O CADASTRO DO PAI DO BANDIDO

Antônio Coletto – Agosto / outubro-2019

No Banco trabalhava-se intensamente. Do faxineiro ao gerente, todos eram polivalentes, como os craques de Coutinho na seleção de 1978. Meu setor era o cadastro, mas, amiudamente, sob ordens socorria, em demanda a outros. Tudo dependia do pico do dia em cada setor de trabalho. À época, final da década de 1960, a comunicação online ainda não desempenhava o papel que tem hoje, de assistência a tudo que envolve o ser humano e seus atributos. Relações online estavam adstritas à imaginação fértil ou ficção científica, de homens que viviam no mundo da Lua, onde o ser humano ainda não fincara o pé, o que ocorreu pouco mais tarde.

Os cadastros das empresas eram coisa muito séria, um mundo particular a guardar a honorabilidade de seus clientes e dos que apresentavam potencial para ocupar lugar tão bem protegido e reservado como expressão de idoneidade. Onde trabalhava - o cadastro - era o repositório confiável a garantir o sucesso e o êxito de empreendimentos, dos quais a casa participava através de investimentos ou financiamentos.

Dois funcionários sob ordens diretas de quem comandava o todo, a casa propriamente dita: ordens e orientações eram recebidas do manda-chuva, o gerente. Ele ordenava ao meu companheiro que recebera a chefia do cadastro. Eu, apenas um posto efetivo, ou, mais propriamente dito, um “pé de chinelo” sem eira nem beira. Apesar do “nada”, destilava de meus poros, de forma imperceptível, gotas de orgulho por estar depositário do segredo cadastral contido nos arquivos, cuja manipulação e manuseio eram reservados, entre todos os funcionários da casa, apenas a três pessoas, entre elas “euzinho” aqui. Privilegiado me sentia: naqueles arquivos estavam o cérebro e o coração da agência bancária. No universo de funcionários – cerca de três dezenas - a maior parte insuflada pela rebeldia dos dias, não guardavam muito respeito às regras consolidadas pelas instruções superiores. Contrariavam-nas e, vez ou outra, invadiam os arquivos sem o devido consentimento. Todavia, a nós – com senso e a contra-senso - restava a responsabilidade pelo manuseio dos dados guardados que, à vista da rebeldia e a contra ponto, não eram apenas por nós três, exercido.

Vivíamos o fim dos anos 1960 à passagem para o início dos 1970, década em que todos depositavam esperanças. A cidade e com ela toda a humanidade, ainda comemorava o grande feito do homem na corrida espacial, ao por seu pé no solo lunar, treze anos depois que o primeiro ser vivo, a cadelinha soviética Laika, orbitou o nosso planeta a bordo do satélite soviético Sputnik. Embora destinada a perder a vida na viagem, trouxe para a humanidade e, principalmente para a ciência, informações muito valiosas. Nessa corrida, entre promessas políticas de tons diversos, em plena guerra fria, a bordo da nave Vostok 1, o cosmonauta soviético Iuri Gagarin tornava-se o primeiro ser humano a ir ao espaço e dar uma volta em torno do planeta terra, a gravar na história da humanidade a sua alegria ao dizer: “a terra é azul”.

Os dias brasileiros não tinham cinqüenta tons de cinza, mas eram bem mais escuros e mais tensos do que para o resto do mundo. No final do ano de 1969, a austeridade do Ato Institucional n. 05, os resquícios administrativos e políticos do triunvirato militar que substituiu, em seu impedimento, o Presidente da República, eleito pelo Congresso Nacional, Arthur da Costa e Silva mostrava, com clareza do sol a pino, por que impedira o vice Pedro Aleixo de assumir o poder. A imprensa amedrontada, sob censura ainda não explícita, deixava transparecer nas entrelinhas, coisas não muito agradáveis, e o noticiário clandestino à ordem legal, confirmava prisões e mortes nos porões da ditadura, mercê de intenso combate aos ideologicamente contrários.

A preparação da Seleção Brasileira de Futebol para a disputa da Copa do Mundo que seria disputada no México, as intrigas entre o seu técnico, João Saldanha, e o também técnico, o ex-goleiro Yustrik, trazia um tom pitoresco à disputa pela taça. A seleção que fora muito bem nas eliminatórias, ganhando todas as partidas, não repetia o desempenho nos amistosos que antecediam o grande momento. Saldanha era irreverente, ideologicamente contrário ao regime político vigente. Passava seus dias sob a lupa do Poder. Não aceitava a interferência de ninguém, como deve um bom técnico proceder. Ao Presidente da República sucessor do triunvirato, por opinar sobre a convocação dos jogadores, respondeu: “ele (o presidente) escala o ministério, eu convoco a seleção”. Saldanha tinha o apelido de João sem medo. Seus jogadores passaram a ser conhecidos como “as feras do Saldanha”.

