A SANTA

A SANTA

1

Lembro-me de uma noite de dezembro. Uma mulher deitada numa cama. Os seus olhos estavam secos. Seu nariz afilado tremia. Uma lamparina solitária inundava as paredes com uma luz amarela. A brisa trazia o som de uma canção e as estrelas distantes se esforçavam para diminuir a escuridão. Uma menina de seis anos dormia no berço ao lado da cama. Aquela noite não parecia uma noite comum. Havia um perfume estranho no ar. Uma névoa azul formava um tapete por baixo da cama. Eu tinha a impressão que a casa flutuava. Aquela mulher era minha mãe e a menina era a minha irmã Rita. Elas esperavam alguém. Hoje eu sei que elas esperavam meu pai. Eu sabia que ele tinha ido para uma terra distante em busca de trabalho. Minha mãe dizia que ele ia voltar e em meus sonhos sempre aparecia a sua figura sorrindo, trazendo uma coleção de gibis e um cinturão de caubói com dois revólveres cor de prata, ou então uma boneca de grandes olhos azuis, dessas que fala. Por isso eu não fiquei triste, mas a solidão de minha mãe dentro da noite estrelada fez meu peito doer. Não havia nada em cima da mesa e o fogão de lenha apagado implorava pelas chamas que pudessem afastar o frio que descia das ladeiras. Então resolvi intervir e mudar a situação.

Aquela noite cheia de estrelas mudou a minha vida para sempre.

Minha mãe era uma mulher bonita. Quando chegamos para morar no córrego todos os homens ficaram encantados com a sua beleza. Muitas vezes surpreendi alguns deles puxando conversa com ela, arrastando a asa, querendo coisas.

─ Cadê o seu marido? Porque ele não volta? Você precisa de ajuda, não pode deixar seus filhos passar fome, diziam eles com olhar de águia.

─ Eu posso cuidar deles com meu trabalho de lavar roupa. Não sou uma mulher vagabunda, nem vou trair meu marido, respondia ela com firmeza.

Um dia minha mãe ficou muito doente. O dono da venda foi visitá-la e levou alimento para nós. Minha mãe pensou em recusar, mas acabou aceitando a generosidade do comerciante. Três meses se arrastou sem meu pai voltar. O homem da venda voltou outras vezes revelando sua verdadeira intenção. Minha mãe permaneceu firme no seu propósito de esperar o marido.

2

Agora ela está sentada. Sua sombra dança na parede sob o ritmo da luz amarelada que vem da chama agitada pelo vento. Ao ver a silhueta minha mãe começa a cantar baixinho, para dentro dela, decerto para exorcizar a saudade transformada em bruma que faz a casa flutuar. “Saudade palavra triste /Quando se tem um grande amor /Na estrada longa da vida /Eu vou chorando a minha dor”...

Foi ali, naquele momento, que me veio a idéia que transformou a minha vida. Quando ela terminou a canção eu me aproximei e sentei na cama, ao lado dela.

─ Mamãe! Acho que já sei como a gente pode esperar papai sem a senhora se acabar lavando roupa.

Ela levou o indicador aos lábios pedindo para que eu falasse baixo. Não sei se era para não acordar Rita ou para não quebrar a magia daquele momento, naquela noite de natal. Em sussurros eu falei:

─ A senhora tem uma voz muito bonita e canta muito bem.

Ela riu afagando meus cabelos com ternura. Continuei:

─ Quando está cantando embaixo do ingazeiro, enquanto lava a roupa, o córrego todo para pra ouvir.

─ E daí? Eu nem tinha prestado atenção nisso.

─ Pois é. Até me chamam o Filho da Cigarra, mas eu não ligo. E já me disseram que o dono da mercearia, Seu Raimundo, não pode ouvir a senhora cantar porque vai logo se derretendo como manteiga no fogo.

─ Ah! Seu Raimundo! Ele é um homem bom. Mas você não está querendo que ele tome o lugar de seu pai, não é?

─Claro que não mamãe, nenhum homem pode substituir meu pai. A senhora vai fazer um acordo com Seu Raimundo.

─ Acordo? Que tipo de acordo?

─ A senhora promete a ele que cada dia cantará uma canção. E em troca ele continuará trazendo o alimento para nós.

─ Onde fostes arranjar essa ideia? Parece boa, mas estás esquecendo uma coisa: eu não sou de ferro, poderei ficar doente, a garganta pode ficar irritada, e se teu pai não voltar, onde vou arranjar tanta música?

─ A senhora não cantará no sábado nem no domingo, para descansar a voz. Quanto ao repertório deixe comigo. De tanto ouvir a senhora cantando eu aprendi a compor. Não vai faltar música nem papai irá demorar muito.

Naquele mesmo dia o acordo foi firmado. Antes das onze horas fui à venda de Seu Raimundo com um recado. Ele morava sozinho na parte de trás da casa. Assim que me viu seus olhos se acenderam. Confesso que ao ver as suas bochechas lambuzadas, o bigode se desmanchando sobre os lábios e a careca reluzindo sob a claridade da manhã, tive vontade de sair correndo e dizer à minha mãe que desistisse daquilo tudo. A imagem daquele homem a agarrando embrulhou-me o estômago. Ou teria sido a fome? Dentro da mercearia havia um cheiro gostoso de mortadela e bolo de bacalhau. Quando a voz rouca dele chegou aos meus ouvidos a necessidade deu uma tapa na rejeição:

─ Oi Betinho! Como vai sua mãe? Deseja alguma coisa?

─ Quer falar com o senhor, ela. Hoje ainda!

Os cabelos do bigode do homem se eriçaram. Ele limpou as bochechas com o avental e se ergueu quase num salto.

─ Chego já lá! Pegue um bolo pra você!

Demorei propositadamente na rua para não ouvir a conversa entre minha mãe e o dono da venda. Nas calçadas fiz alguns desenhos e passei um tempão olhando os meninos com suas pipas planando sobre a brisa morna que vinha das matas.

3

Às vezes penso que tudo poderia ter sido tão diferente. Mas existiria realmente outro caminho? Não sei se teria sido melhor ter ficado calado, vendo minha mãe se desmanchando na canção, pensando em meu pai tão distante. Eu sabia que Papai Noel era uma mentira. Imaginar que naquela noite um velhinho de barba branca e barrigudo, vestido de vermelho e azul, pudesse aparecer trazendo meu pai no seu trenó era uma tolice. Não quero acreditar no destino, pois quase tudo o que acontece na nossa vida é fruto de uma escolha. Eu disse quase tudo porque às vezes a vida intervém no rumo da nossa existência e tudo o que podemos fazer é seguir adiante. Um raio que cai, terremotos, enchentes, guerras, são fatores que modificam a vida de muitos.

