ELES OU OS CONDENADOS

Eu não sei ao certo a quanto tempo estou aqui. Acordei e senti as correntes presas aos meus pés e aos meus braços. Acordei ao ouvir um grito, dei-me conta de que havia outros. A escuridão é constate, o único momento em que um facho de luz adentra esse cubículo é no instante no qual uma pequena abertura – no que deve ser uma porta metálica – se abre e eles jogam pão e garrafa de água.

No começou não conseguíamos saber quantos de nós estavam aqui, trancafiados, e nem mesmo o motivo. Parece que perdemos a memória, parece que estamos aqui há muito tempo. O tempo, esse parou de ser calculado. O isolamento nos leva a delirar e para não gritar começamos a tentar entender o motivo de nos jogarem aqui. Acabamos descobrindo que havia sete de nós. Cada um gritou um número para que pudéssemos contar. A escuridão é tamanha que a cegueira seria uma dádiva. Até que se chegou ao número sete e não se ouviu mais nenhuma voz humana.

É uma mistura de delírio e sonolência, além das dores causadas. As correntes só nos permitem chegar até certo ponto entre a parede e a porta, é dessa forma que conseguimos alcançar a comida. Quando ela vem. O cheiro é podre. Estamos despidos. E temos que cagar e mijar em nós mesmos. O cheiro da bosta deixa o ambiente – se é que se pode dizer ambiente – putrefato. Dar para ouvir os ratos, sentir os insetos percorrendo nossos corpos. Em um desses momentos de sonolência alguém sempre acaba gritando sentindo algum inseto entrar na boca, no olho, no cu. Somos todos homens. Esse é outro detalhe intrigante.

Depois de um tempo a comida passou a ser diminuída, no lugar de sete garrafa de água e sete pães, passou-se a chegar apenas seis. E, porque se come uma vez, no início costumávamos dividir nossa comida. Então, foi-se tornando-se ainda mais escassa. Assim, começou a degradação. Alguém sempre ficava sem comer porque não vinha o suficiente para todos. A brutalidade da briga por pão e água se intensificou a tal ponto que começamos a destruir uns aos outros, roubando ao invés de repartir. Foi quando começamos a comer a nossa própria bosta, quando ainda conseguíamos cagar.

Passamos a ser dissociados de nós mesmos, esquecendo nomes, pessoas, lugares o de lá de fora. O de lá de fora já não existe, faz um tempo que não se tem o de lá de fora. A conversa vai ficando cada vez mais tensa. Não conseguimos aturar uns aos outros, fomos colocados em posição de vilão entre nós mesmos.

No começo ainda havia dor, e tendo dor era sinal de que estávamos vivos, agora o corpo vai aderindo a dormência, o que pode ser algo bom, a ausência da dor.

Mas, antes, antes de chegar ao não sentir, lembro-me do frio, o qual tentávamos encobrir encostando os nossos corpos em busca de algum calor humano – se é que se pode usar tal termo para nos definirmos – não acho que sejamos humanos, eles nos desumanizaram.

Dentre toda essa escuridão, essa dissociação, a redução ao pó, a loucura, insensatez, cheguemos a parar de pensar, e, parando de pensar o instinto foi nos dominando: para tonar tudo menos débil e por medo da demência inerente, masturbávamos uns aos outros, mesmo preso, as mãos conseguiam alcançar o corpo do outro. O sexo foi se tornando nosso único alimento e uma forma de preencher a escuridão. Fazíamos isso também para que pudéssemos sentir algum gosto, de alguma coisa que não fosse a merda e o mijo, ao menos o gosto da porra do outro, da gala, que engolíamos como se fosse algum tipo de alimento.

Passaram-se dias ou noites ou madrugadas: o tempo não existe para nós. Cada vez mais dementes, assustados, debilitados, adoecendo do corpo, a grande porta metálica foi aberta pela primeira vez. A luz cegou, mas, todos tentaram enxergar o que aparecia após a porta ser aberta: o clarão, o fim da escuridão e a percepção de um ser na porta. Um homem, não sei explicar como sua fisionomia se formava, a debilidade e a cegueira, a escuridão já estava internalizada...