Não indo bem a seleção, como costumeiramente acontece, sobrou para o técnico: foi sacrificado. Noutra vertente, contam que, por ocasião do sorteio das chaves para o torneio, Saldanha distribuiu às autoridades presentes um dossiê com cerca de 3.000 nomes de presos políticos e centenas de pessoas mortas, desaparecidas e torturadas nos porões da ditadura, e que este fato teria sido a gota d’água para sua demissão. Foi substituído pelo ex-jogador Mário Lobo Zagalo e, sob seu comando, em julho de 1970 o Brasil assistiu diretamente pela televisão, no momento em que acontecia, todos os jogos e aplaudiu com muito entusiasmo a conquista definitiva da taça da Copa do Mundo, a Julles Rimet.

Os termômetros políticos registravam temperatura altíssima. Sob este clima, a cidade recebeu um filho que a deixara e, também à família, para viver na capital, à busca dos recursos e oportunidades abertos a quem ambicionava uma vida diferente, progressista, altiva e melhor, mais cativante e construtiva. Estes aspectos atraíam a juventude do interior que migrava para a capital. Retornava, agora, o filho pródigo, ostentando orgulhosamente o uniforme da recém criada e instalada Polícia Militar do Estado.

Anteriormente, cada estado membro da União tinha o seu aparato policial. Alguns estados o constituíam com a corporação da então denominada Força Pública e a da Guarda Civil que, apesar do “civil” na denominação, era fardada. Com o golpe militar de abril de 1964, que assumiu o governo da União e impôs ao povo brasileiro o regime ditatorial, o qual foi mais radicalmente consolidado com a outorga da nova Constituição em 1967. Descontentes os governantes e sob a égide do AI 5, os donos do poder impuseram via Congresso Nacional, a Emenda Constitucional Número 01 e, sob sua orientação, extinguiram os aparatos policiais e forças públicas estaduais, criando um modelo padrão para todos os estados membros e o denominaram de Polícia Militar. Para o estudioso Hélio Bicudo um modelo esgotado montado pela “ditadura militar para a segurança do Estado, na linha da ideologia da segurança nacional" com atribuição e competência de policiamento ostensivo e preservação da ordem pública, com o status “de forças auxiliares e reserva do Exército”. Nesta Polícia, fruto do poder ditatorial e sob o comando do exército, estava integrado o filho pródigo, aquele que voltara à terra que o viu nascer e que o recebeu com amplos e abertos braços, sob aplausos e com muita alegria por todos que o conheciam e à sua família.

Abro um parêntesis, por que necessário, para repetir o que dizem os filólogos: a palavra polícia vem do grego “polis”, de cidade, cidadão, cidadania. Militar vem do Latim “Miles”, milícia, das milícias romanas. O militar é formado para o combate, enfrentar o inimigo, vencê-lo, submetê-lo, nada tem a ver com polícia, que exalta, defende a cidadania. Ora, assim, Polícia Militar é uma antinomia, como se percebe.

Assumiu seu posto e, após acostumar-se e conhecer seus colegas de farda, transcorridas duas semanas, num final de semana, toda família e amigos mais chegados reunidos, o policial agora reintegrado à terra natal, ofereceu um almoço. Entre os convidados, além de familiares e poucos amigos de infância e adolescência, estiveram o Delegado de Polícia, que veio acompanhado de sua esposa, o Escrivão da Polícia e o Terceiro Sargento comandante do destacamento policial na cidade. Houve vivas e até discursos. Com a palavra anunciou propósitos e mostrava-se vaidoso em ostentar a farda e submeter-se aos fins a que se dedicava o glorioso Exército de Caxias: seriam duros os dias por vir, enérgico o combate aos terroristas e comunistas, pois que trazia formação e informação, tino de polícia social, adquiridos na escola policial e conhecia, como poucos as instruções do auto-escalão, técnicas de persuasão, inquisição e investigação, palavras que poucos entenderam por que na cidade, que vivia sob a paz do Senhor, nada havia com o que se preocupar. Não se deve procurar pêlo em ovos, murmuraram alguns. O Delegado e o Escrivão, adeptos da doutrina e do sistema que se esboçava, o aplaudiram entusiasticamente e de pé. Perceberam, entretanto, tímidas e sutis contrariedades nas expressões de algumas pessoas. O cabo advertiu a desnecessidade de preocupações, estavam em família, entre amigos e, quem não deve não precisa temer.

