PRECONCEITO - PARTE II

Narrativa sem ironia velada ou deboche explícito. A filha ia se chamar "MARIA CARLA!' - pai berrou, mas o surdinho do cartório (pai ainda não sabia...) escutou errado, ficou mesmo MARIA CLARA, a menina quase tão negra quanto uma jabuticaba; impossivel mudança perante juiz, pois não era nome exdrúxulo, ridículo, que causasse vergonha ou constrangimento... ----- Cresceu num ambiente pobre e havia quem nem reparasse na cor da pele das pessoas num ambiente miscigenado. Como ainda preconceito num país coloridinho como o nosso?... Havia uma bisavó, uma avó e durante muito tempo ELA escutou as lendas africanas dos orixás e de elementos da natureza - "as criaturas', na linguagem de São Francisco de Assis: sol, lua, estrelas... e outros. Mitos, lendas e estórias de muitos bichos também. ----- Cresceu, evidentemente, estudou com brilho o fundamental completo e aos 14 anos arrumou emprego de arrumadeira e dama de companhia (havia diarista para outras tarefas) em casa de uma mulher europeia, idosa, que acreditava em Lorelei, a fada-sereia loura de olhos azuis que cantava para atrair os homens e afogá-los nos rios da Alemanha, a par da negra Iemanjá da devoção da mocinha, imensa costa marítima, lado direito/esquerdo da África e também mar do Brasil. Matriculou-se no ensino médio noturno, com o aval da patroa amiga. "Empregadinha, coitada..." Frau INGRID ensinou a nunca atender se a chamassem apenas MARIA. Bastava fingir não escutar até completarem MARIA CLARA. ----- Era benquista na rua quase toda, sempre alegre e sorridente, cantarolando e muitas vezes comandava a brincadeira de pular corda na porta de casa ou reunia a garotada menor para ouvir suas estórias - incluía um mito europeu: louro, olhos azuis, uma única perna, protetor das florestas. ----- Bom, o tempo não dorme, chegou ao 17 anos e arranjou um namorado um tanto mais velho, bancário e artesão nas horas vagas, com quem conversava na esquina, depois no portão e logo namorado oficializado dentro de casa. Houve quem estranhasse. "Mas é uma criada..." E daí? Quem nos garante um Jesus com aparência nórdica, "telenovelesca", no Oriente Médio? Num tempo mais antigo, não se chamava a menina da casa para aulas de... pí-lu-la. MARIA CLARA engravidou e ficou muito assustada. O namorado se sentia culpado (não existe isso /culpa de quê?/ em um só lado nem no parzinho), ambos sem graça, sem saber como contarem à senhora? Esta descobriu por conta própria, reuniu a feliz dupla, perguntou o que pretendiam na vida e ELE manifestou vontade sincera de casar. ----- A princípio, parte da vizinhaça criticou. "Fosse-minha-filha-eu........." e não saía disso. A alemã ensinou MARIA CLARA a nunca baixar a cabeça. Acertaram que o casal ocuparia o quarto, nada pequeno, que já era da moça - ELE mesmo construiu a nova cama e antecipadamente um berço. Marcaram a data do casamento, cartório-igreja-bolo-champanhe, os pais dele vieram do interior de São Paulo e se hospedaram em casa dos pais dela; alguns vizinhos merecedores de convite. Lua de mel numa viagem rápida. ----- A patroa, sozinha em casa, recebeu a visita de um homem alto que chegou num escandaloso carro vermelho em companhia de dois rapazes. Muitos abraços ainda sem terem entrado na calçada. Tem gente que escuta demais, especialmente o que não deve. Dona INGRID não possuía herdeiros diretos e, ainda assim "talvez" em proximidade remota (leitor já ouviu tal coisa?). a filha da tia da comadre da avó da prima em quinto grau, uma doideira desse tipo. numa cidade catarinense, nem sabia direito qual era... mas no tal lugar se podia facilmente encontrar e comer "apfelstrudel", torta de maçã.......... "Qual cidade, mein Goten?" Ah, o que a vizinha escutou e divulgou? (Existe isso de estetoscópio na parede?) Os visitantes eram um advogado e duas testemunhas idôneas, ou seja, o bancário íntimo, da agência do bairro, e o médico do posto da saúde ali perto, para declarar sanidade mental da doadora passando a casa como herança testamentária para MARIA CLARA. ----- Novo ti-ti-ti. "A negrinha, nossa vizinha oficial? A empregadinha?" Sim, porque agora seria vitalícia no lugar, no bairro, na rua, na casa de dois andares, um terraço e um jardim... Época dos caras-pintadas em passeatas, 1992, e a fofoqueira espiã ainda tentou lançar esta absurda ideia, mas pouco a pouco as pessoas arranjaram desculpas para não participar, percebendo o ridículo em que cairiam com esse "protesto" inteiramente ilógico, sem qualquer conjuntura. Inveja, despeito, olho-grande: doenças graves incuráveis... - a mesma patifaria com nomes diferentes. ----- Depois o ambiente foi se acalmando, nasceu um garoto, depois uma menina, e, num futuro distante, a tal vizinha invejosa (Papai-do-Céu cochila, mas não dorme: nunca esquece!) ficou muito mais velha e passou a depender muitíssimo dos filhos de MARIA CLARA. Mas aí, já é outra estória de caridade e amor ao próximo.........

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NOTA DO AUTOR:

Bichos nos CONTOS POPULARES AFRICANOS, alguns de origem ibérica - cágado, cancão (pássaro), coelho, elefante, galo, jabuti, lobo, macaco, mocho (coruja), onça, preguiça, raposa, sapo, tartaruga e timbu (pássaro).

LEIAM meus trabalhos "Africanidade: quilombolas", "Amores africanos", Atletas africanos", "Cultura africana", "Estórias cariocas acronológicas" - Partes V e V (cont.), "Leituras africanas", "Leituras africanas, dá licença?" e "Narrativas africanas".

F I M

Rubemar Alves
Enviado por Rubemar Alves em 28/07/2019
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