Voltando às lembranças, naquela tarde, mamãe cantou como nunca. Lembro-me da canção muito bem: “Aos pés da santa cruz Você se ajoelhou /E em nome de Jesus /Um grande amor você jurou...”.

Subi no ingazeiro para verificar a reação das pessoas ante o efeito daquele novo ingrediente na voz de minha mãe. Muitas mulheres começaram a chorar, outras a beijar os filhos, os maridos. Duas adolescentes se abraçaram. Casais correram para suas camas. Homens embriagados se deitaram no chão apontando para o ingazeiro. Tive a impressão que até o céu havia se aproximado do córrego para ouvir minha mãe. Quando desci da árvore ela me falou do acordo.

─ Ficou como a gente tinha conversado, porém com uma coisa a mais: se um dia eu deixar de cantar e o seu pai não tiver aparecido eu terei que aceitar o fato de morar com ele.

─ Essa parte eu não gostei...

─ Agora vai ter que aceitar porque eu já dei a minha palavra. Eu acho que teu pai pode chegar dentro de três a quatro meses. Mas não tenho certeza. Já faz quase um ano que ele não manda nada, nenhuma notícia. Morrer não morreu porque já teriam me dito.

A partir daquele dia, minha preocupação era com o repertório das músicas. Quatro meses, tirando os sábados e domingos, daria um total de oitenta e duas canções. Peguei um caderno para escrever as músicas que a minha mãe sabia. Muitas delas ela não conhecia o título, eu então escrevia a primeira frase, o primeiro verso: Lá vem a mulher que eu gosto... Vai cartinha fechada... Teu mal é comentar o passado... Assim descobri que minha mãe conhecia setenta e nove músicas, o que garantia um pouco mais de três meses de cantoria. Achei um tempo suficiente para aguardar a volta de meu pai, caso ele não viesse mamãe poderia recomeçar. Eu tinha a certeza que ninguém iria se incomodar, tal era o encanto que a voz dela exercia sobre as pessoas.

4

Cumprindo a sua parte no acordo, Seu Raimundo se deslocava, furtivamente, à noite em direção à nossa casa com uma cesta cheia de alimentos e outras coisas necessárias, como querosene, sabão, papel higiênico, etc. Quando ele chegava com as suas bochechas reluzentes eu me escondia por trás do tronco do ingazeiro. Ele trocava algumas palavras com a minha mãe e saía saltitando como um urso desengonçado.

Uma semana depois tivemos uma surpresa: Na segunda-feira, pela manhã, uma comissão de três casais apareceu em minha casa. O homem mais velho, que parecia ser o líder, eu o conhecia. Era Seu Francisco, um engenheiro que morava na casa mais luxuosa do córrego. Suas três filhas deixavam os meninos em polvorosa. Trancafiadas no luxo, gostavam de provocar a libido da turma brincando entre elas de levantar a saia uma da outra. Eu via os meninos excitados e ficava excitado, mas não deixava que percebessem.

─ Bom dia Dona Cassandra! A senhora não me conhece, mas eu conheço a senhora de voz, disse sorrindo. Meu nome é Francisco e acabei de ser nomeado presidente da Associação de Moradores do Córrego do Nozinho e esses são meus auxiliares, Seu Barbosa, Seu Antônio e suas esposas.

Minha mãe fitou-os meio assustada, mas logo se refez.

─ Desculpem-me não ter assento pra todo mundo, mas vamos entrando!

As mulheres se acomodaram nos tamboretes. Seu Francisco retomou a palavra:

─ A Associação não tem nada a ver com a vida íntima dos moradores do córrego, porém, se tratando de um caso que atinge a coletividade, nós temos a obrigação de intervir. A senhora me entende?

Minha mãe com os olhos arregalados, a testa franzida, o nariz tremendo, parecia um corsa acuada por vários predadores. Sua voz soou como um ganido desesperado.

─ O que está acontecendo?

─ Sabemos que o seu marido não aparece há muito tempo e entendemos que é natural a pessoa procurar satisfazer suas necessidades. Soubemos que Seu Raimundo tem visitado a senhora, trazendo alimentos e outras coisas mais. Até aí tudo bem, ninguém tem nada com isso. O problema é que a senhora se tornou de interesse público por causa da sua voz.

─ A minha voz? Como assim?

─ Antes da sua chegada ao córrego a vida aqui era uma merda, desculpe a expressão, mas não há outra. Havia muita briga; muita intriga; por qualquer motivo os homens iam às tapas, muitas mortes até. As mulheres traiam seus maridos descaradamente, as moças não podiam sair à noite com medo de serem atacadas pelos rapazes. Muitas donas de casa viviam fofocando e em consequência seus filhos não tinham a devida atenção que toda criança deve ter, adoeciam constantemente e os maiozinhos ficavam pelas ruas como cães abandonados. A sua voz mudou tudo isso. Lembro-me da primeira vez que ouvi alguém se referir a esse fato. Eu estava na sede de dominó Primeiro de Março conversando com uns amigos, de repente ouvi um zunzunzum vindo da rua. Na certa mais uma briga entre bêbados, pensei comigo. Os amigos correram para ver quem estava brigando. Permaneci onde estava. Com poucos minutos eles voltaram dizendo que os brigões eram Zito Caraolho e Biu Sebinho. Estavam trocando tapas quando subitamente, ao ouvir a senhora cantando se abraçaram e foram para suas casas. Fiquei tão impressionado que não quis mais jogar. Fui para a rua perguntar às pessoas o que tinha acontecido. Contaram-me que não era a primeira vez que aquilo acontecia. Quem é essa mulher? Perguntei curiosíssimo. O nome dela é Cassandra. Ela é novata no córrego, explicou-me dona Esmeralda, a mulher do diretor da sede de dominó. Ela tem dois filhos, um rapazinho de treze ou catorze anos e uma menina beirando os seis anos. Eu soube que o marido dela foi para São Paulo em busca de trabalho e nunca mais voltou. Para sobreviver lava roupa de ganho. Todas as tardes ela se posta debaixo do ingazeiro e mata a saudade do marido cantando. A voz dela é muito bonita. Quando ela canta o córrego para, todo mundo fica fascinado, completou a mulher enfaticamente.

