A maldição do covarde*

O amor é destrutivo. Tudo o que nós somos e tudo o que vemos perde o significado a partir do momento em que estamos apaixonados. Não queremos ser um bom homo sapiens, pelo menos não mais. Desejamos somente nos tornar pessoas por quem seja possível se apaixonar, e é claro que esse modelo de pessoa apaixonável é moldado por meio das preferências daquele que conquistou o nosso coração.

Apesar de tudo isso, há uma velha maldição que nos atinge desde o princípio da humanidade: a covardia. Infelizmente, todos nascem com ela, porém alguns conseguem perdê-la ainda na infância e outros a retomam ou nunca se desapegam dela durante o resto de suas vidas. Ela é má e nos fere sem que façamos nada. Sofremos por um tempo indeterminado por alguma não-ação, mas não temos nenhum machucado. Talvez esse seja o problema, sofremos pela falta de um machucado psicológico. Ironicamente, sofremos por não ter algo que nos faria sofrer mais ainda.

Quando o sentimento destrutivo, porém belo, se junta a nossa maldição, só nos resta um gosto amargo na boca. Sofremos dia e noite apesar de saber que um futuro glorioso nos espera. Pode ser raro ou não, mas a covardia ficou entre o amor de Júlio e Micaela. Eles se conheceram na faculdade apesar de nunca terem trocado uma única palavra durante dois anos. A comunicação deles era feita por meio de olhares. No início, era inocente, apenas um flerte, porém se tornou cada vez mais intenso com o passar do tempo. Eles sabiam quando um deles estava triste, alegre, chateado, entusiasmado ou até mesmo decepcionado por não se falarem, o que era bem recorrente. Os dois se apaixonaram apenas por meio de conversas de olhares.

Já fazia um mês que ele tinha percebido os olhos de Micaela frequentemente tristes. Até chegou a pensar em falar com ela só para ver se a animava, mas a covardia o impediu inúmeras vezes. Depois desse triste mês, logo no início da semana, ele descobriu que Micaela havia se suicidado com uma corda no pescoço. Ninguém entendeu o porquê de ele chorar se mal a conhecia, mas não foi possível conter as lágrimas. Ele correu para o banheiro, se trancou e ali ficou se culpando.

Nos dias seguintes, não foi possível encontrá-lo na faculdade. Alguns dizem que o viram no enterro da Micaela, mas não há como confirmar isso. Só é possível saber que ele foi visitar o túmulo dela que ficava no fundo de um monte. Havia culpa demais em seu coração. Ele sabia da possibilidade de a tristeza dela tomar forma no amor impossível. Talvez ela tenha compreendido errado os olhares de Júlio, achando que ele não a amava, fazendo com que ela caísse na depressão e fosse arrastada pelo suicídio. Mesmo que a morte dela não tenha nada a ver com ele, talvez se a sua covardia não tivesse ficado no caminho e ele conversasse com ela, Micaela teria alguém para se apoiar, dando a força necessária para fugir dos problemas que a atormentavam.

De qualquer maneira, toda essa culpa, covardia e os “e se” atordoavam a mente de Júlio e ecoavam na tentativa de deixá-lo louco. Entretanto, nada disso doía mais do que pensar que ela tinha morrido de coração partido. Ele não aguentava tantos sentimentos ruins de uma só vez, então se deitou ao lado do túmulo e pegou no sono enquanto chorava.

Um belo sonho atingiu a sua mente depois que dormiu. Ele estava na mesma sala de aula que Micaela e havia acabado de chegar no intervalo. Ela vinha andando calmamente em sua direção enquanto os magníficos olhos dela refletiam a luz em sua direção. Quando ficou de frente para ele, segurou as suas mãos e tímidas lágrimas começaram a rolar pelo seu rosto nesse momento. Ela admitiu o seu amor por ele, mas pediu para que não vivesse no passado. Aquela que ele conheceu, a Micaela, já não existia mais, estava morta e não havia chances de voltar, então se lembrar dela não seria muito diferente do que beber em um copo quebrado, sendo inútil e doloroso. Quando parecia que já estava perto de acordar, ela pediu para que ele fosse forte e seguisse em frente, o abraçou e depois se afastou o suficiente para que os rostos ficassem um de frente para o outro. Ele sabia o que ia acontecer, o primeiro e último beijo, mesmo que somente em um sonho, iria virar realidade. Porém, quando estavam a milímetros de se beijarem, uma luz branca e intensa o cegou. Ele não estava mais na sala de aula, mas sim no quarto dela. O desespero tomou conta de sua mente ao perceber que não conseguia se mexer e nem mesmo piscar. Ela estava sentada na cama colocando uma folha de papel embaixo do abajur. Pegou um pedaço de corda já preparada com o nó de forca dentro do armário e o prendeu no suporte do ventilador de teto. Os olhos dela já estavam mortos bem antes de ela subir numa cadeira e colocar o laço em volta do pescoço. No momento em que ela jogou a cadeira para trás e começou a sufocar, Júlio começou a chorar. Queria fechar os olhos e fazia toda a força que conseguia para não ver isso, mas era impossível. Quando o último espasmo atingiu o pé dela, ele acordou.

