A gente vai levando (agosto de 2019)

Priscila acendeu o segundo cigarro em menos de cinco minutos. Não que estivesse se sentindo excessivamente nervosa ou ansiosa, mas por que lhe doía a lembrança da conversa que tivera com a mãe na noite anterior – fazendo com que se sentisse paralisada em um estado semicatatônico muito curioso.

A lembrança da conversa com a mãe remexia por dentro e uma tristeza leve tomava conta de todo o corpo. Movia-se muito pouco: sentada em uma cadeira da mesa da cozinha fazia movimentos leves com a mão para levar o cigarro até a boca. Depois deixava o braço cair, soltando baforadas invisíveis pela boca.

Eram duas horas de uma tarde ensolarada de janeiro. Segunda-feira, dizia o calendário na parede da cozinha. Izabel, sua única filha, estaria na escolinha para o turno da tarde do segundo ano. Dera à filha um banho e o almoço. Fez o lanche e pôs na lancheira. O ônibus da escola foi pontual. Como sempre, buzinava à porta ao meio-dia e meia.

Com a menina na escola, podia permitir-se viver toda a tristeza que lhe acometia. Questionava o que fazer para resolver o problema do dinheiro: no caso de não conseguir uma fonte de renda, talvez tivesse que mudar de casa e retirar Izabel da escolinha. Por via das dúvidas, já houvera dispensado a faxineira... O que mais fazer?

Priscila não trabalhava. Era divorciada e contava com a pensão que recebia do marido mensalmente. Mas o ex-marido morreu, e agora? Procurava não demonstrar fraqueza, queria que Izabel acreditasse que tudo estava bem. Seja como for, não havia muito o que notar, pois sua tristeza era seca, não lhe descia uma lágrima pela face.

Fazia dois meses e quinze dias que Jules morrera em um terrível acidente de carro. O acontecido mexeu com toda a família e conhecidos. No começo a ex-mulher não queria acreditar. Apesar de separados, Priscila nutria um amor de obrigação por ele. Em todo tempo de separados nunca falhara em suas obrigações financeiras de pai de família.

Mas quando se deu conta do acontecimento, Priscila já havia atravessado a fase do velório e do enterro: então pôde refletir sobre a questão do vil metal, o dinheiro. Sem o fluxo mensal da pensão do ex-marido, o que fazer para sobreviver com Isabela? Pois na véspera, um domingo, fora bater à porta de sua mãe para uma conversa sincera.

No começo, só carinho. Sua mãe intuía o propósito da visita, mas não falou nada até que Priscila tocasse no assunto. Tomaram chá de camomila com duas gotinhas de leite e comeram biscoitos. Priscila lembrou-a de quando saiu de casa e como ela então reagiu sem levantar problema algum. E veio a hora de tocar no assunto do dinheiro.

Maria Júlia, a mãe, ouviu-a atentamente antes de se pronunciar sobre o assunto. De fato, houve um pequeno silêncio entre a fala de Priscila e a manifestação de sua mãe. Minutos que pareceram a Priscila um hiato do tamanho de um vale onde corre lá no fundo um rio. Pois a mãe era aquele rio.

A mãe sorveu o último gole do chá, pousando a xícara sobre a mesa da sala de visitas onde estavam as duas. Priscila procurava desviar os olhos dos olhos de sua mãe, e com a garganta seca – não tomou sequer a metade do chá que lhe oferecera a mãe – esperou que Maria Júlia, sua mãe, se manifestasse.

A princípio, sua mãe era favorável a uma ajuda para sua filha e sua netinha. Abriu uma bolsa e retirou o talão de cheques. Preencheu o cheque com uma quantia decente. Daria para pagar o supermercado, uma faxineira, e ainda dois meses da escolinha de Isabela. Guardando o cheque na bolsa, não se cansou de agradecer sua mãe.

Mas Maria Júlia retrucou: “Filha, vejo com preocupação sua situação e da pequena.” “É tempo de pensar em trabalhar.” “Eu não vou estar aqui por muito tempo.” E acomodou-se no sofá espraiando as costas nele. Novamente o silêncio invadiu a sala tomando conta das duas. A fala de Maria Júlia surpreendeu Priscila. Era algo que não esperava.

Mas Priscila via que a mãe tinha razão no que dizia. Sua ajuda não haveria de durar para sempre e Priscila teria que buscar uma fonte de renda para sanar as despesas de casa e da pequena Izabel. Sua mãe calculou que a filha compreendera a seriedade de suas palavras e por isso abriu um amplo sorriso.

Priscila era formada em Educação Física, mas jamais trabalhara. Tão logo se formara, casara-se e veio a filha Isabela. Abriu mão de exercer a profissão para dedicar-se à educação da filha quando contava vinte e dois anos. Pensar hoje na possibilidade de um emprego trazia certo alívio a Priscila. Com algum esforço, ela se sairia bem.

Priscila guardou aquela conversa na lembrança até o dia seguinte, em que acendera o cigarro sentada em uma cadeira na cozinha. Pensou em maneiras possíveis de diminuir as despesas da casa. Eram grandes demais: as contas da água e da luz eram muito altas. E para manter uma casa grande toda limpa precisava da ajuda de uma faxineira.

Passado um mês da morte de Jules Priscila dispensou a faxineira. Puro desespero de não poder pagar por aquilo que, naquele instante, parecia um luxo. No início não cogitou trabalhar para levantar dinheiro para as despesas da casa até que travou a conversa com sua mãe. Talvez a dor da perda a houvesse forçado a alguma espécie de amnésia.

O sol já começava a se pôr. Isabela não tardaria a chegar. Priscila primeiro levantou-se da cadeira à qual estivera pregada por toda a tarde. Depois foi à busca de um xale para proteger-se da noite que começava fria. Por fim, sentou-se na grande cadeira de vime do lado de fora da casa e pôs-se a esperar. Tinha às mãos os classificados de um jornal.

Buscar emprego era o primeiro passo para Priscila resolver os problemas financeiros. Mais tarde iria preparar currículos para deixar em academias nos dias restantes da semana. Agora não: esta era a hora de receber Isabela, que vinha da escola. Vendo o ônibus despontar na esquina, Priscila colocou-se no portão com os braços abertos.