A primazia do costume (outubro de 2019)

A primazia do costume

Sou uma tia eternamente insatisfeita. Para mim o que importa é a felicidade de todos, de tal forma que entre os filhos e os filhos de meus filhos tudo corra de forma a privilegiar os laços de parentesco, sempre harmonicamente. Mas sou infeliz porque na vida o que ocorre não é da forma que desejo.

Um exemplo é Patrícia, filha de meu irmão mais novo. Por uma questão estúpida do tipo de fofocas acerca do marido dela deixou de falar com Lúcia, prima e amiga desde a tenra infância. E o pior é que nunca ficou realmente claro se Lúcia realmente agiu contra Patrícia. Mas a pequena dúvida falou mais alto e as duas passaram a se evitar.

Outro exemplo que me entristece é o caso de Rafael, outro sobrinho, que por pouco não saiu de tapas com seu primo, meu filho, Paulo. Paulo arranhou a lanterna traseira do carro de Rafael no estacionamento, em frente à minha casa, e a confusão estava feita. Paulo aceitou pagar de imediato o concerto, mas Rafael preferiu leva-lo à justiça.

Tudo bem que Rafael desejasse a deliberação do juiz de pequenas causas, mas por que não aceitar de bom grado um acordo com seu primo, alguém não estranho, alguém com quem cresceu junto jogando bola na rua, alguém com quem trocava figurinhas? Onde está o sentimento de confiança entre primos? São quase irmãos.

Um último exemplo que me dói foi o soco certeiro que Alice, outra minha sobrinha (tenho uma dezena) desferiu no olho de minha filha Jane. Discutiram sobre algum assunto idiota, relativo a um vestido emprestado a Jane por Alice. Jane jurou tê-lo devolvido, mas Alice jurou que não o havia recebido: procurou, mas não o encontrou.

Minha filha chorou. Foi previsível para mim que sou mãe. Jane puxou a mim nesses assuntos. Sensibiliza-se não com o fato do desaparecimento do vestido, mas pela mediocridade envolvida no fato de Alice acreditar que Jane havia de alguma forma se apropriado dele. Eu a abracei e confesso que também chorei com ela, baixinho.

Meu marido tentava explicar minha horrível infelicidade pelo fato dos meninos, agora homens e mulheres feitas, terem tomado caminhos diferentes na vida. Enquanto os beligerantes haviam se formado médicos e médicas, os outros (a exemplo de meus filhos) eram funcionários públicos. Mas pensar assim nunca me convenceu.

Tenho minha própria maneira de compreender esses casos horrorosos que aconteceram em minha família. Em minha juventude, isso seria impossível de ocorrer. Em primeiro lugar, éramos todos primos e primas, éramos parentes. E parente não se desentende com parente, essa era uma verdade perfeitamente aceita por todos.

Nos dias de hoje, acho que por culpa da televisão, os laços de parentesco são postos de lado, são relativizados. Pequenos desentendimentos são aceitos como norma, não como uma exceção. Gente que nasceu e cresceu correndo juntos pelos corredores da casa do tio ou da tia hoje vira as caras um para o outro por um motivo banal.

Meus sobrinhos e meus filhos já não se dão da mesma forma como eu com seus pais e mães. O que era lei em minha época hoje já não tem o mesmo valor. E por isso volta e meia eu derramo uma lágrima aqui ou ali ao observar o absurdo que esses jovens apenas saídos da puberdade inventam para se destruir uns aos outros.

Tenho que culpar a falta de costume, e para isso penso nos pais e mães desses filhos de Deus. Culpo até mesmo a mim e meu marido pela situação em que se encontram os relacionamentos dos membros de nossa família. Erramos todos ao acreditar que por mera imitação nossos filhos cultivariam o bem maior do parentesco.

Muitos anos viram esses homens e mulheres de hoje quando crianças correndo pelos corredores de nossas casas nas datas festivas. Nas festas de aniversário e no natal brincavam de esconde-esconde e disputavam os docinhos da festa na grande mesa da sala de visitas. Abraçavam-se e davam-se as mãos.

Quando é que poderia eu imaginar enquanto cresciam que os anjinhos da minha vida um dia voltar-se-iam uns contra os outros? A meus olhos, eram todos de mesmo sangue, ossos, cartilagem. Como passar por cima dessa verdade clara como água? Como conseguiam esquecer-se de sua amizade de longos anos?

O costume, digo novamente, é o que não poderia ter falhado na criação desses indivíduos que amo desde quando acenava para eles em seus berços. Acompanhei seus primeiros passos, ajudei a soprar a velinha do primeiro aniversário. A alguns vim mesmo a ensinar a pronunciar as primeiras palavras.

Pois sou uma tia eternamente insatisfeita. Eu me ressinto daquela época no início da adolescência deles em que me diziam “a benção, tia”. Isso já não acontece mais. Os poucos sobrinhos que me frequentam andam sempre apressados demais para tomar um café e prosear em torno de um pedaço de bolo.

É difícil conceber o responsável por isto. Mas na minha época, quarenta anos atrás, primeiro vinha o costume. Depois os particulares. Primeiro o costume criava seus laços indestrutíveis, depois havia as particularidades. O costume sempre os forçava a pertencer a uma vida comum: havia os nomes e apelidos carinhosos mas engraçados.

Essa foi a criação que tive eu e os pais desses jovens. Pois ainda hoje nos frequentamos com a mesma regularidade e dever. Sim, tomamos como uma obrigação nos vermos sempre que alguma brecha na vida cotidiana nos permite. Quanto aos nossos filhos, entretanto, embaraçados procuramos calar e fingir-nos de mortos.

Satisfeita sou, a despeito de tudo relativo aos filhos e sobrinhos, pelos elos imutáveis com os meus primos e primas. Tenho a certeza de que a falta de costume de seus filhos é resultado do tempo em que vivemos. Seus pais e mães nunca em suas vidas ensinaram-lhes a desmerecer nossas relações familiares. Talhadas pelo costume.