Quando a consciência cobra

– Moço, por que choras aí sozinho e largado nesse canto escuro? O que te aconteceu?

A pergunta, claro, era retórica. A moça que que fazia estava diante de um homem em completo (ou quase) estado de decadência e desmonte emocional. Ele não tinha nenhuma condição de responder ao que lhe era questionado. As lágrimas desciam convulsivas e lhe impediam a fala. A moça, de pele clara, olhos e cabelos negros como a noite, continuou:

– Tu choras porque acha que foi abandonado por quem amas, não é isso? Mas sejamos diretos, moço. Tu não foste abandonado. Tu provocaste o abandono.

Esta última fala cortou a já dilacerada alma do nosso personagem, que se remoía de culpa e de autopiedade. Parecia uma lâmina que corta ainda mais a carne já exposta.

– Tenha amor próprio, moço. Tenha amor próprio! – seguiu dizendo com voz firme, mas suave, aquela moça. – É ele que vai te ajudar a sair desse poço escuro em que tu mesmo se colocaste. Reconheça e aceite que um ciclo da vida terminou e que agora é necessário recomeçar. Ame-se para ser amado. Per-doe e perdoe-se para ser perdoado. Não adianta nada tu ficar pedindo ajuda e acendendo vela se lá no fundo do teu íntimo, tu está se sentindo um derrotado. O que foi feito está feito e pronto. Assuma e pague pelos seus erros, pois assim é a vida.

As palavras daquele ser iam entrando aos poucos na frágil e obscurecida consciência de Pedro. Este era o nome do homem que agonizava pela dor do arrependimento.

– Arrepender-se de forma sincera, moço, é uma atitude louvável, mas às vezes vem tarde, não é mesmo? Agora não adianta! Use seu arrependimento para mudar a si mesmo. É disso que precisas nesse momento. Ficar chorando e ruminando as mágoas só vai aumentar a tua dor. Tome uma atitude e seja do-no da tua vida e do teu caminho. Também não fique por aí mendigando o amor de quem não te quer mais. Amor não se mendiga, moço! Amor não se mendiga! Não te humilhes a tal ponto, pois tu não mereces isso. Liberta-te! A vida te chama.

Os pensamentos, lentamente, começaram a surgir na perdida cabeça de Pedro. Entre eles: “Es-ta moça fala como se fosse fácil!”, “É tanta dor que pensei em sumir no mundo, despedir-me da vida.”, “Eu sei que sou o grande culpado por tudo o que está acontecendo.”, “Tenho sentido muita raiva, ódio, ciúme e isso não é bom.”. Tão tolo, por estar tão fragilizado mental e emocionalmente, Pedro não percebeu que seus pensamentos estavam sendo ouvidos e ele ouviu mais:

– Moço! Moço! Tome tento! Tome juízo! Eu sei, ou melhor, nós sabemos que não é fácil! Quem sabe um dia eu te conte a minha história. Trate logo de apagar esses pensamentos negativos de tua mente e esses sentimentos ruins de teu coração. Tu bem sabes a que e até aonde eles irão te levar, caso insista em continuar com eles. Não esqueça também que, embora tenhas uma boa parcela de culpa, ninguém é culpado sozinho. Ninguém é só vítima ou só algoz nessa vida. Se a tua consciência te cobra, pague-a modificando-se a aceitando a tua dor, que é momentânea. Porém, não te deixes dominar por essa névoa enegrecida que paira sobre tua alma querendo devorar-te. A decisão entre viver e morrer é somente tua e seja qual for a que escolhas, trará suas consequências. Eu te aconselho a escolher a vida, pois ela é sempre a melhor opção! Agora levanta e me dê um abraço.

Pedro levantou-se, secou as lágrimas e virou-se para ver quem era que lhe falava daquela maneira. Ao olhá-la, espantou-se com tamanha beleza, simplicidade e elegância. Parecia estar num sonho, ao que foi advertido:

– Não se iluda com a beleza de minha face ou de meu corpo. Neste plano da vida podemos assumir a forma que quisermos de acordo com os nossos objetivos e missões.

– Neste plano da vida? Quer dizer que morri? E que é a senhora que há tanto tempo me fala?

– Não, não morreste! Apenas estás adormecido em sono físico e teu espírito veio até este lugar onde te encontrei! Quanto a mim? Bem, pode me chamar de tua guardiã, eu sou Maria Mulambo.

Boquiaberto, Pedro abriu os braços, abraçou e foi abraçado pela sua guardiã, que, neste gesto, pareceu remover dele boa parte daquelas energias negativas que o circundavam. O resto era com ele mesmo. Após o abraço, olhando-o fixamente nos olhos, ela ainda disse:

– Tu, moço, é muito mais forte do que isso. Tenha coragem de viver e de lutar! Ninguém ganha por antecedência, mas todos perdem por não lutarem. Dê vazão a teus sentimentos bons, viva os teus desejos e as tuas vontades numa nova etapa da tua vida. Esqueça o passado ou não deixe que ele interfira em teu presente e em teu futuro. Tome as rédeas de teu destino e vá ser feliz. Nosso Criador não nos fez para o sofrimento, contudo, nos ensina através do sofrimento. E tu não deste ouvido às mensagens que recebeste e mais uma vez terá de aprender pela dor. Faz parte!

Dito isso, ela o conduziu de volta ao corpo físico e ficou velando seu sono por algum tempo ainda. Tinha certeza de que fizera a sua parte e faria quantas vezes for preciso, mas como seria bom se os humanos encarnados levassem a vida com mais simplicidade e menos apego às coisas, sentimentos e pessoas. Parou seus pensamentos por aí porque ela mesma demorara séculos para aprender tudo isso. Ela também já fora cobrada pela própria consciência e já quitara suas dívidas, ao menos uma boa parte delas. Todavia, já era hora de ir embora. Encobriu seu protegido com uma camada sutil de energias tranquilizadoras e renovadoras e partiu. Partiu com a esperança de que ele trouxesse para a vida prática aqueles ensinamentos que recebera. Se a missão dela ainda faltava muito para cumprir-se, a dele estava ainda no estágio inicial e ela teria de ser uma mestra muito paciente e firme.

No outro dia, Pedro levantou-se com uma sensação diferente. Julgava-se mais leve e disposto a batalhar mais pela própria vida e felicidade. Tinha plena consciência das dificuldades, mas também sabia que era preciso ir à luta. Agradeceu por mais um dia de vida e de novo pediu forças para continuar a lida, sabendo que a força está em si mesmo.

Lá do outro lado da existência, certa moça captou os pensamentos dele, sorriu e falou:

– Vai, moço! Vai em busca de tua felicidade! Nós te amparamos, mas não podemos caminhar por ti e nem carregar a tua cruz. Vai ser feliz que um dia nos encontraremos!

Cícero – 02-01-2020

Cícero Carlos Lopes
Enviado por Cícero Carlos Lopes em 02/01/2020
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