TEUS ESCOMBROS

Parado. Olhando-te. Teus escombros. Lembranças reduzidas a pó, saudades assassinadas pelo lucro, pelo progresso. Disseram-me tua casa foi vendida. Venci os quilômetros que nos separam em duas horas e meia. Voando. Vendo passar paisagens secas, cadáveres de bois e voos destrambelhados de urubus e umas borboletas suicidas espatifando-se no vidro do carro. Se tem urubu por perto, tem bicho morto. Se tem progresso, tem vil metal, tem mercadoria barata, tem despudor. Simplesmente chegaram os tubarões e disseram daria um excelente edifício, a gente compra barato e vende caro, que os quartaus são muitos, a gente usa o banco pra financiamento, fácil, fácil. Estou há umas quatro horas impávido diante de ti, amante destroçada pela pecúnia exacerbada. Pessoas passam e me olham, estranham, o cabra é louco, que faz parado aí, gente da capital, só pode... O sol queima os miolos da terra, da gente, dos montes, derrete ventos.

Lembranças desgarram e me vejo acordando com o barulho de um chocalho lá fora, olhe o leite, delém, delém. Mãe enche a vasilha de ágata, ferve o leite, molha o cuscuz pegando fogo e serve. Mesa grande, família grande, tanto cheiro, os cheiro dos rastros de um tempo lúdico, em que a tua chaminé expunha uma fumaça cheirosa de feijão com charque, com coentro, com bucho de boi e mocotó. Depois, os doces de leite, de banana, de mamão, de uma artesã sem diploma, minha mãe; e pra fechar com o toque de midas culinário, o café. Café forte, de soldado, daqueles que deixam a borra no fim de bule, também de ágata.

Teu terreno cadáver, no qual jogávamos nossas peladas, imenso, de barro, com os galos e as galinhas saracoteando sem sequer imaginar que seriam nossa ceia de natal; perus glugluzando, bem fornidos, fugindo do cachorro magérrimo, achado na rodagem. Meus pés sem medo de espinhos, de seixos, de lacraus, de caranguejeiras; as caras pintadas que nem índios, na mata de seu Emídio, à espreita de bichos papões, caiporas e outros seres criados pelo folclorismo das gentes adultas.

Teu ventre invadido pelo pessoal por causa do quentão do pai, das canjicas e das pamonhas da mãe; a fogueirona ardendo e aquecendo o inverno entranhoso, traques e peidos de véia e estrelinha e pequenas bombas apoquentando as ouças dos vizinhos e dos “santos”; rádio ABC tocando Vendi os Bois, Luiz Gonzaga, Trio Nordestino, Marinês, os sons da nossa terra alvoroçando teu terraço e teus quartos e tua cozinha. Era de se ver! Era de se sentir! Era de se festejar! Em noites do frio enregelar as medulas dos ventos, a gente ao redor do fogão de lenha, tomando chá de capim santo com umas torradas de pães sobrados do jantar. Tio contando histórias de mal assombro, do homem que não sabia o que era medo, do “fomos nós todos três”, “carpinteiro do meu pai não me corte por favor”, fragmentos teimosos que insistem em fincar madeira de lei nas possessões de meu ser sertanejo. Depois o tio pegava a gente adormecida e levava pra cama-colchão-de-capim, quartos num concerto de muriçocas combatido por espirais Sentinela e velas. E à meia-noite, a voz gutural do vento nas brechas das telhas num cântico de conto de Edgar Allan Poe.

Perdi a noção do tempo. Continuo plantado em frente a teus escombros. Os olhos banhados, frios, peguei o carro e fui ao centro. Comprei correntes e cadeados imensos. Tenho uma caminhonete potente, coloco-a de través em frente a ti, chamo o homem que ficara me olhando desde que me postara a te prantear e peço prele me amarrar todo, com aquelas correntes, que ele feche os cadeados e jogue as chaves fora, longe, num bem longe que a poeira dos tempos as desbote.

Matuto Versejador
Enviado por Matuto Versejador em 30/05/2019
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