O BOLÃO DA VIRADA

Genésio Jesus Pio dos Santos era homem que tinha muita fé. E por esta terra esturricada de meu Deus não passou ninguém com maior zelo pela cristandade do que ele. Não entendia direito o sentido das palavras e, assim, por cristandade considerava tudo o que dissesse respeito a quem adorasse a Deus, independente de ir à igreja, rezar, se benzer, se batizar e se casar e ao morrer tomar a extrema-unção da boca do padre. Se há várias modos de ver Deus, há várias salvações...

Se houvesse contestação em defesa da igreja católica, aparava a conversa de pronto.

- Cê tá é querendo confundir Genésio com Jesus. Eu olho e tem crente, macumbeiro, espírita e para mim é tudo Fi-de-Deus, até aquele que tem um rabinho no coco da cabeça e anda cantando como grilo rarirari. E Deus não criou o tempo, criou no mundo do gato ao mucuim? Pois então, tudo é Fi-de-Deus, sem mas mas, ora ora, nem nem ou quês quês...

- Tá bom, GJ, sem osso, sem zanga comigo. E a sorte, como vai? Quem dos chefes dos Fi-de-Deus vai ajudar a ganhar o bolão da Mega-Sena de fim de ano?

- Sonhei ontem uma coisa esquisita que deu os números e garantiu que vou ganhar, mas tem uma pena... Vou ter que abrir um Centro de Contemplação Religiosa. Nunca ouvi falar em coisa igual, mas a entidade me disse que era assim. Num campo bem grande eu devia suspender no meio uma alvenaria redonda, fechando o aro com muitos vãos onde em cada um os fieis poderiam praticar seus evangelhos...

- Se a entidade deu os números que saíram da cabeça dela para a minha, ganhando vou construir o que já tá entabulado.

- Entendeu, não?

Impaciente, rabiscou o chão com um pedaço de vara, traçando um enorme quadrado com um círculo ao centro. E continuou riscando os compartimentos internos, enquanto os outros tentavam encaixar a tosca imagem no que tinham à cabeça.

Acreditar mesmo não havia nenhum vivente, mas, na virada do ano, pei bufo. Os mandões dos Fi-de-Deus bafejaram GJ de sorte e ele cheio de nota, em pouco tempo, fez o aleijão de alvenaria sair do chão. Cioso para cumprir o prometido, vigiava a obra todo santo dia, dando dor de cabeça aos obreiros.

- Mas oia, num é melhor assim? Assado é que fica bom... Nesse modelo, presta não, derriba, põe no chão, já... Cê ouviu o quesito da entidade? Não? O dinheiro foi ele que te deu? Então?

No final a face externa do templo saiu parecida com um gê um jota abraçados, algo assim GJ, com a perninha do jota agarrando o fundo do G e sendo a falta de junção arriba a porta principal. Dentro o braço do G se transformou em um local para a crença do Padre Jó, o famoso “Bafo de Vinho com Hóstia” e o resto do lugar foi dividido igualmente entre várias religiões.

- Programei assim, não. Culpe o ente quem não gostou, foi dele a ideia. Se quis me homenagear, quis. E quem vai ser contra o quiser de um ente assim com o Pai do Espírito Santo? Tu vai? Vamos deixar de ora pro nobis e catar logo quem quer ser parcero. Quero ver isso entulhado de gente.

E vieram os pastores protestantes, adventistas, testemunhas de Jeová, cada um com seus lero-leros. Diane de tantos pedidos, salomonicamente, decretava a decisão.

- Que se arrumem no canto de cada qual, não pode é invadir o alheio. Tem trinta reza? Divida o mês com cada um com seu cada qual.

E os adeptos do candomblé também chegaram com as bandeiras do batuque, do xangô do Nordeste, da encantaria, do tambor de Mina, da quimbanda e do xambá. Salomão de volta à voz de GJ decretou:

- Se misturassem por conta de vocês, mas dentro de seu quadrado.

Os espíritas caladinhos se apresentaram com a doutrina filosófica, dum tal de Kardek. E espiritismo é religião?

- Se é, se não, o pastor das ovelhas deles afirmou que apesar de querer ser ciência de observação e doutrina filosófica podia bem ocupar espaço no Centro.

- E pensa que não apareceram outros? Te digo. Só não veio aquele da nação dos de cabelinho em pé. Esses não apareceram, não. Assim, ninguém iria ouvir o grigrilar rarirari deles, pedindo esmolas. Mas me chegou um tal mestre Zé Bola, querendo lugar pra capoeira... Sem cerimônia o cabra disse que a roda de capoeira era quase uma religião...

