O DOIDO RAIMUNDO

Foi num dia de forte calor no verão que conheceu o doido Raimundo. Lembrava-se nitidamente deste dia. Alguns meninos estavam jogando pedras em Raimundo que apenas defendia o rosto e permanecia imóvel as agressões. Ao vê-lo nessa situação, colocou-se entre os agressores e Raimundo de forma firme e pediu que parassem com aquelas atitudes. Como não tinha forças para tanto, recorreu à sua imaginação e disse que o espírito da velha Diazinda, que falecera a pouco mais de um mês tinha avisado numa seção espírita que Raimundo era seu filho e a partir desse dia ninguém poderia importuná-lo.

Foi um santo remédio para a situação. Raimundo parecia livre dos meninos. Pelo menos até alguém descobrir com o pessoal da tenda espírita da cidade que era tudo mentira e que Diazinda não enviara nenhuma mensagem a respeito de Raimundo.

Aproveitando que sua mãe estava ausente, conseguiu levar o doido até sua casa, onde passou um pouco de água em algumas feridas. Raimundo era realmente alguém diferente, tinha sempre um olhar assustado e pouco se comunicava com as pessoas. Sua única rotina era frequentar o mercado da cidade nas horas do almoço e do jantar. Ficava sempre parado esperando que alguma sobra de comida fosse dada pelo dono do principal bar do mercado. Os bêbados não o incomodavam mais, pois já tinham se acostumado com aquela figura tímida que parecia sempre sorrir para o vazio e por isso davam pouca importância a sua presença. Ao conseguir o que comer voltava à antiga estação ferroviária da cidade, onde também dormia desde que chegou na cidade sem que ninguém soubesse de onde.

Nas segundas e quartas feiras pela noitinha ia sempre à Matriz para fazer pequenos serviços. Ajudava na limpeza da igreja e em troca recebia algum dinheirinho. O padre tinha por ele um carinho todo especial e sabia se comunicar com aquele filho de Deus que se mantinha em uma inocência infantil pela vida afora. Ao término do serviço Raimundo sempre pedia para contar uma história da Bíblia. Ficava calado e atento a tudo que dissesse respeito ao menino Jesus. O nascimento na manjedoura na distante Belém, bem longe de Nazaré, onde Maria, sua mãe, e seu pai, o carpinteiro José, moravam.

A crucificação era para ele a parte pior da história de Jesus. Chorava sempre com o que aconteceu com aquele ser amado que tratava todo o mundo bem. E os judeus, por que fizeram isso com seu próprio irmão ?. O padre tinha explicado que ele foi julgado pelo Sinédrio, que era a corte dos setenta e um sacerdotes judeus e que depois foi levado ao governador da Judeia, que se chamava Pôncio Pilatos. A partir daí, muita dor e sofrimento de Jesus. Raimundo sofria também por Jesus. Sentia em sua pele o que a pele de Jesus sofrera. Um misto de pena, ódio e muita tristeza sempre invadia seus pensamentos quando ouvia toda aquela história.

Um dia chegou na cidade uma trupe de artistas e convidou a todos para comparecerem ao pátio da Matriz. Era o espetáculo da Paixão de Cristo. No palco o próprio Pôncio Pilatos, sentado em seu trono comandando o julgamento. Jesus, com sua altivez, enfrentava com coragem seus últimos momentos de vida. Pôncio Pilatos pergunta ao povo o que prefere: Solta Jesus ou Barrabás?. Afinal, era esse o costume da Páscoa. Raimundo grita alto o nome de Barrabás, na esperança de salvar Jesus. De nada adianta. Levam Jesus carregando uma pesada cruz. Os guardas o açoitam. Põem-lhe uma coroa de espinhos. Com essa visão, a cabeça de Raimundo gira em redemoinhos. Aquilo estava errado. Todos estavam cegos. Merecia aquele homem iluminado pela bondade passar por tamanha provação? O soldado desfere-lhe outra chicotada. Jesus cai. Os soldados ordenam a um certo Simão de Cirene que carregue a cruz de Cristo até a Gólgota, que era o lugar onde eram crucificados os condenados. O ódio sobe a cabeça de Raimundo. Parte para cima do soldado que açoitara Jesus e aplica-lhe um violento soco. O soldado cai no chão. Raimundo, descontrolado, o chuta várias vezes até ser totalmente dominado pelos que estão por perto. Alguém grita que o ator desmaiara. Raimundo dirigi-se a todos dizendo que Jesus tinha que ser defendido. Chamam-lhe de louco. Um grupo segura seus braços enquanto outro grupo socorre o ator desmaiado no chão. Raimundo se desespera. Em sua cabeça aqueles que o estavam segurando também eram romanos. Consegue, com violência, se soltar dos que o prendiam. Corre desesperado. Desaparece da cidade da mesma forma como apareceu. Ninguém mais soube dele.

Cabedelo, 31 de maio de 2019