O CORDEL E A RELIGIÃO - PARTE II

Batizada de "Inferno", coleção da BIBLIOTECA NACIONAL reúne obras tidas /nos 'antigamentes'.../ como ofensivas, heréticas ou sacanas, ou seja, impróprias em algum momento da /arcaica, mein Goten!/ História... Limbo? À margem? Não num lugar fixo, mas espalhados os livros. Jamais catalogados, escondidos para sobrevivência: ave a posteridade! ----- Até a coleção do Vaticano, administrada por santos homens, tem um inferninho secreto... ----- "O inferno é uma filosofia, uma mentalidade. Tem livros que a gente nem sabe que estão aqui. Hoje, o livro incomoda, ética do bibliotecário, mas pode não incomodar futuras gerações. Por isso é preciso preservá-lo." - ANA VIRGÍNIA PINHEIRO, bibliotecária-chefe da Divisão de Obras Raras da BN. ----- Não almas condenadas a viver para sempre na companhia do tinhoso, mas AUTORES e seus ESCRITOS. ----- No Rio de Janeiro, as obras condenadas ao virtual fogo eterno, lugar abstrato, estão na biblioteca fundada pelo Príncipe Regente Dom João, em 1810. ----- Um exemplo, "O mundo da paz", diário de viagens de JORGE AMADO pela União Soviética: baiano-escritor logo processado pela Lei de Segurança Nacional; livro chegou à biblioteca em 1951, literalmente escondido de um possível censor. ----- Ih, até Santo AGOSTINHO, homem acima de qualquer suspeita, condenado ao inferno por "A cidade de Deus", primeira publicação em 426 d. C., aqui em 1661, com marcas de danação: tinta usada continha ferro que com os séculos enferrujou e perfurou páginas, esfarelentas se manuseadas - comentários rabiscados e anotação de "Expurgado por ordem do Santo Ofício". ----- O forte do "Inferno" são as publicações libidinosas!!! Muitos folhetos pornográficos, como "O menino do Gouveia", um dos primeiros contos homoeróticos nacionais, de 1914 - Gouveia era a gíria para o homem maduro interessado em rapazinhos. ----- A homossexualidade também num livro didático de desenho, famoso no século XVII, conteúdo de homens juntos insinuando (ou clara) sensualidade - mulheres só ilustram representações de raiva. ----- Há obras antigas, mas tratam de temas atuais: "O pornógrafo ou ideias de um homem honesto para regulamentação das prostitutas" (original em francês), de NICOLAS EDMÉ, romance epistolar de 1770. ----- Estas moças aparecem em "Um marido em apuros", na capa informação de 'gravura ao natural', técnica de fotos retocadas para parecerem desenhos, as meninas da vida tomadas como modelos - imagem de um cavalheiro, pênis num prato, e a moça nua, usando só um colar de pérolas e empunhando garfo e faca; obra impressa numa inexistente "Ilha dos pêssegos", 1915, para não identificar o impressor. ----- Livros réus - títulos picantes e mulheres nuas nas capas, já o suficiente para "condenação", como por exemplo "Chifres para todos". ----- Há um título indecifrável, "Por obra e graça do Espíto Santo". ----- "Prazeres de collegiaes - Para novos e velhos", 1917, impresso numa 'certa' Typographia de Lava-Rabos, em Madri, série com nome bastante apropriado de Bibliotheca Del Fogo. ----- Também "Lili e Lulu", que se autointitula 'a novella brejeira'. ----- Ainda "O conde do Raboforte - Aventuras amorosas do abbade Casanova", sem data. ----- O "Inferno" inclui também amor: uma edição do romance pastoril "Daphnide et Chloé", do grego LONGUS, do século II, até hoje editado artesanalmente, com o apelido de "best seller desconhecido" (no século XX, MAURICE RAVEL criou balé em um ato) - estória de um casal de órfãos que se apaixona sem saber que eram irmãos, um ancião sugere que se deitem nus, porém nada acontece... depois acontecem reviravoltas-sequestros-piratas que dificultam o ato. ----- Hoje, tempos mais liberais, nenhum fogo eterno para os dois jovens... nem para os possíveis leitores.

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FONTE:

"Satânicos em verso e prosa", artigo de Maurício Meireles - Rio, revista ELA, 5/7/15.

F I M

Rubemar Alves
Enviado por Rubemar Alves em 14/07/2019
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