Logo depois de chegar ao rincão de origem, percorria as ruas da pequena cidade ostentando com orgulho o seu impecável uniforme de Cabo da Polícia Militar. Já não mais era o menino tímido, de pés descalços e sem camisa, que corria pelas ruas ensolaradas e poeirentas de outrora, reconheciam os moradores: era, agora, uma autoridade. Em seu braço uma divisa, uma patente, a de Cabo, e isto deixava transparecer em todos os seus gestos, contatos, atitudes e ações. A cidade, no tempo em que esteve fora, não recebera dele nenhuma visita nem notícias. Apenas os mais chegados, dele se lembravam e, agora, despertava-se com seu retorno.

Apegado aos princípios policialescos, base do aprendizado recebido na escola da polícia, especializou-se na caça e busca de bandidos, terroristas, comunistas, subversivos, estes os que professavam ou simplesmente simpatizavam-se com ideologias contrárias às professadas pelos “donos” do poder. Gabava-se o policial, falava com vaidade sobre diligências de que participara na capital efetuando prisões, aparelhando o ideal como defensor intransigente do regime forte, militar que imperava e a que servia, sem preocupação com o povo, os cidadãos, a cidadania de cada um que, como polícia, prometeu assegurar. Olhos turbados, enxergava inimigos em todos os seus conterrâneos. Com ideal imperialista, sem quaisquer escrúpulos, a todos abordava, transeuntes, pessoas que iam e vinham, nas idas e vindas do cotidiano de cada um. Nas ruas, em bares, lojas, farmácias, enfim em qualquer lugar parava as pessoas – fosse quem fosse - questionava-os e exigia que se identificassem. A grupos de amigos ou escolares, pessoas, familiares que conversavam ordenava a imediata dispersão. Para o Cabo da Polícia Militar, que contava com o apoio irrestrito do Delegado de Polícia, uma reunião de mais de duas pessoas era um complô subversivo. De todos exigia a apresentação de documentos. À resistência às suas ordens, em altos brados impunha respeito, muitas vezes sob agressão verbal e física. Os mais intrépidos e resistentes, conduzia-os à Delegacia de Polícia onde eram ouvidos pelo Delegado ou pelo Escrivão, sempre como suspeitos de subversão. E aqueles atingidos pelo infortúnio de não estar presente o Delegado ou o Escrivão ou, ainda, à vista de uma resposta incompreendida, podiam pernoitar na cadeia, ou mesmo ter um almoço, um jantar público fornecido pela D. Therezinha, fornecedora da comida aos presos da cidade, ou pernoites atrás das grades, até o Judiciário decidir o Habeas Corpus impetrado. Constante era a ausência do Delegado, atendia, também, em outras cidades da região. Louva-se, entretanto, a intervenção do Sargento que - e isto acontecia raramente – ouvia os presos, registrava seus depoimentos e os liberava.

Pouco tempo após a chegada do policial à cidade e suas incursões mancomunadas com o Delegado e o Escrivão de Polícia, chegou a ordem de afastamento compulsório do Sargento para a reserva. Com ordens expressas assumiu o comando da tropa o Cabo da Polícia Militar, a maior patente, até que outro sargento fosse designado para preencher a vaga.

A cidade era pequena, não tinha mais que 5.000 habitantes urbanos, mas era uma comarca a jurisdicionar vários municípios. A zona rural era bem ampla, todavia o êxodo rural continuava a inflar as metrópoles as quais empurrava essa população para as periferias, a facilitar o surgimento de bolsões de pobreza desprovidos de qualquer assistência, onde a miséria material e moral campeavam. Não era o caso, entretanto, da cidade que agora descrevo. Todavia, os problemas das grandes cidades já eram sentidos nas pequenas, mercê, principalmente, de uma administração federal centralizadora, do arrocho salarial e da expressiva reprimenda à marginalidade.

As vias de comunicação intermunicipais e interestaduais eram deficitárias. Entre municípios e distritos eram piores. Os telefones, telégrafos e outros meios de comunicação eram todos muito ruins: uma ligação telefônica do interior para a capital demorava de duas a quatro ou seis ou mais horas. As estradas eram de chão batido, raramente melhoravam-nas com a inserção de cascalhos. O carro da época era o Volkswagen, apelidado de “pé de boi”, próprio às rodovias da região, enfrentava tudo, diziam, lama, poeira, chuva e sol, todo tipo de estradas.

Tudo era suportável àquela gente pacata e trabalhadora que, dia a dia, colocava mais um degrau em sua vida. Não contava, entretanto, em seu sistema modesto de viver, com o abalo à sua tranqüilidade: o novo policial, o filho pródigo, que não trouxera prodigalidade, mas severidade desmedida e imerecida, além do imaginável. Assumiu seu posto. Astuta e diligentemente, bom falante a doutrinar os companheiros com palavras de ordem e estratagemas, conhecimento absorvido na capital, empodeirou-se, tornou-se líder inconteste. Ao comandante levado à reserva coube acolher à ordem, à sua humildade. O Cabo, agora comandante, fez-se consultor e, com o apoio do Delegado, autoridade policial maior, embora da ordem civil, recebera em suas mãos o prato sobre o qual se regalava.

