DEPUTANTE

Quando ela ensaiava esgoelar o galo, para que anunciasse a alvorada, o sol surgiu.

Acostumada a acordar cedo, teve noite insone, contando as horas, minutos, segundos, e goles seguidos de água, que se transformaram em litros de xixi. Dobrava e desdobrava o travesseiro, virava, cobria e descobria o corpo, cochilava e acordava com o próprio ronco. Jovem, inteligente, estudiosa, extrovertida, sempre fora líder entre colegas e amigos, e na primeira eleição como candidata, fora eleita deputada estadual. Agora iria buscar o diploma e receber instruções sobre assunção do cargo. Tinha grandes sonhos, ambição, idealismo, mas nenhuma dose de malícia ou vivência em antever obstáculos, armadilhas burocráticas.

A cerimônia de diplomação foi bem mais simples do que supunha.

A mais alta autoridade presente, um escrevente cartorário, parecendo sitiante, disse-lhe:

- Teje dipromada, minina! Sala suja, fedida e abafada, ao lado de um depósito de adubo.

Queria sumir dali e deu de cara com o coroné Afonsinho, presidente do partido.

- Num tenha pressa, dona moça, qui nóis tem uns entretanto pra acertá.

Levou-a, na charrete, a perambular, enquanto discorria sobre dívida política e financeira que a menina contraíra, e da qual ele era o credor. Indignada, alegou ter sido financiada pelo partido sem ter pedido, e não reconhecia dívida nenhuma. O coroné franziu as pestanas e cuspiu de lado, achegando-se mais. Ela saltou e correu, enquanto o homem praguejava.

Foi à delegacia, mas quando comentou sobre o ocorrido . . .

- O coroné, moça? Vixe! A senhora tá frita, assada e cozida!

- Como assim? O senhor não vai tomar alguma providência contra ele?

- Eu vô é tomá umas canjibrina e esquecê esta nossa conversa! Passar bem!

Percebeu o enrosco. Voou pra casa, fez as malas, e partiu para a capital. Tinha lá a tia, meio cega, surda e gagazinha, mas não tinha outro jeito. Ainda não era deputada, mas apenas deputante. Seu mandato iniciaria três meses depois. Até lá, era e não era coisa alguma. Tinha de se virar, e assim que se instalou, saiu à cata de emprego, que não apareceu, nem depois de vários dias. Numa lanchonete, ao almoçar uma coxinha (com o último dinheirinho), uma mulher muito maquiada lhe entregou cartão, dizendo que poderia se dar bem como acompanhante.

Sem opção, foi ao endereço (um pardieiro), conversou com outra mulher (esquisita), e foi encaminhada para acompanhar um idoso, ficando acertado que do seu ganho, vinte por cento seria da agência. Casa chique, e o idoso um galã grisalho, charmoso, que lhe ofereceu bombons, champanhe e ficou papeando um tempão, provocando-lhe sono brabo.

Quando acordou, estava nua, em bela cama, e o homem afagando seus cabelos.

Desesperou-se! Não teve, porém, tempo para qualquer reação e ele já se adiantou.

- Gostei de você! Se continuar comigo, será tratada como princesa, ganhará bem e terá muita mordomia, passeando, vestindo-se com o que há de melhor, e o que mais quiser.

Três meses para assumir como deputada, e poderia viver bem enquanto isso.

Topou, desde que ele prometesse que ninguém ficaria sabendo das intimidades. Feito!

Virou madame, circulava de carrão com chofer, e nem viu o tempo passar. Quando deu por si, viu que no dia seguinte teria de ir à cerimônia de posse na Assembléia Legislativa.

Chegou cedo, produzida, espalhando sorrisos, e ao ser chamada para a mesa diretora, deu de cara com seu amante pintoso. Era o presidente! Fingindo não conhece-la, aprumou-se e passou um sermão, cobrando lealdade total aos colegas, ao partido e à assembleia. E, de cara, queria que ela votasse uma série de medidas, que, claramente, configuravam grande maracutaia. Negou-se! Tinha lá seus brios, e queria agir direito. Só não contava com . . .

Xingamentos, ameaças, empurrões, e, levada ao gabinete do “idoso”, foi advertida de que, em mantendo a recusa, teria sua intimidade revelada e seria expulsa por falta de decoro.

- Mas e você? Estava lá comigo o tempo todo! Não vai sujar pro seu lado, também?

- Não! Sou homem, sou o presidente da casa, e é minha palavra contra a sua. Sacou?

Sacou um tapa na cara do sujeito, renunciou ao mandato e nem precisou pensar muito. Visitou, novamente, o pardieiro, comprou, com as jóias ganhas, o “negócio”, reformou o lugar, transformando-o em cabaré, e, em letras garrafais, pôs a placa: ASSEMBLÉIA.

Virou cafetina de sucesso, respeitada por sua prosperidade. Em todo lugar que ia era bem recebida e ninguém tocava no assunto de seu trabalho. Apresentava-se como empresária, e se um curioso lhe perguntava a atividade, dizia, peito aberto: DEPUTANTE! E das boas!

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 21/07/2019
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