─ Eu também tenho muito a agradecer pela sua voz, Dona Cassandra ─ interveio Seu Barbosa olhando para a esposa como a pedir permissão para falar. Um meio sorriso foi a senha. ─ Eu tenho uma filha, filha única. Não é porque sou pai, mas dizem que é a moça mais bonita do córrego. O nome dela é Iracema. Há cinco anos ela era noiva de um sargento da Aeronáutica e sonhava com o casamento, naturalmente. Antes de a senhora chegar por aqui ele simplesmente acabou o noivado. Minha filha ficou arrasada, passava a maior parte do tempo chorando, não queria comer, entrou em um processo de depressão. Ficamos desesperados. Eu moro duas ruas depois dessa, na parte de baixo, de modo que quando a senhora começa a cantar as folhas das árvores se agitam e o vento amplia a sua voz deixando a gente maravilhada. Foi numa quinta-feira à tarde que o milagre aconteceu. Iracema estava no quarto chorando, não quisera almoçar e pediu pra gente deixá-la sozinha. Encostei a porta e me sentei na espreguiçadeira pedindo a Deus força e paciência para suportar a situação. Foi quando a música desceu com o vento. Lembro-me bem da canção: Um dia você vai sentir falta de mim/ Vai lamentar não ter me amado tanto /Vai procurar o meu corpo e enfim / Encontrará a saudade e um pranto...

Aquele som maravilhoso me tomou completamente. Fechei os olhos e a letra da canção me trouxe lembranças gostosas da minha mocidade, quando conheci minha mulher. De repente, mesmo sem abrir os olhos, senti a presença de alguém perto de mim. Era Iracema. Parecia enfeitiçada, o olhar voltado na direção do som, o semblante sereno. Pensei em abraçá-la, mas desisti da ideia. Podia quebrar o encanto. Quando a música terminou, ela me fitou dizendo: “Meu pai! Nunca mais vai chorar por homem algum”.

─ Também tenho uma coisa pra dizer, disse a mulher de Seu Antônio aproveitando a pausa na conversação. Perto de mim mora um casal que só vivia brigando. O homem era viciado em jogo de baralho e a mulher louca por dança. Bater nela ele não batia, mas discutiam muito, principalmente tarde da noite quando ele chegava do jogo sem dinheiro e bêbado. Num sábado à tarde, os dois estavam sentados na calçada da casa quando a senhora começou a cantar uma música que fala de estrelas salpicando o chão, cabrocha, violão, uma coisa linda. Meus vizinhos se olharam, levantaram-se de mãos dadas e entraram. Naquele sábado os dois dançaram até de manhã na sede de dominó e de lá pra cá nunca mais ouvi discussão entre eles.

─ Como a senhora ouviu, estamos aqui primeiro para agradecer por esse dom maravilhoso que trouxe a paz para o córrego ─ retomou Seu Francisco a palavra ─ e segundo para reparar a nossa falha em não recompensá-la por isso. Ao saber que o dono da venda vem lhe ajudando despertamos para o caso. Enquanto seu marido não voltar nada vai faltar para a senhora e seus filhos. Nós só queremos continuar ouvindo a sua voz. E acho até que a gente podia levar a senhora para cantar na festa da minha posse como presidente.

─ Podemos até contratá-la como cantora oficial para animar os nossos bailes, emendou Seu Antônio, o único que ainda não tinha falado.

Ao ouvir aquelas palavras eu delirei de alegria. Minha mãe estava livre do compromisso que assumira com Seu Raimundo.

─ Eu sinto muito Seu Francisco, mas não posso aceitar. Já dei a minha palavra para o senhor Raimundo. O senhor há de compreender. Quando fiquei doente ele foi a primeira e única pessoa a me socorrer. Trouxe remédios e alimento para meus filhos e para mim.

─ Ele não pediu nada em troca? Perguntou Seu Barbosa com sua voz grave.

Minha mãe baixou o olhar. Acho que procurava um buraco para desaparecer dali. Tive a impressão que Seu Francisco lera o pensamento dela.

─ Tudo bem Dona Cassandra, a senhora não precisa dizer mais nada, disse o senhor Francisco. Nós vamos conversar com Seu Raimundo. Não é justo se aproveitar da sua situação. Sabemos que a razão e a inspiração para que a senhora cante tão bem é a saudade e o amor que tem pelo marido que partiu. Tem sido um exemplo para as mulheres do córrego. Claro que ele tem o direito de sonhar, esperando por uma chance, mas é desonesto coagi-la, constrangendo-a, tirando proveito da situação.

Quando os casais desapareceram por trás das touceiras de capim que circundam a minha casa corri para junto de minha mãe. Como sempre em situação de crise seu nariz tremulava como tremulam as camadas de terra que cobrem os vulcões na eminência de uma erupção.

─ Não sei o que vou dizer para o dono da venda, disse ela olhando as casas de taipa recém-construídas nas ladeiras do monte oposto.

─ A senhora não vai dizer nada ─ retruquei bruscamente sentando em um dos tamboretes que ainda estava quente em decorrência do uso acidental. ─ Eu ouvi bem quando Seu Francisco disse que ia falar com ele. Acho melhor a senhora nem cantar hoje.

─ Quem disse que eu vou cantar? Depois disso tudo só me resta rezar pra que Urbano apareça.

5

Quem apareceu no outro dia bufando de raiva foi o dono da venda.

─ A senhora não pode fazer isso comigo!

─ O que foi que eu fiz?

─ O presidente da associação veio me intimar dizendo que eu estava me aproveitando da sua situação! Que história é essa? Porque você foi contar para estranhos o que a gente tinha acertado?

─ Eu não falei nada. Eles estiveram aqui sem que eu chamasse. Disseram que iam me ajudar até a volta do meu marido.

─ Que ajudem! Só não podem se meter na minha vida, ora essa! Todo esse tempo eles não ligaram pra você. Depois que viram a minha ação vêm com essa frescura. A minha parte do acordo vou cumprir. Sou um homem de palavra.

─ Vamos fazer o seguinte: eu também cumpro com a minha. Todo dia eu vou cantar, mas o senhor não precisa trazer nada para mim. Desse modo ninguém poderá dizer que o senhor está me obrigando. Se o meu marido não voltar dentro de seis meses a gente se acerta.

─ Mas fica em pé o fato de se falhar um dia eu posso exigir a minha parte, não é?

─ O senhor está sendo cruel. Se eu ficar doente, ou precisar me ausentar por um dia, claro que não poderei cantar. O senhor há de compreender.

─ Tudo bem Cassandra, claro que compreenderei. Não sou o bicho que essas pessoas falam.