Com o comando em suas mãos – mesmo provisoriamente - e com o dever de impor e manter a legalidade, surpreendeu a população ao organizar blitizes. Todos os dias da semana, invariavelmente, e em pontos estratégicos, sob suas ordens, a Polícia Militar fechava as principais ruas da cidade, parava o trânsito nas ruas onde se localizavam as mais proeminentes casas comerciais. Instalava o seu aparato, organizava barreiras e impedia que veículos e transeuntes transitassem livremente: de todos, indistintamente, exigia a apresentação de documentos; dos veículos, de seu condutor, dos acompanhantes e pessoas que, por ventura ou aventura, circulavam. Fazia-o com satisfação, mostrando um sorriso sarcástico a ostentar sua autoridade. Àqueles nos quais percebia uma ironia, ou certa revolta na expressão do rosto, sarcástica e ofensivamente jogava de uma mão para a outra os documentos, revirava-os, manuseava-os, examinava-os lentamente com uma lupa que trazia consigo a procurar, procurar, demorando em devolvê-los. À resistência ou reclamação, dava voz de prisão e conduzia à Delegacia de Polícia, não se importando se idosos, mulheres ou jovens. O motivo: subversão. Com próceres da cidade estes fatos ocorreram, e o policial externava o seu sadismo orgasticamente com a humilhação de seus abordados, sorria de satisfação ao examinar documentos da mesma pessoa uma, duas, três ou mais vezes, pela manhã, à tarde e à noite, a esperar, aguardar com ansiedade, gestos de insatisfação a instruir o seu ego e tê-los como alimentos à sua vaidade, motivo abstrato a estimular e demonstrar sua arrogância autoritária. Onde a polícia, a guardiã da cidadania? Presente apenas o militar mau preparado, mas que satisfazia ao regime de força reinante. – E era apenas um cabo da Polícia Militar, comentavam. Todavia, é preciso dizer: muito bem informado. Alegava, frente à qualquer contestação, o surgimento de novos indícios, novas instruções a serem prevenidos. Tudo que fazia, alegava, tinha amparo nos Atos Institucionais.

O regime político sob o qual vivia o país, uma ditadura disfarçada de democracia, que mantinha o Congresso aberto sob suas censura e ordem, repressão que atingia qualquer atividade artística e toda a imprensa escrita, falada e televisada, chegara, enfim, à pequena cidade na pessoa do filho que retornara depois de tanto tempo ausente: agora a cidade estava, realmente, submetida a um regime “militaresco” não previsto na ordem legal imposta constitucionalmente, inexistente em outra parte qualquer, mas legal segundo as autoridades.

O Destacamento Policial era comandado por um Sargento bonachão e apegado a pequenos deslizes à vista do carinho que dedicava e recebia da pacata comunidade. Por de nada preocupante ocupar-se, à vista da reinante paz de todos apreciada, afeiçoou-se, com algum exagero, ao jogo de bocha e à cerveja disputada nas partidas.

Sabiamente e de forma estratégica, conhecendo a afeição e o gosto do comandante, o Cabo, com argumentos sólidos sob o signo corporativo e na visão “militar” atraída pela sua observação que desta forma a tudo identificava, e seduzindo os companheiros com palavras de ordem e pseudos perigos iminentes, por ele vislumbrados em todos os setores, dominou o regimento e o comandante que passaram a anuir a suas atitudes e ações. Trazia o seu e exigia dos colegas, o uniforme impecável e comportamento irreparável em serviço. Era bem apessoado a assemelhar-se com Robert Taylor, ídolo do cinema norte americano, alcunha que bem lhe assentou. Faltava-lhe tão somente o sorriso fraternal e simpatia, que lhe cedera a cidade em seu festivo retorno. Em contrapartida à simpatia cidadã, contraía os músculos faciais a expressar constante sisudez, firmeza e rancor na expressão carrancuda e seriedade no trabalho. Acreditava piamente no que ouvira em sua formação no quartel e considerava certa sua postura: até prova em contrário, “todos são inimigos”. Não conseguia ver de outra forma o povo, a cidade das peladas pelas ruas, das caçadas com estilingues nos arredores, dos jogos com bolinhas de gude, a sua cidade de tantos outros folguedos comprazidos com a rapaziada. Daquele povo, seu povo, seus irmãos – amigos de tempos idos - tornara-se, agora, o “inimigo número um”. A ordem haveria de prevalecer. Ao narrar esta história lembro-me de Ibsem em sua imortal obra teatral “O Inimigo Número Um”, embora – numa e noutra situação – exalam-se origem e condições diferentes.

