um vendedor de pão, empurrando seu carrinho de mão e divertindo-se com as aventuras juvenis. Não o encaro, pego sua mão e puxo rua a fora, para continuar a caminhada sem rumo.

Gota de noite
Enviado por Gota de noite em 26/03/2019
Reeditado em 16/10/2022
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