6

E foi assim que tudo começou. Quando eu chegava da escola fazia os deveres e em seguida me certificava da música que minha mãe ia cantar. Às vezes ela me surpreendia cantando uma canção diferente ou um cordel com história engraçada ou romântica. Um deles que nunca saiu da minha memória foi O Pavão Misterioso. A história de um ladrão audacioso que resolveu roubar a princesa filha de um rei na Turquia utilizando um enorme pavão de lata. Levou uma semana para cantar o cordel, o que deixou as pessoas alucinadas, pois sempre ela deixava em o povo em suspense quando o famoso ladrão ou a princesa se encontrava em perigo. Às quatro horas da tarde as ruas ficavam vazias, nenhum movimento nas bodegas, nenhum rádio ligado. Todo o córrego parava para ouvir e saber como o ladrão-herói tinha se saído. Depois da cantoria o rebuliço recomeçava. Todo mundo comentando o cordel ou relembrando coisas passadas quando ouviam uma canção. O fato inusitado logo se incorporou em nossa rotina com um ritual bem definido. Antes de começar a cantar minha mãe se ajoelhava à beira da cama e fazia uma oração para Nossa Senhora das Almas Perdidas. Eu tinha certeza que ela estava pedindo à santa pela volta de meu pai. Mesmo sem roupa para lavar ela só pegava o tom depois de bater três vezes no tonel onde a bica improvisada que meu pai fizera fazia cair a água da chuva, verdadeiro tesouro para nós que tínhamos que apanhar água em uma cacimba distante no pé da ladeira. Àquela hora do dia o sol começava a se inclinar e os seus raios tangenciavam a copa do ingazeiro. Quem estivesse em baixo, ou seja, as casas que ficavam na rua principal do vale tinham uma visão teatral do quadro: Minha casa rodeada por touceiras de capim, pintada de amarelo e com as telhas avermelhadas se assemelhava a uma gigantesca galinha sem cabeça chocando seus pintinhos. O topo do ingazeiro brilhando como uma coroa cor de ouro e logo abaixo das folhas minha mãe vestida de branco parecia uma deusa vestal preparada para o sacrifício. Eu nunca podia imaginar que aquela ideia tomasse tamanha proporção. As pessoas passaram a reger suas obrigações em função da hora que minha mãe cantava. Antes ou depois do canto? Várias casas de jogo de bicho passaram a oferecer nova modalidade de aposta baseada na probabilidade do jogador acertar a canção ou o nome do cantor ou mesmo o compositor. Do dia para a noite os montes que espremem o córrego do Nozinho tiveram suas encostas invadidas por novas moradias das pessoas atraídas pela voz de minha mãe. Todo sábado a associação dos moradores enviava uma cesta repleta de mantimentos e outros produtos necessários à nossa subsistência. Nas tardes chuvosas eu segurava um guarda-chuva enquanto minha mãe cumpria a sua obrigação.

Quando o presidente da Associação de Moradores sugeriu a reforma de nossa casa comecei a perguntar aonde aquela minha ideia inicial iria nos levar. Depois de cinco meses sem nenhuma notícia do meu pai as canções que minha cantava era o único elo que não deixava a esperança se apagar. A preocupação em se manter o acordo passou a ser o motivo principal da nossa vida. Em primeiro lugar mamãe não podia adoecer. A menor alteração na sua voz me levava ao desespero. Ao acordar eu corria para seu quarto pedindo a bênção, mais interessado na condição da sua garganta do que na bondade divina. Mesmo a contragosto dela eu mantinha um copo com cascas de romã e água sobre o surdo-mudo que foi doado por uma vizinha. Em segundo vinha o repertório, o qual eu supervisionava com muito cuidado, como já expliquei. Esqueci-me de dizer, entretanto, que minha sensibilidade poética muito me ajudou. Eu escolhia as músicas de acordo com o tempo, as datas, ou o contexto atual. Nos dias claros, nas tardes ensolaradas escolhia uma canção que fizesse referência à natureza, porém com fundo romântico, como a canção “A deusa da minha rua/tem os olhos onde a lua costuma se embriagar/nos seus olhos eu suponho que o sol num dourado sonho/vai claridade buscar”. No mês de junho selecionei as músicas de Luis Gonzaga que falam das festas, das fogueiras, do milho, do céu estrelado. Certa vez dois rapazes foram atropelados pelo ônibus que circula na avenida principal do bairro. Eles eram muito amigos e filhos de moradores antigos. Bonitos, faziam sucesso nas gafieiras ou nos assustados. Uma comoção tomou conta do córrego. Minha mãe em solidariedade aos moradores resolveu não cantar no dia após o acidente. Não fiquei preocupado com tal fato uma vez que era perfeitamente razoável que os habitantes e seu Raimundo compreendessem a razão. Entretanto, naquele dia, logo depois do almoço, uma moça muito bonita bateu na porta de minha casa.

─ Dona Cassandra, eu vim pedir um favor pra senhora! Disse ela com os olhos vermelhos.

─ Se eu puder..., respondeu minha mãe com sua serenidade habitual.

─ Um rapaz que morreu no acidente era meu namorado. Lourival o nome dele. Era um pouco farrista e gostava muito de dançar. A gente arengava muito, mas sempre terminava bem. Quando a senhora começou a cantar ele começou a mudar, passou a me tratar com mais carinho. (Minha mãe começou a chorar também). Ao voltar do cemitério a dor pela sua morte, pela sua ausência se tornou insuportável, então me lembrei da senhora e do seu canto milagroso.

─ O povo que diz minha filha!

─ Mas é verdade. Vi com estes olhos que a terra há de comer. Por isso eu queria lhe pedir pra cantar, pois eu soube que hoje não haveria canção em homenagem aos mortos. Tenho certeza que onde o meu Lourival estiver há de ouvir e se lembrará dos momentos que estivemos juntos.

─ Está bem. Eu sei o que é saudade. Mas lhe digo uma coisa: você é que tem sorte, pois sua situação é definida. O seu namorado não volta mais e pronto. Logo o tempo vai curar a sua dor. A lembrança deixará de doer e irá se transformar numa estrela a lhe contemplar lá do infinito. O mais triste é a minha sina. Uma dúvida que me consome a alma, se não fosse a música eu já tinha enlouquecido, tenho certeza.

Naquela tarde mamãe cantou “Quando eu morrer no outro mundo esperarei por ti”, e antes de a música terminar o céu ficou cinzento e uma chuva fina começou a cair. Anos mais tarde surgiu a lenda de que os moradores choraram tanto que as lágrimas formaram uma grande enchente deixando o córrego ainda mais escavado.

7

Arrebatado pela emoção do momento, esqueci-me de proteger minha mãe da chuva. À noite ela começou a espirrar convulsivamente. Eu entrei em pânico.

─ Não há de ser nada, filho, é só um resfriado, vou tomar água com limão e logo fico boa, disse ela vendo a minha perturbação.

Acordou pior ainda. A voz rouca, o corpo trêmulo, o olhar descaído. Tomei a iniciativa: coloquei água no fogo para fazer café. Fiz papa para minha irmã Rita, escolhi o feijão para o almoço e por fim fiz chá com folhas de laranja. Ouvira dizer que era bom para gripe. Naquela semana ninguém no córrego ouviu a voz de minha mãe. Presumi acertadamente que devido à morte dos rapazes era natural que as pessoas admitissem aquele luto prolongado, porém tal premissa não foi suficiente para o dono da venda. Na noite de sábado ele apareceu, furtivamente, como sempre.