O Sargento comandante, pouco tempo depois da chegada do Cabo, foi chamado à reserva. Pairou dúvida na população sobre seu afastamento, pois o tinha como filho, tanto que com ela se identificara.

Agira a Segurança Pública conforme previsão legal?, perguntava-se. A bem observar, na realidade, ou, talvez irrealidade, mas indispensável e verdadeiramente exegético, os conceitos de legalidade, ilegalidade, juridicidade, poder e exercício de poder com seus derivados, naqueles tempos, eram emblemáticos, distópicos, mercê dos debates travados por filólogos, filósofos, antropólogos e cientistas políticos nos campus universitários às vezes tomados pela esquerda opositora.

Longe deste burburinho intelectualizado demais para sua parca filosofia castrense, já que plantado no seio interiorano, tensional ou intencionalmente, até mesmo sob a faculdade de um pseudo ideal pátrio, com características tipicamente utópicas, a assemelhar-se a deslumbrado desvario, o Cabo da gloriosa Polícia Militar assumiu o comando, provisoriamente é claro, mas com postura e rigor exageradamente militar: compôs a tropa, exigiu a presença das autoridades e, solenemente, assumiu o comando. A comunidade que a tudo assistia, extasiada se ressentida.

Não molestava ao agora comandante, ao contrário, dava-lhe prazer observar a cara revoltada da pessoa que, grande número de vezes, horas ou minutos antes, já fizera o mesmo procedimento com os mesmos documentos. Aos argumentos verbalizados, o sarcasmo e a ironia respondiam. Isto é sadismo, hipocrisia, alegavam. Mas nada o demovia de seu intento, inexplicável à vista da população aturdida. E com as pessoas consideradas da alta sociedade, o rigor era mais intenso. Lá vêm as dondocas, veja como se faz, dizia aos outros militares. Com elas as operações eram mais demoradas, tudo exigia minucioso exame, até mesmo observações moralistas quanto aos costumes, comportamento e vestimentas, sem qualquer pudor fazia.

A paciência, a tolerância, sob a ênfase religiosa, muito bem alimentada, sob essa desmedida pressão, às vezes explodia. A pessoa que assim o fizesse, era conduzida, sob “escolta”, à Delegacia de Polícia. Lá outros entraves eram encontrados a exigir solução. Advogados de plantão, especialmente o decano dos vereadores da cidade, procuravam fornecer o socorro devido, eis que, “ainda havia juízes em Berlim”, como respondeu o moleiro a Frederico II, Imperador da Prússia, no poema “O Moleiro de Sans-Souci”, de François Andrieux.

Os dias, semanas e meses tornavam-se passado sem que mudanças afetassem aos tormentosos atos cometidos em desfavor da população. Sucediam os excessos, abusos de poder em nome da ordem e do bem estar nacional. Assistiam dúvidas àqueles que deixavam suas casas para cumprirem obrigações quanto ao retorno a seus lares, mercê da tensão social inspirada por constante suspense.

O Banco passou a ser um refúgio dos descontentes. Em nenhuma oportunidade os comandados do Cabo chegaram, ou mesmo ele, a se aproximarem da casa bancária. Quanto aos funcionários, vez ou outra era um apreendido em uma das constantes blitizes arquitetadas pelo policial, ou, intimado a prestar esclarecimentos sobre o que “dissera”, “ouvira” ou “fizera”. Sofríamos, como toda a população, a mesma e tormentosa angústia. Como abrigo, a casa de tratos financeiros viu-se um recanto de desabafo e descontração. Não eram muitos os que apareciam, mas quando se viam tomados de coragem, despejavam relatos de coisas atrozes, soltavam da garganta toda a insatisfação retida pelo cisma e em proteção à família. Sabiam que a vendita era certa e, talvez, mais cruel. O gerente os ouvia, falava pouco, mas rangia os dentes só em ouvir e imaginar a pacata cidade nas mãos de um déspota de patente rasteira. Nesses momentos engendravam estratagemas, contudo, esbarravam em entraves aparentemente intransponíveis: “quem colocaria o sinete no pescoço do gato?” À mercê da tirania estava a cidade.

