história de ela.

Eu a conheci, há anos. Em tempos espirais me disse, com sua voz já fugidia, que havia sido deixada só, sem útero e sem hormônios ( sim, sofrera uma histerectomia total, "esses nomes dissipam qualquer sinal de beleza no trágico que é o devir," repetia-me...), após dias de convalescença e imuno-depressão. Sim, no dia em que se celebrava o feminino-mãe, em maio. Sim, eles eram amores de vidas; "ele fôra", relembra-me, pois estavam em processo de irem-se. Disse a ela que deveria sair para cumprir ato religioso. E ele foi-se, foi-se a mentir, como sempre fizera, desde o início. Ela descobriu meses mais tarde, o fato do qual relata como aquele que não faria a qualquer um dos seus, amigos, parentes, pessoas. O ato seria um evento com uma nova moça, já entrelaçados, em sua família. Não havia sido o primeiro. Foram inúmeros atos. Dolorosos. Os tempos parecem erosões em vertigens quando se perde o primeiro dígito de sua senha. Números que derivam apenas de descasos , ela pensava alto.

Antes que abrisse a porta, olhei em seus olhos e me vi, absurdamente nítida. Havia uma multidão nesse olhar. Havia tantos rostos. Vozes. Montanhas escarpadas, vivas e despedaçadas. Muitas a serem nomeadas. Olhos ainda a serem emoldurados por um continente. Transpassados pela maresia da linguagem feminina.

-Ana?

- Sim?

- Trago comigo este livro da Marguerite Duras; ela me protege do despudor do destino. Veja:

Leio, na pagina marcada, acenada para mim: " como pude escrever isto, que ainda não sei nomear e que me assombra quando releio?" Emudeço.

- Ana?

-Sim?

- A mulher de pedra revive toda vez que venho estar contigo. Essa é uma chave só nossa. Formamos um grupo: eu, você e Marguerite. E quem mais chegar.

- Somos muitas mulheres, não? Quantas mulheres nesse mundo?

- Com certeza, somos todas, elas que enfrentam lúteros, sozinhas, ou acompanhadas; esses sem a verdadeira partilha de companhia amorosa.

- O que seria lútero?

- Luto do útero, esse trabalho da perda de parte de nós. A parte do acolher o vir a ser, a vida.

- Penso que, para ti, o lútero também vem acompanhado de um outro luto...

- Somos imensas e múltiplas, Ana... hoje também faço o luto da perda daquele que foi a parte perversa de minha vida. Um homem que desmentia-se sem olhar. Porque não mentia para mim, não para mim... era feito sem coragem de sustentar seus desejos. Agora, só agora, começo a estender esta mão, ainda tão tímida, por tanto tempo, para o encontro com o pulsante e o ardente que ficaram mortos desde os primeiros anos.

- Fecho os olhos e me reencontro. Te reencontro.

- Queria respirar por todas as mulheres em lútero.

- Há amparo em tua busca. Há colo, vc sente?

-Ana, foi por isso que sempre vinha te ter. De que fugi? De um vazio?

- De saber que podemos achar o símbolo-mestre para dar contornos a este vazio. Este símbolo que existe e é cheio de verdades, mas existe para poucos sensíveis. O desmentido mata aos poucos. Percebo que ele deixou em cicatrizes, mas não te fisgou.

- O homem ou os desmentidos?

-Ambos.

Ana, ainda há muita vida, ainda sou entranhas vermelhas. Como aquele chiclete de pimenta. Feche os olhos. Corra e olhe o céu, doutora.