- Dei não, aqui é do sagrado, isso de briga é do profano, não é coisa de santo, de jeito nenhum... Não ia pegar bem...

- Tinha três índios que acreditavam nas forças da natureza e nos espíritos dos antepassados e para eles eu cedi o lugar. E pra quê? Quase apanhei.

- Índio não adora a Deus algum, nem celeste, nem terrestre, nem de ouro, nem de barro, disse um crente me peitando. O padre nem, nem, mas os pastores, esses de jaleco e chapelão, vixe, queriam por que queriam o pedaço dos índios...

- Foi um desconjuro que nem te conto. Aí, eu apelei, quer não? Procure outro lugar, arribe! Mas os índios ficam, o pagé pode fazer fumacê. Vou fumar o cachimbo da paz em paz com a entidade... Xô. Como falei em expulsar, saíram abanando o rabinho entre as pernas...

Genésio Jesus Pio dos Santos, o homem de muita fé e agora nadando em dinheiro, se orgulhava da Babel religiosa criada por ele e na forma ditada pela entidade.

- Paguei o que devia, embora e entidade não tenha passado recibo. Mas pra quê, a obra está ali pro mundo ver, não é, não? Deu até no jornal, não foi?

Em terno de gabardine bege cor de poeira, tirando o chapéu de palha e apagando o charuto, arrotava alegria nos cantos, observando a pajelança dos índios, o culto dos crentes de bíblia às mãos berrando um palavrório sem fim, como se Deus fosse mouco. Os ritos dos caboclos e mães-de-santo rodopiando de branco na roupa e de colares fios-de-conta coloridos no pescoço. As missas e os sacramentos da igreja católica, invejando o vinho sagrado e de qualidade entornado pelo “Bafo de Vinho e Hóstia”... Não negava a oferenda, o dizimo, a esmola... Tudo corria bem bem, no modo dele de dizer, vendo as coisas nos conformes... Organizaram até uma feira popular ao redor. E para não estancar o progresso, mesmo não sendo bem apropriado, deu permissão para a instalação de uma quermesse com carrossel e roda-gigante e autorizou um circo abrir a empanada nas redondezas...

- Só não me abram a radiadora quebrando ouvidos e façam palhaçada com gritaria, quando os cultos estiverem acontecendo. Ia atrapalhar, alguém mandando um cheiro proutro alguém e o palhaço ladrão de mulher contando piada imoral de papagaio, enquanto outros rezavam o credo em cruz...

A cidade cresceu num rebuliço nunca visto. E ora vejam, até falaram pra ser vereador, e por que não prefeito, perguntavam uns mais entusiasmados...

- Sou disso não... Respondia encabulado. Fica pro compadre, gosto mesmo é de ficar ouvindo o béé béé béé dos bodes...

E com os dedos polegares enfiados na lapela da roupa passada desfilava a pança de homem bem sucedido, abençoando os afilhados. Não tinha nenhum antes da dinheirama, e agora já apadrinhara bem uns trinta. Até o molequinho capivara que não tinha levado à pia batismal ao vê-lo na rua estendia a mão suja, pedindo benção.

- Bença padim...

E lá se iam entre os dedos imundos algumas moedas acompanhadas do “Deus te abençoe”, da “lembrança à comadre” e do “não se esqueça de ir à escola e a missa”... E as comadres, estas também apareceram às pencas, para minutos de prosa às escondidas dos maridos.

- O bichinho não é parecido com o pai... E tu, se bem reparar vai ver que a cara de um é o espelho da do outro, vê em casa se não é? Nessas ocasiões, as moedas deixavam de tilintar e se transformavam em notas, com a promessa de outra noite te pago.

Nunca casara. Nem a fisionomia ou o tipo ajudavam se tivesse interesse. Nas precisões do corpo recorria às taperas de luz vermelha. Em casa não levava ninguém. E nem pensava em levar. Mas, como o dinheiro ajeita quem é feio, soubera até que vinha sendo disputado às tapas por duas solteironas bem arrumadas. As sirigaitas briguentas vinham da classe de gente que nunca se dignara a virar o pescoço em sua direção, antes de ganhar o prêmio. E agora isso, afora os bilhetes de casadas e solteiras que recebia aos montes. Até os parentes empurravam o femeal de casa pra riba dele.

Para não enfezar os amigos, provava de um guisado aqui, de uma panelada ali, se fosse convidado às festas nas fazendas, onde, às vezes, se deixava levar pela empolgação e fazia pernoites para acordar no meio da noite com algo ao lado se esfregando. E não era gato ou cachorro, muito menos morcegos e grandes guabirus... Certa feita, na casa de um grande um fazendeiro que os boatos davam como falido e que tinha mulher e duas filhas na idade de casar, fora acordado três vezes na mesma noite...