O Cabo, comandante do contingente Policial sempre impecável, mesmo sob o calor terrível e a poeira levantada das ruas sem pavimentação. Mostrava-se sempre impassível, nada o tirava de sua indefectível carranca. Jogava o seu xadrez sempre de olho no rei – que é quem manda. Aos questionamentos eventualmente levantados, respondia monossilabicamente a não deixar dúvidas sobre quem ordenava, de onde vinham as ordens e a quem eram destinadas. Não falava, apenas indicava os que à Lei tinham a obrigação de subordinar-se, a mesma Lei elaborada pelos golpistas de quem era servidor.

Elevado ao status de comandante do contingente local, o Cabo somente prestava obediência ao comando maior sediado na capital. Era sua afirmação, que ninguém ousava contestar. Portava-se como se fosse órgão do comando maior; procedia de acordo com as regras que trouxera do comando da capital. As instruções que de lá chegavam eram poucas e somente dele conhecidas; as informações publicadas pela imprensa eram todas filtradas pela censura. As clandestinas, que por outras vias chegavam, cridas como verdadeiras, sempre desmentidas, eram rigorosamente perseguidas, e quem as levasse à circulação, conduzidos para esclarecimentos. Onde estaria a verdade?, perguntavam os mais afoitos.

Era visível a alegria, a satisfação do Cabo e sua tropa ao fazerem o que os aprazia. O Delegado de Polícia, adepto da mesma doutrina, agia como uma espécie de inspetor geral em supervisão: ficava poucas horas na cidade. E, esta, em suas constantes ausências, na esfera civil, sob a tutela do Escrivão que se cobria com o direito de ouvir e até ordenar prisões: era subserviente ao Delegado e dele recebia o poder com o qual se vestia. Deixou o bigode crescer e o imitava em tudo, até mesmo no hábito de fumar charutos. Com lhaneza e simpatia atendia, apenas, à advocacia, à promotoria e as ordens judiciais, sob a observação da “ética revolucionária”.

O Judiciário, por força do AI-5, quase que literalmente transcrito na Emenda Constitucional n. 01, de 1969, fora político-administrativamente calado.

Aquela segunda-feira, o 31-03-1970, foi especial. Inúmeros rumores sobre os acontecimentos do final de semana ainda circulavam, especialmente sobre o balão, todo pintado com as cores da bandeira nacional, que aterrissara no domingo pela manhã, no Largo da Paz, atrás da Igreja. Surpresa, a população compareceu para ver e a indagar: o que fazia aquele balão na cidade? A explicação veio nas palavras do presidente da comissão dos festejos do padroeiro da cidade: o balão foi contratado para que a população – quem o quisesse – pudesse fazer um vôo panorâmico sobre a cidade. A nave permaneceria na cidade e à disposição até na segunda feira quando, pela manhã, retornaria à capital. A idéia era boa, o feito melhor: foram aplaudidos. Havia dúvidas, entretanto, quanto a alçar vôos com as condições climáticas desfavoráveis, embora o sol começasse a mostrar-se generoso.

Nos últimos dias, derramara chuvas torrenciais em toda a região, provocando o isolamento da cidade. A comunicação rodoviária, única para mobilidade, ficou totalmente interrompida. Mesmo em sendo o clima diverso, alguns vôos foram realizados para gáudio de toda a população. Mas não somente o clima meteorologicamente falando, estava ruim. Todos percebiam, os olhares das pessoas revelavam o sentimento de cada um, pois que, sem o desejar, pareciam expor suas próprias almas, e com isso revelavam o que nelas se aninhava. Havia no ar um sentimento de festa e a tristeza da uma despedida. A questão era que não se sabia de que se tratava, mesmo que todos sentissem.

O sábado e o domingo passaram com chuva e sol sem o casamento de espanhol. Na segunda o tempo amanheceu firme. Logo cedo o sol brilhava no céu. Entrávamos em serviço, no banco é claro, ao meio-dia. Iniciávamos nossa lida diária sob os comentários a respeito dos acontecimentos do final de semana. A novidade fora o Balão. O Baiano conseguiu efetuar o vôo e contava aos colegas a experiência. O Gerente chegou pouco mais tarde e atendeu algumas pessoas que o aguardavam. Depois, visivelmente nervoso, quase tresloucadamente, adentrou na sala reservada ao cadastro onde encontrou a mim e meu chefe imediato a confabular e organizar pastas de clientes, de fichas já revisadas, candidatos a financiamentos.

O sol naquele dia estava pródigo, a pino, castigava com seu ardor e desfazia os efeitos das chuvas: começava a secar o chão e a facilitar a mobilidade. A assim continuar, em dois dias todas as comunicações estariam restabelecidas, embora, de imediato, estava impossível sair da cidade. O dia apresentava-se bonito, mas a tristeza do povo mais se acentuara. O assunto em todos os cantos era o seqüestro dos três cidadãos sem lhes permitir sequer que levassem consigo qualquer roupa ou objetos de higiene pessoal.

