Corrida Brutal

Ninguém lhe disse, soube instintivamente que participava de uma corrida. A mensagem passada no inconsciente coletivo e que atraia os participantes: “sou insuficiente”. O prêmio oferecido: “ser amado”.

No início, competia com os irmãos. Corria dia e noite e como que por ironia, por ser filho do meio, sabia que o primeiro lugar era inalcançável, lugar ocupado pelo caçula, disputava com o irmão mais velho com unhas e dentes o segundo lugar.

Quando adolescente corria com os colegas, nessa época a corrida tornava-se cruel, queria estar entre os primeiros, mas seus atributos não permitiam para que alcançasse essa posição, estava entre os últimos e por consequência era humilhado pelos participantes que estavam em sua frente. E com esse mesmo ódio humilhava aqueles que estavam em posições inferiores.

Quando se apaixonou, corria ao lado de sua amada. Nessa fase sentia-se um pouco mais realizado, então não ligava muito para qual posição ocupava.

Mas, quando casou não permitia que sua esposa corresse em sua frente, participantes mulheres estarem em melhores posições que seus homens não era algo visto com bons olhos pelos outros participantes. E essas, por sua vez, por mais capacitadas que fossem para estarem na frente, seguravam o passo para não ultrapassarem.

Por volta dos 35 anos, assim como os outros participantes, sentia-se deformado, calvície aparente, barriga grande e dura, a essa altura ninguém mais se lembrava o porquê corria. Corriam apenas porque já estavam correndo há tanto tempo e era a única forma agora que encontravam para sobreviver. Os participantes jogavam sujo para estarem em melhores posições; mentiras, hipocrisia e humilhação eram as artimanhas mais utilizadas.

Na empresa em que trabalhava, os participantes recebiam um incentivo enorme para competirem entre si, artimanhas eram permitidas, só não declaradas, com isso a empresa enriquecia, vendiam ilusões aos participantes, ilusões distantes, jamais alcançadas, e como pagamento recebiam somente suprimentos necessários para permanecerem no jogo, cansavam-se por correrem demais.

Alguns paravam para se perguntar por que, pra quem, e pra que correrem tanto. Esses eram os filósofos. Outros observavam tamanha brutalidade com a qual os participantes corriam. Esses eram os poetas. Outros simplesmente cansavam-se e desistiam do jogo, esses eram intitulados pelos participantes como vagabundos.

Quando envelheceu não conseguia mais correr, e os que como ele já não conseguiam, eram excluídos da sociedade com tamanha facilidade, e lamentavam esse fato.

Agora tenta inutilmente correr, mas a morte está chegando, não tem mais tempo e nem forças. E o pior, a morte trouxe com ela uma grande verdade, que correu a vida toda atrás de uma mentira.

Game over!

Cecília Micheleto
Enviado por Cecília Micheleto em 27/11/2019
Reeditado em 02/01/2020
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