─ Cadê tua mãe garoto? Perguntou ele rispidamente.

Garoto? Então não tenho mais nome? Senti vontade de esbofetear aquelas bochechas reluzentes.

─ Ela está de cama, adoentada.

─ É uma gripe forte Seu Raimundo, disse minha mãe esforçando-se para demonstrar normalidade.

─ Posso entrar?

─ Claro. Entre e sente um pouco, chego já aí!

O homem da venda se acomodou em um dos tamboretes junto da máquina de costura manual. A luz amarelada da lamparina transformou as feições dele numa máscara macabra. Os dedos roliços tamborilando sobre a coxa pareciam digitar uma sentença de morte. Minha mãe apareceu no umbral da porta parecendo a figura estilizada de uma madona que acabara de perder o filho. Os olhos fundos e o riso cadavérico deu a impressão que ela saia de um túmulo.

─ Então você parou de cantar?

─ Esta semana foi horrível. Alem da terrível morte dos meninos eu adoeci.

─ Você parece mesmo muito abatida, porque não me mandou avisar.

─ Carecia não Seu Raimundo, tenho certeza que segunda feira eu estarei boa. Não é a primeira vez que fico doente.

─ Está perto de fazer os seis meses. Está lembrada do nosso trato, não?

Minha mãe esboçou um sorriso entristecido. Será mesmo que ela vai topar morar com esse cara de urso velho?

Na segunda mamãe amanheceu ainda mais abatida. Os olhos mais fundos, quase sem voz. Não a deixei sair da cama. Novamente assumi as obrigações de uma dona de casa. Depois do almoço mamãe me chamou e quase em sussurro disse-me que não aguentava mais.

─ Betinho você já está do meu tamanho, já tem idade para compreender. Seu pai não dá notícia e eu estou ficando cada vez mais fraca. As pessoas e seu Raimundo tem nos ajudado, mas isso não pode durar a vida inteira. Vou aceitar a proposta dele, pelo menos você e sua irmã vão ter uma condição melhor.

─ Não mamãe! Não faça isso! ─ Gritei desesperado. A figura asquerosa do dono da venda tinha muito mais peso do que o abandono que meu pai nos dava. ─ Olhe! Vamos continuar pelo menos mais um mês, que sabe papai não aparece?

─ Como meu filho? Não vê que não posso cantar? Quando não ouvirem a minha voz as pessoas deixarão de ajudar.

─ Deixe comigo, vai dar tudo certo! Tome o remédio que seu Raimundo mandou e não saia da cama.

Enquanto conversava com ela eu contemplava as nossas imagens no espelho do guarda-roupa. Como já disse minha mãe era bonita. O nariz afilado, sobrancelhas negras bem desenhadas sobre os olhos negros e pequenos. O cabelo liso e longo, quase sempre preso no alto da cabeça por um lenço ou um berilo. O corpo bem distribuído sobre belas pernas costumava atrair a atenção dos homens. Eu adorava tomá-la como modelo para criar os vestidos que desenhava. Com lápis e papel na mão eu registrava em rápidos esboços a sua imagem se movimentando no interior da casa. Eram inúmeras poses que depois eu cobria com os vestidos mais lindos do mundo.

De repente uma idéia!

Em princípio louca, surreal, porém arrebatadora. Às vezes tenho a impressão que todas as forças do universo, todas as vertentes, todas as circunstâncias existenciais foram criadas para a explosão daquela luz que começou a piscar loucamente na minha cabeça. Aos poucos os acessórios foram se incorporando como as peças menores de uma grande construção: O tamanho dela era igual ao meu. Eu não tinha o nariz afilado, mas as sobrancelhas tinham o mesmo desenho. Imitar-lhe a voz era coisa que eu mais gostava de fazer quando cantava para Rita dormir.

─ Eu vou cantar no seu lugar! Exclamei com uma naturalidade que eu mesmo me espantei.

─ O quê? Mais uma das suas loucuras! É claro que não vão aceitar. Uma coisa é uma mulher inspirada pela saudade cantar para suportar a dor da espera, gerando a esperança nos homens de um dia tê-la nos braços se o marido não voltar. Se você for me substituir não é a mesma coisa. As pessoas ficarão frustradas, principalmente Seu Raimundo. Não. Você não vai fazer isso!

─ Eles não vão perceber que sou eu. A senhora canta debaixo do pé de ingá, quando a sol começa a esticar as sombras. Vou deixar escurecer mais um pouco, e então me disfarço, visto a roupa da senhora, ponho um véu na cabeça e solto a voz. Tenho certeza que ninguém vai notar. Já sei até a canção que vou cantar.

─ Você vestido de mulher! Se Urbano souber disso. E qual é a música que vais cantar?

Aquela pergunta significava que a ideia havia rompido uma barreira. Mais do que isso, ela se equiparava à retirada da tampa da caixa de Pandora. Naquele momento mágico a casa de taipa, sem água encanada, sem luz elétrica, sem piso de cimento se transformou em uma mansão faraônica. Minha mãe, rodeada de criados, inspecionava a entrega de alimentos comprados com o dinheiro da venda dos vestidos criados por mim, aos pobres da região. No suntuoso salão da mansão minha irmã Rita, já moça feita, dançava com um urso desengonçado de bochechas reluzentes. Um gigantesco tapete de bruma azul fazia a mansão flutuar sobre um abismo escuro de onde eu escutava os gritos dos homens e mulheres açoitadas por religiosos de toda parte. Da imensa escuridão vinham também sussurros e grunhidos que deixaram a minha alma apavorada. Mas toda essa visão logo desapareceu quando me veio à mente a resposta da pergunta.

─ Mamãe! Vou cantar essa música para a senhora!

─ Qual música? Você não disse!

─ O titulo dessa valsa é Mamãe. Aprendi na escola no dia das mães. Não vou adiantar nada da letra, pois quero guardar a emoção para daqui há pouco. Agora se deite que eu vou me transformar.

8

Depois que saí do quarto minha preocupação era com a minha irmã Rita. Ela não podia saber que eu ia substituir mamãe por alguns minutos. Felizmente, naquela parte do dia ela costumava dormir. Mamãe sempre aquecia a voz cantando baixinho enquanto ela enfiava o polegar na boca e adormecia, cansada de tanto brincar com as filhas de Dona Nazaré, nossa vizinha de baixo. Com muito cuidado para não acordá-la comecei a transformação. De tanto desenhar vestidos e brincar com as bonecas de Rita não encontrei nenhuma dificuldade. Comecei por cima, naturalmente. Ajeitei os cabelos no alto da cabeça e os envolvi com o lenço branco preferido de minha mãe. Minha imagem no espelho piscou-me um olho e disse:

─ Você está linda!