Todas as lágrimas que tinha soltado em sonho aconteceram na realidade e não pararam de jorrar nem mesmo quando já estava consciente. Na realidade, a intensidade havia aumentado. Apesar de a primeira parte do sonho tê-lo acalmado, a segunda o fez se sentir mais culpado do que nunca. Sabia que tinha um papel para fazer. Um papel para o qual não havia substituto, transformando um lindo romance num dos mais trágicos dramas.

Já era fim de tarde quando ele se levantou, beijou a ponta dos dedos e os encostou na lápide. Ele foi caminhando lentamente para a sua casa. Pensava em mil coisas ao mesmo tempo sem ao menos prestar atenção no que a sua mente dizia. Chegando lá, pegou a sua prancha e continuou a caminhada até a praia. Não havia mais dia quando ele chegou nela, mas mesmo assim decidiu pegar algumas ondas. Ficou uns vinte ou trinta minutos no mar e só voltou para a areia quando percebeu que uma tempestade estava se formando no horizonte.

Ele ficou encarando aquelas nuvens distantes durante um bom tempo. Não sentia medo ou desejo, mas sim um estranho sentimento de semelhança. De algum modo, ele se via na tempestade. Talvez seja por causa desse fato que ele virou as costas para ela, estendeu a mão em direção à cidade e lentamente acenou adeus. Depois disso, simplesmente deitou na areia voltado para o mar, abriu os braços e ficou olhando para o céu enquanto esperava as nuvens raivosas atingirem o seu campo de visão.

Os ventos frios da tempestade chegaram junto com as primeiras gotas de chuva. Ele não tinha percebido quanto tempo passou, mas sabia que o momento que ele tinha esperado havia chegado. Então cravou a sua prancha na areia e escreveu com conchas apenas uma única frase nela: “Estou voltando para casa!”.

As gotas engrossaram e um intenso vento frio começou a atingir o seu corpo, mas ele não ligava mais para isso. Começou a caminhar em direção ao mar sem olhar para trás e só parou quando já havia profundidade o suficiente para nadar. Em meio a muitas vozes em sua mente, havia somente um pensamento no qual ele via alguma coerência e aceitava. Ele se sentia completamente sozinho agora, algo que nunca ninguém quer sentir. Porém é inevitável e temos medo que essa sensação nunca passe, mas, quando passa, temos medo que ela volte. Júlio nunca quis passar toda a sua vida completamente sozinho e acreditava que era isso que ia ocorrer agora que não tinha mais a Micaela. Somente por causa disso, nadou e não parou.

Enfrentou o frio que tomava conta do seu corpo como se fosse um pequeno aperitivo da morte. A imagem do rosto de sua amada pulsava em sua mente e dava forças para que ele continuasse. Tinha a crença cega que essa era a sua hora de morrer, afinal, talvez assim pudesse encontrar Micaela novamente. Ele sabia que assim ela poderia voltar para a sua vida, o aceitando mesmo nessa total miséria.

Esses foram os pensamentos, as lógicas e as últimas certezas da sua vida. Depois de uns trinta e cinco minutos, quase morreu pela primeira vez por causa de uma onda que o empurrou para o fundo mar. Isso ocorreu diversas outras vezes, mas ele lutava contra elas, mesmo que fosse mais por causa do instinto do que por força de vontade.

Talvez tudo isso tenha durado uma hora ou duas. Os músculos do seu braço já queimavam, e ele pensou em desistir e tentar voltar para a terra firme. Na décima braçada em direção à costa, uma forte cãibra atingiu a sua panturrilha direita. Ele foi para baixo e chegou a sentir o fundo do mar. Tentou lutar e voltar para a superfície, mas já era tarde demais. Parecia que algo o segurava com toda a sua força como se quisesse que ele ficasse embaixo d’água. Foi ali que ele morreu.

Para a civilização, ele ficou desaparecido por cinco dias. Muitos acreditavam que ele havia se perdido na floresta durante uma de suas várias trilhas. De certo modo, eles haviam acertado algo. Júlio estava perdido de fato, mas não era numa floresta. Era em um lugar muito mais obscuro e desconhecido: a sua própria mente. Ele estava perdido e achava que não havia ninguém para ajudá-lo. Acreditava que estava sozinho e assim se sentia. Queria encontrar de qualquer jeito a única pessoa que parecia compreendê-lo. Se isso aconteceu, é impossível de se dizer, mas o corpo dele foi encontrado em uma praia distante com um girassol sendo segurado pela sua mão.

*Conto baseado na música Alone da banda Alice in Chains