DENUNCIAR (ou nâo) O QUÊ? - PARTE II

ELE ainda bem moço, mas já quatro filhos (dois eles, duas elas), ordenado curto, sempre encolhido. Ajudante num caminhão de entregas, macacão de tecido grosseiro, tênis ('inusável' e vergonhoso num tempo muito antigo...), boné de couro, carregando na cabeça ou com as mãos objetos enormes da empresa onde trabalhava ao endereço das empresas-clientes. Não notou ter sido observado pelo empresário comprador, chamado imediatamente à sala deste. Assustou-se: "Vai mandar me demitirem?" Entrevista um tanto íntima - se era casado, filhos, bairro em que morava, ordenado, se possuía carteira de motorista. "Multiplico por três se vier trabalhar comigo... Proceder como os três macaquinhos (falou, mas teve suas próprias dúvidas, se indianos, chineses ou japoneses). Tenho pressa. Resposta amanhã ou nunca mais." Saiu da sala trêmulo. A mulher se assustou, mas o tal fulano era advogado, sem exercer a profissão, empresário rico de 'outra' coisa séria e honesta, famoso até (narrador aqui não pode revelar confidência de uma antiga vizinha, interrogativa há umas seis décadas...) Vestir-se de macaco?! No dia seguinte, o empresário explicou - motorista, homem de confiança: "não ver, não ouvir, não falar". ----- Guardou segredos, tantos doces como terríveis, tanto particularíssimos como empresariais, patrão sempre triunfante, 'por cima', em linguagem popular. Ordenado gordo e pontual. Sem medo. ----- O carro particular sempre com ELE - casa do patrão todas as manhãs. Tempos depois, nomeado também um administrador sobre os demais empregados: cozinheira, motorista a serviço da empresa e datilógrafa. ----- Filhos agora quase adolescentes, patrão perguntou se ele conhecia determinado subúrbio evoluído, rumaram para lá, doou de surpresa a entrada de uma casa, prestações baratíssimas, telefone instalado (raro em residências na época). ----- Passaram-se alguns anos. ----- Saiu de casa muito cedo, pegar certos homens nas respectivas casas, não disse à mulher de quem se tratava, sem interesse ou pré-preocupação de identificar, e levá-los para um passeio de iate sem rumo definido (patrão com forte gripe não iria), embarcação parada no mesmo ancoradouro de passageiros comuns. Instalou-os, serviu uísque. O piloto do iate o chamou para ir junto, conversando, enquanto a elite se divertisse... ----- O quê houve de tão terrível assim, ELE não contou. ----- Dois emudecidos e assustadíssimos cúmplices... de quê? ----- Chegou em casa pela manhã, com o carro do patrão, atordoado. "Se EU soubesse o que ia acontecer, não teria ido!" Filho mais moço de folga do trabalho nesse dia, pai entregou peixe enorme de alto mar (oceano?), desconhecido, jamais visto em feira-livre, que apelidou "cala-boca", tomou comprimido e dormiu o dia todo. Filho e a vizinha jovem tiveram muita dificuldade com as escamas duríssimas do animal, usaram o tanque no quintal. Quando as irmãs chegaram e souberam fragmento da estranha aventura, a mais velha sentenciou: "Afogaram alguém!" Convite por telefone, vieram o primogênito (narrador aqui adora esta palavra, expressão de comandante), mulher e crianças. Jantar de curiosidade e ansiedade. Amanheceu, cada pessoa numa direção para trabalhar. Nada extraordinário nos jornais ou na tevê. Os dois cronistas sociais da época não anunciaram morte natural ou criminosa de nenhum poderoso granfino. Mas como afogar alguém e o corpo jamais aparecer, mesmo que fosse dias depois no outro lado da baía... Ou jogaram o homem (ou a mulher) na boca de uma baleia? E roupa e calçados da possível vítima? Aguardaram notícias um bom período. Pai apenas desabafava - "Eu não deveria ter ido... Não participei. Não tive culpa nenhuma." Denúncia incluiria o pai, nem ninguém ali era dedo duro, grátis ou gratificado. /Delação premiada é contemporaneidade./ Quem eram as pessoas? Alguém casado e com filhos menores? Passeio onde? Aonde foram todos? O que piloto e motorista teriam visto? ----- Não o esquecimento, mas com o passar do tempo não se falou mais nada sobre a estória do "talvez" afogadinho ou afogadão. ----- Alguns anos, patrão adoeceu terrivelmente, irrecuperável no leito, sem falar, empresários, políticos e arcebispo católico visitando; mais alguns anos e o motorista morreu de repente; mais três anos e patrão foi encontrá-lo... no céu ou no inferno?

F I M

Rubemar Alves
Enviado por Rubemar Alves em 09/07/2019
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