Com a autoestima em cima preenchi um sutiã com algodão e o prendi sobre os peitos, pus uma blusa azul por cima e deliciei-me com minhas novas formas. Vesti uma longa saia branca por cima do calção e, basicamente, para o que eu pretendia aquilo era suficiente. Protegido pelo ingazeiro e pelas sombras do anoitecer eu tinha certeza que ninguém iria perceber a fraude. Voltei ao espelho para ver o resultado da transformação.

─ Arrasou! Exclamou o meu inverso com excitação.

Enquanto esperava o sol ficar mais perto do horizonte, iniciei alguns exercícios de respiração e aquecimento da voz, sempre com cuidado para não acordar Rita. De tanto ouvir mamãe cantar eu já sabia o seu tom, o timbre, as inflexões e as modulações que caracterizavam as emoções. Nesta parte eu estava tranquilo. O que me perturbava era não saber até quando aquilo iria durar, fato este obviamente ligado à volta do meu pai. Das vezes anteriores o tempo de ausência não passara de quatro meses. Dessa vez se aproximava dos seis. Minha intuição dizia que a qualquer momento ele surgiria no meio daquelas touceiras de capim com seu sorriso de moleque atrevido e o cheiro de aguardente nos lábios.

Cinco horas da tarde. Hora de começar o espetáculo. De dentro da casa já começo a ouvir um vozeio vindo do fundo do córrego. O céu desce mais um pouco e as estrelas anunciam a hora da estrela. Com o coração aos pulos me dirijo para o palco com a certeza que depois daquele dia eu nunca mais seria o mesmo. Respiro fundo, dou três tapinhas no tonel e começo a cantar: “Ela é a dona de tudo /Ela é a rainha do lar /Ela vale mais para mim /Que o céu, que a terra, que o mar /Ela é a palavra mais linda /Que um dia o poeta escreveu /Ela é o tesouro que o pobre /Das mãos do Senhor recebeu”,

As folhas do ingazeiro funcionando como minúsculos instrumentos de retorno trazem aos meus ouvidos a voz de mamãe. No tempo de uma colcheia para a respiração, preparando para cantar o início da segunda estrofe algo indefinível aconteceu: Senti o espírito de minha mãe se apossar do meu corpo. Ela vinha em meu socorro, pois a emoção ameaçava atrapalhar todo o plano. O refrão explodiu com a força de uma bomba nuclear: “Mamãe, mamãe, mamãe /Tu és a razão dos meus dias /... Mamãe, mamãe, mamãe /Eu te lembro chinelo na mão /O avental todo sujo de ovo /Se eu pudesse /Eu queria outra vez mamãe /Começar tudo, tudo de novo”.

Naquela noite mamãe agradeceu pessoalmente às pessoas pelos alimentos e demais produtos doados. Ficaram tão emocionadas com a canção que nem esperaram o sábado para nos trazer a ajuda.

Ninguém percebeu que ela estava doente.

9

No sábado seguinte Seu Francisco, o Presidente da Associação de Moradores, veio nos visitar. Um belo buquê de flores foi o sinal de que ali tinha coisa. A cabeleira negra lustrando de tanta brilhantina. A camisa xadrez meio aberta deixava aparecer um grosso cordão de ouro sustentando um crucifixo que destoava completamente do contexto. Mamãe havia melhorado e o recebeu com reservas, porém com muita serenidade. Sentado à mesa da cozinha eu senti vontade de vomitar quando o perfume almiscarado dele inundou o aposento.

─ Estas flores são para você Cassandra.

─ Ora Seu Francisco, não precisava.

─ Como não? Esta semana você cantou como nunca. Chorei como menino ao ouvir aquela música da segunda-feira. Fazia tempo que eu não via minha mãe. E aquela do lencinho branco? Sabe Cassandra, a cada semana você está melhor.

Mamãe desviou o olhar para o chão. Achei bom. Se olhasse para mim tenho certeza que eu daria uma grande gargalhada. Seu Francisco continuou:

─ Você não quer morar em uma casa melhor do que esta? Uma casa com água encanada, luz elétrica, em um local baixo? Tenho certeza que eu consigo junto com os moradores. Andei conversado com uns amigos e falaram até em levar você para cantar na rádio, fazer carreira.

─ Deus me livre seu Luis! O que vou dizer a Urbano quando ele voltar? Não. O que me faz cantar assim é a saudade. Quando ele voltar tudo isso vai passar, o senhor vai ver.

Mal acabava de pronunciar tais palavras quando assomou à porta o senhor Antônio também com um buquê de flores na mão. Nas minhas andanças pelas ruas e ladeiras do córrego eu descobrira que ele era conhecido como Antônio Santa Cruz, por causa do seu fanatismo pelo clube. Sua casa, seus móveis, suas vestes, as roupas da mulher, dos filhos, tudo ostentava as três cores (vermelho preto e branco). Quando surgiu na frente da casa com a calça preta, a camisa tricolor e um dente de ouro no sorriso obsceno, eu fiz força para não sorrir.

─ Vejo que teve a mesma ideia que eu! Exclamou o senhor Francisco com um sorriso amarelo.

─ Eu não poderia deixar de homenagear a mais bela voz que já ouvi em toda minha vida, respondeu o tricolor entregando o buquê à minha mãe. Ela agradeceu e em seguida me chamou:

─ Beto! Venha cá! Leve estas flores e ponha na bacia com água.

Ergui-me da cadeira na ponta dos pés. Na verdade se eu pudesse sairia voando, pegaria aqueles homens pela beca levava-os para o alto e os soltaria nas nuvens. Ao passar perto do Presidente da Associação ele disse:

─ Veja Antônio como ele se parece com a mãe.

─ É mesmo! Tirando o nariz é a cara dela!

Peguei rapidamente as flores e corri para o quintal, joguei-as dentro do tonel e ao me voltar para retornar eu vi uma fileira de homens, mulheres e até crianças caminhando pela ladeira em direção à minha casa. Fiquei assustado. Imagina se meu pai chegasse nessa hora? E se mamãe acabasse revelando que não era ela quem havia cantado naqueles últimos dias? Eu não tinha a menor ideia do que poderia acontecer. Corri para dentro de casa e gritei:

─ Mamãe! Eles estão vindo!

─ O que é isso menino? Quem está vindo? Teu pai?

─ Queria eu que fosse! É o córrego inteiro!

─ Parece que todos tiveram a mesma ideia que a gente, disse o senhor Francisco com expressão grave.

─ Deus do céu! Isto não vai dar certo. Eu não devia ter aceitado as tuas idéias. Minha casa não cabe tanta gente! Seu Francisco! Seu Antônio! Ajude-me, por favor!