A porta se abriu e aquela figura adentrou no cubículo. Todos tentavam falar, mas, igual uma criança pequena, apenas balbuciavam termos desconexos, desaprendemos a falar... desaprendemos a nos comunicar. Medo, letargia, não sei bem, mas, a escuridão, o isolamento nos foi tornando cada vez mais instintivos, animais que não conseguem raciocinar.

Quando a porta foi aberta um homem foi levado. O clarão que entrava pela porta nos fez perceber as feridas, o corpo degradado, a humilhação, o resto de algo, de uma criatura que não poderia se chamar de humano. Então, olhamo-nos aproveitando o clarão advindo da porta aberta e notamos que nós também estávamos doentes, do corpo, da alma. As feridas, as marcas de mordida de insetos, os ratos nos transformamos em seis criaturas. Algum deles chorou durante muito tempo entonou uma oração – como se algum tipo de Deus pudesse ouvir – mas, rezar é um ato de desespero quando não se tem mais alternativas, embora Deus esteja morto e essa consciência passava pela cabeça de todos eles, tenho certeza.

Passaram-se... dias? Noites? Não faço ideia porque o tempo parou aqui. Estático.

O sétimo homem voltou para o cubículo. A boca costurada, os dedos decepados, os testículos cortados. Percebemos isso quando a porta foi aberta. Deve ter percorrido pela cabeça dos outros pensamentos sobre o fim de nós. Seria melhor que fosse o fim, embora, ainda não o era.

No momento em que percebi que o sétimo homem rasgou a boca ouvi um grito estridente de desespero. Parei, tentei olhar alguma coisa no escuro, tentando acostumar minha visão, embora só sentisse o cheiro de sangue e o barulho do vômito. Não conseguíamos falar, e qual seria o preço de tudo isso?

Hoje, eles acabaram de abrir a porta mais uma vez. Jogaram água, comida, acenderam a luz. Deixaram sete pastas com os nossos nomes, nomes que já nem lembrávamos que tínhamos. A porta foi fechada, a claridade continuava lá. Abrimos as pastas e ninguém disse nada. Havia fotos, havia textos, documentos. Entendemos, apesar de negar tudo enquanto, pela primeira vez nos olhávamos cara a cara. Cada rosto sendo compreensivo para o outro. Cada rosto passando a compreender o motivo de sermos encarcerados, mas, ninguém disse nada. Já não era preciso. Passaram-se dias com a luz acessa e as pastas... lá.

O primeiro homem assumiu e disse o que tinha feito. Isso desencadeou a válvula que faltava e compreendemos, apenas olhando nossas faces. Não havia jeito de se redimir. Gostávamos de pequenos, meninos, meninas, garotos, todos nós, e foi quando tudo acontece. A porta se abriu sete mulheres entraram e cada um de nós as reconhecíamos. Não disseram nada. Derramara um líquido no chão, pelo cheio, se é que ainda sentíamos cheiro, deveria ser gasolina... não sei.

Agora, antes que as mulheres fossem embora: jogaram as chaves que abriam as correntes, nós não estávamos arrependidos. Não conseguíamos controlar, era natural ao nosso ser, não era anormal, era só brincar com os pequenos. E depois de tirar as correntes, todos se olharam. A portinha por onde vinha a comida foi aberta e lembro que sete fósforos foram acessos e jogados pelo chão molhado de combustível.

Agora, sentimos o calor nos percorrer os poros, as terminações nervosas. Então, adentramos nas chamas, era impossível não adentrar, nesse momento nossos corpos queimam, mas, não nos convence que as crianças sempre serão nossos melhores amigos, e caso eu nasça um dia, voltarei para meus pequenos....

O fogo queima...

Jailson Anderson
Enviado por Jailson Anderson em 25/05/2019
Reeditado em 25/05/2019
Código do texto: T6656071
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