No Banco não se falava de outra coisa, comentários e opiniões eram exarados, todavia sempre contidos e disfarçados, eis que, na temperatura hormonal em que a cidade vivia, todo cuidado era pouco. Os mais ousados diziam desconhecer a presença do padre na paróquia, para todos um ponto de interrogação, de onde surgiam as perguntas: terrorista? Acoitado pela igreja? Assaltante de bancos?, partidário de Lamarca? De Marighela?, quem era ele, afinal? Sobre o vereador, a justificar sua prisão, só o discurso proferido na última sessão da Câmara Municipal, ocasião em que pronunciara palavras e frases veementes, que seus pares nem em sonhos esperavam dele ouvir. E a professora Ávila?, perguntavam, pessoa tão gentil, tão querida de todos, tão gente boa. Ninguém ousava responder, respondiam a si mesmos, ou, uns aos outros, ao pé do ouvido, como autômatos, a repetir o que dos lábios dela ouviram, no momento em que o cesto do balão que levava os três e deixava o vazio no convívio dos estudantes que cercavam o Largo da Paz.

Naquele final de semana os festejos foram intensos. A segunda-feira amanheceu com o sol a brilhar. O povo fora convidado para aplaudir a decolagem do Balão que tanto brilho trouxera aos festejos. Na hora marcada o povo compareceu e cercava o largo onde estava o Balão, já inflado. Ouviu-se, entretanto, um atropelo, tiros foram disparados, gritaria, choros, formou-se um tumulto: homens da polícia federal arrastavam três pessoas encapuzadas e, aos trancos, exigiam passagem entre a população, agora, totalmente aturdida pelo desagradável desfecho dos acontecimentos. Jogaram os três dentro do cesto do Balão e, em homenagem ao espanto do povo incrédulo, removeram os capuzes a revelar o Vereador, o Padre e a Professora Ávila. Soltaram as amarras, o Balão alçou vôo com destino desconhecido. Os presentes à despedida, não podiam acreditar no que viam, apenas ouviam o que, em altos brados, dizia a Professora: não se esqueçam, meus queridos, o que lhes disse sobre Sócrates! A história se repete, a história se repete foi dizendo até não mais ser ouvida.

Quando apenas um ponto mais escuro e indefinível flanava no espaço, confundindo com a claridade do sol, as pessoas que dos seqüestrados se despediram e já se iam dispersando, foram surpreendidos pelo Cabo comandante do contingente policial que, acompanhado de três outros policiais, efetuaram a prisão da irmã da professora que, em companhia dos três filhos e da empregada, acorreram em socorro da professora diante da truculência sofrida, proferindo apupos aos seqüestradores e, à instância do momento, liderava um grupo de estudantes inconformados. Fora levada à Delegacia de Polícia, deixando os três filhos com a empregada que os acompanhara. Mais uma arbitrariedade, abuso de autoridade reclamaram os que presenciaram o ato, a iniciar diligências para fazerem chegar à família as informações.

Na Câmara de Vereadores da cidade, nos dias anteriores e aflição e indignação, aos representantes do povo, chegavam queixas, reclamações, relatos os mais diversos sobre as ações da Polícia Militar. Reforçavam-nos as entidades sindicais e os clubes de serviços. Pediam com muito empenho e veemência a cabeça do Cabo comandante da Polícia Militar, fonte de toda arbitrariedade. Em várias sessões os vereadores confabularam, trocaram idéias, ouviram pessoas da comunidade, aconselharam-se e, por fim, resolveram por votação unânime: a Câmara Municipal oficiaria o Governador, a Secretaria de Segurança Pública e o Comandante Geral da Polícia Militar do Estado relatando os acontecimentos. Fizeram-no com presteza.

Dias, semanas, meses passaram sem que as respostas aos Ofícios aportassem à cidade mais e mais ofendida pelo exercício do poder. Cobrado pelos seus concidadãos, o vereador mais velho e com mais legislaturas, na última sessão plenária, antes dos festejos do padroeiro, em contundente discurso da tribuna do espaço ainda democrático - ou que se supunha democrático -, hábil na articulação das palavras, advogado por profissão e em nome de seus colegas e do povo, por ser o decano da casa, saiu em defesa da população advertindo que as autoridades policiais locais haviam invertido seu papel: na cidade estavam para proteger, dar segurança à população, mas fazia o contrário, impunham terror, acusavam cidadãos de bem de terroristas quanto ela, a polícia militar era a terrorista, desrespeitava as pessoas, atropelava a ordem social, conspurcava a dogmática jurídico-penal, solapando prerrogativas a provocar o desmantelamento do Estado Democrático de Direito com suas constantes práticas de ilegalidade e afrontas descompromissadas com a mais pura e sublime exegese do direito. Ofensa atroz a todo e qualquer princípio dos direitos humanos, emanados que são da Declaração dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, reforçados pelo Pacto de São José da Costa Rica, assinado pelo Brasil. Para estes falsos brasileiros, as leis vigentes não bastam, forjam-se novas. Constroem utopias castrenses e as ofertam ao comando de patentes rasteiras. As flores não nascem dessas normas, de terras tão estéreis. O ser humano é demasiadamente humano para entender descalabros que se assemelham a ironias nazi-fascistas. Mas o representante do povo, escolhido democraticamente para em seu nome falar, sabia que o direito não é perfeito, mas ainda é a única ferramenta à disposição da ordem e do bem estar da população. Invocou assim: é esta ordem, é este bem estar que suplico, meus colegas, que estão sendo turbados, tirados de nosso povo.