─ Vou ver o que posso fazer, disse o senhor Francisco correndo para frente da casa. Dei a volta pelo beco e fiquei perto dele. O que vi deixou-me estarrecido. Pareciam enfeitiçados. Alguns homens traziam mais flores, mulheres carregavam presentes, crianças ostentavam muletas demonstrando que haviam sido curadas, meninas conduziam crucifixos confeccionados com galhos secos. Quando me viram começaram a cantar:

─ Cassandra é nossa santa! Cassandra é nossa santa!

Aquelas palavras me fizeram lembrar a última canção que cantara debaixo do ingazeiro: Porta Aberta: Vinha por este mundo sem um teto /dormia as noites num banco tosco de jardim /sem ter a proteção de um afeto/ todas as portas estavam fechadas para mim /Mas Deus, que tudo vê e nos consola /em seu Sagrado templo me acolheu /e, além de me ofertar aquela esmola /meu destino transformou /meu sofrimento acabou e a minha vida renasceu /Porta aberta /tendo o emblema de uma cruz /essa porta não se fecha /contra ela não há queixa /são os braços de Jesus. Porta aberta /por Jesus de Nazaré /desvendou-me o bom caminho /hoje é o meu doce ninho /novamente deu-me a fé. Porta aberta/ já não vivo mais ao léu /Porta aberta /ao transpor-te entrei no céu /Porta aberta /nunca mais hei de esquecer /és na terra a minha luz /o bem que me conduz/ desde o berço até morrer.

Fora a única música com tema religioso que eu ouvira mamãe cantar. Teria sido a letra ou a minha interpretação a causa daquilo tudo? Enquanto minha cabeça girava buscando uma explicação o Presidente da Associação postou-se na beira do barranco, ergueu os braços e gritou:

─ Pessoal! O que vieram fazer aqui?

─ Queremos ver a nossa santa! Responderam em uníssono. Uma senhora de cabelos grisalhos se destacou e falou em voz alta:

─Temos alguns doentes e aleijados que podem ser curados com o canto milagroso de dona Cassandra!

─ Tudo bem. Entendo o que vocês sentem, mas hoje não é dia de Dona Cassandra cantar. Ela precisa descansar a voz para recomeçar na segunda-feira. Voltem para suas casas e deixem a cantora descansar.

─ Nós não queremos que ela cante! Gritou uma moça apoiada em muletas de alumínio, só queremos vê-la!

─ É isso mesmo! Queremos ver a nossa santa! Gritaram os outros e continuaram cantando cada vez mais forte: Cassandra! Cassandra!

Assustado, corri para dentro de casa. Estranhei a serenidade de minha mãe. Calmamente ela foi até o quarto pegou a mão de Rita e se dirigiu a mim:

─ Leve sua irmã para a casa de dona Nazaré enquanto isso se resolve.

Eu quis recusar àquela ordem, mas o olhar firme dela me venceu. Por trás desci para a casa da vizinha. Dona Nazaré estava assustada, mas procurou demonstrar calma.

─ Fiquem aqui dentro que vou ver o que está acontecendo. E saiu trancando a porta.

Aquela prisão improvisada foi uma das piores coisas da minha vida. O canto dos moradores gritando o nome de mamãe nunca mais saiu da minha cabeça. De repente fez-se um silêncio e pude ouvir a voz do Presidente da Associação:

─ Pessoal! Fiquem onde estão! Daí mesmo vocês vão ver dona Cassandra. Vou trazê-la até aqui. Ela vai ficar cinco minutos e dirá algumas palavras.

Algumas palavras! Gelei. O motivo da sua serenidade quando me mandou trazer Rita surgiu abruptamente. Ela resolvera revelar nosso segredo. Para ela aquela era a única solução possível de acabar com aquilo tudo.

Na ânsia de ver o que estava acontecendo subi no guarda-roupa do quarto principal da casa. Como esta ficava em um plano mais baixo do que a minha deduzi que destelhando naquele local eu poderia ver o barranco onde mamãe ia aparecer. Afastar as telhas custou-me certo esforço, mas deu certo. Os moradores voltaram a gritar o seu nome e então ela apareceu. Estava linda, apesar do ar abatido. Os cabelos negros esvoaçando soltavam pequenos diamantes sob a luz brilhante do sol. O nariz afilado não tremia e os olhos pareciam contemplar o paraíso. Segurando o cachecol sobre o peito ergueu a mão direita e disse:

─ Minha gente! Eu não mereço esta homenagem! Na verdade quem cantou nesta semana foi...

De repente ouvi o som de um tiro e minha mãe se torceu desaparecendo do meu raio de visão.

10

Dez anos depois eu encontrei meu pai. Na verdade ele me encontrou sem saber quem eu era. Passava da meia-noite e o movimento na boate começava a melhorar à medida que se aproximava a hora da apresentação das drag-queen. O público, na maioria homens solitários e casais modernos, adorava o espetáculo que apresentávamos: uma peça irreverente recheada com músicas da velha-guarda. Naquela noite o enredo seria baseado na letra da música Vingança, composição de Lupicínio Rodrigues. Como sempre fui escalado para fechar o número cantando a canção imortalizada por Dalva de Oliveira. Antes de completar o último verso um homem magro, moreno, vestindo uma camisa surrada e calça desbotada se aproximou de mim. Era meu pai. Estremeci da cabeça aos pés e fiquei ali, no meio do palco, paralisado (ou paralisada). As outras drags perceberam a minha condição e me cercaram. Respirei fundo e disse:

─ Não se preocupem! Eu estou bem, É apenas um antigo conhecido. Vou falar com ele.

Mesmo com as pernas tremendo consegui conduzir meu pai para um lugar reservado. Ele não tirava o olhar do meu rosto e por um momento senti que meu nariz queria tremer. Assim que sentamos ele falou:

─ Desculpe, eu ia passando na frente da boate e vi o seu retrato no cartaz. Achei você muito parecida com uma pessoa que eu conheci. Rita é o seu nome artístico, não é?

A vida prega peça na gente. Não escolhemos nossos pais, assim como eles também não escolheram os pais deles. Aquele homem na minha frente havia sido criado por uma irmã. E só veio saber disso quando já era um rapaz. Aquela situação foi criada por causa do alcoolismo de meus avós paternos. Talvez isso tenha sido a razão pela qual minha mãe tanto se apaixonara por ele, a ponto de suportar tanto sofrimento. Não, eu não conseguia sentir ódio dele a ponto de esconder toda a verdade e deixá-lo sair daquela boate como um prego batido e revirado destinado à ferrugem do esquecimento. Era uma questão de justiça ele saber o que tinha acontecido com sua mulher e os filhos, mas antes de revelar toda a verdade, eu precisava saber o que tinha acontecido com ele. Por isso respondi sua pergunta com outra:

─ O senhor é casado?

─ Fui casado, agora sou viúvo, minha mulher morreu há dez anos.