Quase não estranhava mais os sorrisos femininos e as palmadinhas nas costas dadas pelos homens. Afinal era celebridade e até a rua à frente da Congregação fora batizada de Rua Genésio Jesus.

- E esqueceram o Pio dos Santos, a troco de quê? O Pio é da mãe e o dos Santos vem do pai. Tá na certidão, não sou nem filho de chocadeira! Ponham tudo na titulação ou arranquem o GJ.

E lá na placa pregada no poste ficou o nome esticado, indicando o lugar. Tudo ia bem bem, até que, primeiro foram os índios que reclamaram.

- Seu GJ, levaram os apetrechos do ritual, não ficou um só fiapo de ganza para acender o cachimbo.

Depois, os macumbeiros.

- Em nome de Jesus quebraram de um tudo, os santos dos orixás viraram cacos...

Os espíritas queixaram-se das faixas de “Fora comunistas sem Deus” e das pichações. As ordens católicas protestaram contra o roubo dos cálices sagrados banhados em ouro e do quebra-quebra das imagens. Os pastores se engalfinharam em luta cerrada digna da violência estampada no Velho Testamento, porque os mais espertos estavam conquistando fieis das outras ordens...

A entidade trancada em copas não veio em sonhos para dar resposta ao caos e por isso foi se aconselhar com o delegado, com o juiz, com o promotor, com o prefeito.

- E se escrevesse para o Papa?

Nem sabe quem sugeriu. Mas será que o Papa não era homem muito ocupado para dar atenção a uma questão do sertão das Paraíba? Não se queixou ao Papa e nem ao Bispo sobre a Congregação que se transformara numa brigalhada tremenda. Chegou a ter morte na quermesse, quando foi revelada a mensagem da radiadora. O alguém que era o sacristão mandou mensagem cifrada para outro alguém que se soube mais tarde ser a mulher do pastor que hoje, coitado, está pastorando os chifres na cadeia e o sacristão na terra dos pés juntos, tendo deixado mulher e cinco filhos na orfandade...

E dizem que o padre andou levantando a batina para uma mãe de santo. Que um índio andou abusando do apito traseiro de um espírita de andar delicado em troca da graminha do fumacê. Que uma alma andou aparecendo na cama da mulher do prefeito, espírita de carteirinha, quando o marido ateu fiscalizava as obras junto com uma obreira da congregação e que por sinal era esposa do juiz. E até que o palhaço, agnóstico, e o anão sem convicção religiosa firmada andaram aprontando. E não foi com a mulher de barba, uma ateia aciganada, bem arrumada de atributos de cima a baixo, de frente ou de costas. Tirando a barba, o mais se aproveitava bem...

- Embale que o filho é teu, Genésio Jesus, dissera o promotor, ameaçando GJ com processo, se não cessassem as arruaças. Ninguém pagou o IPTU e o débito é teu, GJ, cobrou o tesoureiro da Prefeitura. A conta de água que parecia cobrar um mar e a de luz, também nas alturas, foram parar em seu bolso. E agora José? Ou melhor, e agora GJ? Parece que de tanto sem dormir a entidade se escafedeu de vez. Mas, em boa hora e em nome do pai apareceu um filho que nem sabia que fosse seu para cochichar algo em seu ouvido.

A partir daquele momento, o boato se espalhou. A entidade aparecera mais uma vez em sonho prenunciando desastre apocalíptico, caso as intrigas não parassem. Afinal, os Fi-de-Deus ofendiam ao Pai com a inveja, com a luxúria, com a ambição.

Era fim de ano. GJ foi à lotérica jogar novamente na Mega Sena da virada. A entidade sumida não sugeriu os números e, assim, passou batido na aposta, mas não deixou de entrar no ano novo premiado. Surpreendentemente, os festejos da passagem de ano foram iluminados pelas chamas de incêndio de proporção medonha que consumiram todo o prédio do Centro da Contemplação Religiosa. Não ficou pedra sobre pedra. Tudo se consumiu na fúria divina. Terminadas as festas, GJ foi ao banco receber o valor da cobertura do seguro. Nem era tão compensador quando o bolão da Mega Sena, mas deu para pagar os débitos e iniciar as obras de um shopping que deixaria sob a administração do filho como recompensa pelo bom conselho.

Não deixara de ser cristão. Mantinha-se firme em suas crenças, só que aprendera a não mais confundir Genésio com Jesus. O filho de Deus que guardasse as igrejas, os templos e os terreiros com o melhor nome que escolhesse e Genésio, em doce solteirice, que não se descuidasse da gestão de seus bens. A entidade só bate à porta do vivente uma única vez.