A Menina que Não Sabia Ler

Foi em São Paulo que ela nasceu e se criou, na década de oitenta. Família liberal, mas ela não. Ela discordava dos costumes familiares, das loucas festas semanais, regadas a álcool e drogas. Que tipo de família é essa, ela pensava. Resolveu sair de casa quando fez vinte anos. Alugou um apartamento pequeno e achou que agora sim, sozinha ela poderia viver decentemente. Poderia se preocupar com seus interesses. Gostava muito de ler mas na casa de sua família era sempre tão barulhento que não conseguia se concentrar. Quando encontrou um trabalho de livreira em uma pequena livraria achou que finalmente tudo estava se encaminhando. Em seu novo trabalho, nos tempos de menor movimento da loja podia folhear vários livros a sua vontade. Chegava a ler diversos livros nessas folheadas, pouco a pouco. Mas ela gostava mesmo é de comprar os livros, de relê-los. Já tinha montado uma estante que ocupava toda uma parede de seu já pequeno apartamento.

Já tinha aumentado sua coleção em algumas centenas de livros, de assuntos diversos, todos lidos e relidos inúmeras vezes.

Mas ela tinha uma peculiaridade. Quando lia algum livro, ela tinha a capacidade de penetrar tão fundo na história, se distrair tão profundamente e através das palavras escritas criar as imagens com imensa facilidade. Mas ela não se contentava em transformar as palavras em imagens. Nos livros em que o escritor não dava uma boa descrição dos locais, das personagens, de suas roupas, suas manias, seus defeitos, seus sotaques, ela mesmo inventava. Atribuía quase que instantaneamente, assim que a personagem aparecia, todas as suas características, virtudes e defeitos. E a cada vez que relia o livro, ela recriava todos as personagens, todos os detalhes, toda a mobília dos cômodos, as fontes das praças, a cor dos pássaros nas árvores; a ponto de criar uma história paralela à do livro. Ela continuava a passar os olhos pelas palavras, a virar as páginas e a começar e terminar os capítulos. Mas as palavras que ela lia já não eram as que o escritor escolheu. Ela substituía todas as palavras por suas próprias. Por onde passava os olhos as palavras iam se transformando, as letras iam se apagando e outras iam aparecendo no lugar. Assim, nunca lia a história inteira de um livro, e quando alguém comentava sobre um livro, ela dizia que sim, que lera, e passava a citar inúmeros trechos que ninguém reconhecia. Falava de personagens que não existiam e de histórias absurdas. Pouco tempo levou para que fosse considerada mentirosa. Ela continuava a citar e a afirmar piamente que não se enganara, mas ninguém mais acreditava. Está louca, diziam.

Foi em pouco tempo que acabou por se trancar em seu pequeno apartamento. Não saia para nada. Pediu demissão na livraria e arranjou um emprego escrevendo resenhas de livros para um jornal bairrista. Deixou alguns anúncios na internet para conseguir ganhar um pouco de dinheiro escrevendo redações para estudantes do segundo e terceiro ano. Comprava cada vez mais livros em lojas on-line e lia pelo menos um ao dia. Comia pouco, e nunca enquanto não terminasse um livro. Comprava somente sopas prontas para não perder tempo e comia uma por dia, logo após terminar o livro diário. Assim que terminava de comer passava para o próximo livro. Quando o dinheiro não dava nem para sopas, nem para livros ela relia os mais novos. E relia como se fosse um outro livro acabado de chegar. Uma nova história, novas personagens.

Até o dia em que comprou um determinado livro. Chamava-se "A menina que não sabia ler". O livro falava sobre uma garota que saiu de casa cedo e passava a vida lendo livros. Mas na verdade ela não os lia. Olhava apenas as letras e as palavras. Admirava-as sem saber o que significavam. Nunca tinha conseguido aprender a ler. Seus pais tentaram diversos colégios e professores particulares, mas ninguém conseguia ensiná-la a ler. E mesmo assim ela continuava a comprar livros diversos e a olhar letra por letra até o final. Sem nunca entender o que elas lhe diziam.

Ela se afeiçoou com a personagem. Sua história a fascinava, não sabia porque. Ela sabia ler, mas por algum motivo aquela história parecia muito com ela. Passaram-se semanas e ela continuava a ler aquele livro. Não comprara mais nenhum outro livro, tampouco suas sopas, pois não tinha dinheiro. Não fazia mais os trabalhos usuais, não checava os pedidos de redações dos alunos, não enviava mais resenhas. Apenas lia; o mesmo livro; o infindável livro. Já oito semanas haviam se passado e, mesmo lendo compulsivamente, emendando vírgulas e pontos finais o livro não terminava. Estava cada vez mais obcecada pelo livro, pela sua história, pela personagem. E cada vez mais fraca. Estava na mesma posição de quando começou o livro. Deitada de bruços, apoiada nos cotovelos, com o rosto seguro pelas mãos, olhar atento, mordendo o lábio inferior. Não se movia; quase não respirava. As pálpebras pendendo, se fechando, tremulando. A expiração exalando e varrendo a poeira de cima da página número sete. Cílios colados à pele. Imóveis.