─ Morreu de quê?

─ Na verdade eu não sei do que ela morreu, aliás, nem sei se ela morreu mesmo.

─ Como assim?

─ Eu estava em São Paulo trabalhando na construção de um prédio enorme, quando acabou o serviço fui para Brasília e acabei me demorando. Quando voltei fui até o Córrego do Nozinho onde a gente morava. Encontrei tudo diferente. A casa era outra, de alvenaria, derrubaram o pé de ingá, e o danado foi que ninguém me explicou o que realmente aconteceu com minha mulher e meus filhos. Parece haver uma conspiração do silêncio por lá. Procurei no comissariado alguma notícia, mas não havia registro de nada. Simplesmente Cassandra e meus filhos Gilberto e Rita desapareceram, sumiram, se evaporaram. Coisa muito estranha.

─ Como é seu nome?

─ Urbano.

─ Bem seu Urbano; vou contar o que aconteceu. Meu nome não é Rita. Meu nome é...

─ Cassandra! É você mesmo?

Seu Raimundo! Eu nunca esqueceria aquelas bochechas sebosa. Ele estava completamente careca e mais gordo ainda. Via-se claramente que estava bêbado. Tentou me agarrar, mas meu pai impediu.

─ Sai pra lá filho da puta! Exclamou o dono da venda segurando na gola da camisa de papai. Essa rapariga me deve muito favor!

─ Vou mostrar quem é filho da puta! Gritou meu pai, e num gesto rápido tirou uma faca da cintura enfiando-a quase completamente na barriga do comerciante. O velho urso deu um urro e caiu se esvaindo em sangue. Em poucos minutos estava morto. Na confusão a minha peruca acabou saindo da cabeça. Com calma retirei os brincos, os cílios postiços, embebi uma toalha de mesa em refrigerante e comecei a retirar a maquiagem. A certa altura meu pai exclamou:

─ Meu filho!

Quando a polícia chegou ainda estávamos abraçados como dois amantes em uma noite suja. Na delegacia eu assumi a autoria do crime. Estava tão satisfeito com aquela vingança imprevista que não me importava de apodrecer na cadeia. Enquanto esperava a chegada do advogado contei para meu pai tudo o que tinha acontecido. Pela primeira vez eu o vi chorar. E com a voz embargada ele perguntou:

─ Então eles devoraram Cassandra?

─ Do relato que Dona Nazaré me fez foi o que deduzi. Quando a imagem de mamãe saiu do meu raio de visão eu fiquei paralisado por alguns segundos, fitando o vazio que ela deixara. Após o tiro seguiu-se um rápido silêncio e em seguida a gritaria recomeçou. Preso dentro da casa eu senti o chão tremer. Rita e as filhas de dona Nazaré começaram a chorar. Desesperado, comecei a bater na porta com um tamborete, tentando arrombá-la. Foi quando Dona Nazaré reapareceu. O tremor e o barulho cessaram. Ela parecia transtornada, os olhos arregalados, seus lábios tremiam ante o esforço de pronunciar alguma coisa. Passei por ela como um raio subindo para onde era a minha casa. Eles haviam levado tudo! Gritei por mamãe com toda a força do meu ser e a resposta foi o eco vindo lá do fundo do córrego: Mamãe! Mamãe! Mamãe! Cada vez mais desorientado voltei para a casa de Dona Nazaré em busca de uma explicação.

─ Havia muita gente Betinho, disse ela, pareciam enfeitiçados gritando o nome de sua mãe. Entrei no meio da turba tentando me aproximar dela e ouvi algumas mulheres expressar raiva de Dona Cassandra. Essa puta se fazendo de santa! Roubadora de maridos! Cachorra! Era uma minoria. Afastei-me delas procurando não perder sua mãe de vista. Quando ela levantou a mão para falar alguma coisa alguém atirou. Foi horrível. Quando ela se torceu sobre si mesmo eles se precipitaram sobre o seu corpo. Homens, mulheres, jovens, nunca vi nada igual. Todos queriam um pedaço dela. Quando o corpo sumiu eles começaram a pegar as coisas, os objetos, as roupas, os sapatos, até os umbrais das portas e das janelas eles arrancaram. Foi horrível.

Naquele mesmo dia resolvi sair do Córrego do Nozinho. Dona Nazaré levou Rita para morar com uma irmã que tinha uma casa em Rio Doce. De vez em quando vou visitá-la. Ela esta bem. Arranjei trabalho em um supermercado na Encruzilhada até que um amigo me convidou para cantar em uma casa noturna. Achei bom porque passei a ganhar mais alguns trocados. Só que teve um problema: eu só conseguia cantar vestido de mulher.

─ Como assim?

─ Foi numa noite de segunda-feira. Normalmente o movimento é mais fraco e o gerente aproveita para testar novos cantores. Na a minha vez de cantar eu segurei o microfone, fitei o pequeno público à minha frente e de repente eu via todo o córrego do Nozinho. Não era as pessoas e sim as casas com as janelas iluminadas por luz de candeeiros. Com essa visão na cabeça procurei as palavras da música escolhida, mas deu um branco. De jeito algum eu conseguia lembrar a letra e até o tom da música me fugira completamente. Percebendo meu dilema meu amigo ocupou o meu lugar e voltei para os bastidores. Diante do espelho contemplei a minha imagem e de repente meu nariz tremeu. Alguma coisa arrebatou-me a alma. Vi-me transformado em mamãe cantando debaixo do ingazeiro. Mamãe! Mamãe! Mamãe!. Não tive dúvidas. Com as fronhas de travesseiro fiz um lenço que prendeu os meus cabelos, e com as cortinas improvisei uma saia comprida. Arranquei dois botões prateados de uniforme militar que estava pendurado e os prendi nas orelhas com berilos. Voltei ao espelho e o meu inverso exclamou:

─ Arrasou!

Assim que ouvi as poucas palmas referentes à apresentação do meu amigo Rafael, me dirigi para o microfone. Antes que percebessem o que estava acontecendo ordenei para o tecladista: Dá um Lá maior! Quando o som tomou todo o ambiente eu comecei: “Ela é a dona de tudo”!... Daí pra frente tudo mudou.

Foi fácil convencer meu pai que eu não ia demorar na cadeia. O advogado indicado pelo meu amigo Rafael era um especialista em Direito Criminal. Depois que Urbano saiu prometendo que voltaria no dia seguinte ele entrou na cela e se apresentou:

Meu nome é Valdeci e sou seu advogado daqui pra frente. Agora me conte o que aconteceu, desde o começo.

─ Lembro-me de uma noite de dezembro...

henrique ponttopidan
Enviado por henrique ponttopidan em 20/04/2019
Código do texto: T6628297
Classificação de conteúdo: seguro