Na sala do cadastro, muito atordoado, o gerente, pessoa simpática, ótimo ouvinte, que aportara na cidade a cerca de um ano, com a mulher, três filhos e a cunhada, abriu um dos arquivos e dele retirou uma pasta parda na qual constava a ficha cadastral de um cliente. Após alguns segundos a examiná-la, cada vez mais a demonstrar sua ira, muito nervoso – à flor da pele, costumavam dizer – disse com a voz embargada pela emoção, gaguejando me ordenou: suspenda o limite deste cara imediatamente. Aos cadastrados no Banco, pessoas físicas e jurídicas, com base em seu patrimônio - bens direitos e obrigações - e na sua idoneidade, que refletia também um patrimônio moral – tudo devida e criteriosamente apurado – atribuía-se à individualidade de cada pessoa (física ou jurídica) um limite para operações, uma medida de segurança para contrair-se obrigações junto à casa. Este era o limite que o gerente me determinou suspendê-lo. Sabia o gerente, homem perspicaz, inteligente, forjado no comércio e de boa formação acadêmica que, se concretizada a suspensão determinada, adviriam conseqüências drásticas a incidir sobre operações em andamento e, com certeza, na proibição de se contrair novas operações com o Banco, pelo menos até o devido restabelecimento, além da severa vigilância das operações em curso, a exigência de retribuição em conta corrente. Esta exigência, à claridade solar, não guardava compatibilidade com o regime político pesado e a alta inflação a campear e dominar o cenário econômico-financeiro e político reinante no país.

Para se suspender um limite cadastral – alguns deles atribuídos pela Diretoria do Banco – era necessário fundamentar o propósito, expor razões e motivos que comprovassem a necessidade de tão severa medida. Os fundamentos exigidos eram como os judiciais, pois que, nenhuma decisão judicial pode ser proferida sem o devido fundamento. Cercadas de plena juridicidade eram as rígidas instruções do cadastro no tocante à concessão e à suspensão de limites. Assim, pensando que razões assistiam ao gerente, perguntei-lhe: sob que alegação devemos suspender o limite? O gerente saindo de nossa sala, ao adentrar a porta de comunicação com a gerência, virou-se e, rusticamente, com expressão de ódio estampada em seu rosto, exalando furor, com outra pergunta respondeu: ser pai desse milico desgraçado não é motivo suficiente? Fiquei pasmo. O colega, tido pelos colegas como isento, frio nas horas mais tensas, ficou estupefato. Perdemos a voz. Nunca víramos o chefe tão fora de si, a demonstrar desequilíbrio. Olhamos um para o outro e, rompendo o silêncio eu disse: Não sei, pensei mais. Sei lá? Talvez. O colega emudeceu. Continuei a remoer e balbuciar: Talvez! Pode ser! Não, exclamei! Não mesmo!, refleti, não é o suficiente: a pena não pode passar da pessoa do criminoso.

Ouvi ainda nos bancos escolares que “os lírios não nascem da lei. Mas de decisões nascem delírios”. O poeta Carlos Drumond escreveu que “havia uma pedra no caminho”. Não errou: havia uma, duas, muitas pedras no caminho naqueles tempos de repressão castrense. O vereador pediu calma, tolerância, eram dias difíceis que haveriam de passar. Não conseguia ver, entretanto, que os delírios advindos das decisões tomadas no centro do Poder eram psiquiátricos e mereciam tratamento. O povo estava saturado, quase a explodir, mas aguardava em silêncio. E, no silêncio e em silêncio, retornou o vereador trazendo correspondência com timbre da Secretaria de Segurança Pública, assinada por um Coronel, endereçada ao Cabo da Polícia Militar. Logo a cidade voltou à sua vida normal.

ANTÔNIO COLETTO
Enviado por ANTÔNIO COLETTO em 29/10/2019
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