A loja ao lado (janeiro de 2020)

Aquele dia chovia muito e, por isso, resolvi ficar em casa. Era o fim da tarde de um sábado, em um dia quente de verão. Preparava uma sopa de aspargos e deixava a mente caminhar solta pela casa. Não pousava minha atenção sobre nada em particular. Para mim somente o fogão, a panela, o fogo.

A televisão, no quarto contíguo do apartamento, estava ligada em algum programa de auditório. Uma pessoa respondia perguntas para ganhar uma soma elevada de dinheiro. Mas não prestava atenção em nada de lá. Despejei na panela o pó de sopa instantânea enquanto mexia devagar o conteúdo com uma colher.

Foi quando avistei algo inusitado da pequena janela da cozinha, algo que moveu minha atenção para lá. Alguém (era para mim um ser humano) pulou o telhado da loja de colchões ao lado e tentava entrar através de uma porta no pátio de trás do lugar. A pouca luminosidade da rua ainda me permitia acompanhar seus movimentos.

Arremetia com força uma ferramenta de metal contra a porta, de forma que logo conseguiria derrubá-la. Ele estava muito sujo, dava para ver que as roupas estavam escuras, provavelmente pelo trabalho de escalar o muro amarronzado e caminhar se esgueirando sobre o telhado imundo. Não parecia, mas era um ser humano.

Minha imaginação, muito antes de pensar em chamar a polícia, percorreu solta toda a área entre meu edifício e a loja ao lado. Logo pensei, “Que sujeito burro, como pensa carregar o colchão da loja? ” “É impossível sozinho roubar um colchão daquele lugar a noite e debaixo dessa chuva! ” Eu dei com a colher na borda da panela.

Mantive os olhos no homem, mas não deixei de cuidar do meu jantar. Tranquilamente, continuei mexendo minha sopinha com a colher. Lá embaixo, ele ainda dava com a ferramenta contra a porta da loja, sem sucesso nenhum para entrar. Fiz uma aposta comigo mesmo: “Ele vai entrar, mas não vai levar colchão e sairá descontente. ”

Debaixo de toda chuva, já à noite e com a ajuda da tímida iluminação da rua, o homem aos meus olhos parecia muito à vontade para roubar a loja. Encontrou um lugarzinho coberto próximo à porta para se proteger. Tive a impressão de que estava manco, talvez tivesse se machucado na empreitada.

Nesse ponto, senti pena do homem. O que moveria alguém a roubar? Talvez fosse um desempregado, talvez não tivesse uma sopa de aspargos para a noite de sábado ou uma família, e talvez sequer tivesse uma casa para proteger-se da chuva. Mas aí também seria demais. “Todo mundo tem um lugar para proteger-se da chuva “ Pensei.

“E se tivesse falecido sua esposa, se não tivesse filhos, se não tivesse parente nenhum? “ Continuei: “Esse homem magro que vejo lá embaixo, quase como um esboço de gente, tem algum motivo forte para roubar a loja. “ E divaguei que “Qualquer pessoa que dá de roubar a outrem tem motivo de força maior. “

Minha sopa de aspargos quase queimou. Tive que desligar o fogo e mexer com a colher no fundo, para fazer descolar um pouco do preparado. Enchi um prato de sopa e pus na mesa para esfriar. Quase me esquecia do homem lá embaixo quando me ocupava disso. Então lembrei-me dele e voltei a observá-lo da janela.

Questionei-me sobre o que seria certo fazer naquele momento. E o mais certo seria chamar a polícia. Mas um desejo de continuar como detetive eu mesmo, ali acompanhando os fatos que ocorriam com o homem, fez com que adiasse para dali a pouco meu dever para com a polícia.

Ele continuava protegido da chuva, e segurava a ferramenta nas mãos. Por um instante, tive a falsa impressão de que nos conhecíamos. Alguns dias antes, tocaram o interfone do apartamento pedindo um prato de comida. Eu desci de prato feito e um copo de suco de maracujá. Assim que o homem comeu deixou o prato, copo e talheres na portaria.

Mas não, não era ele, embora desejasse muito que fosse. O moço do prato de comida era barrigudinho, com pinta de cachaceiro. Esse homem lá embaixo é muito franzino para ser ele. “O homem que assalta a loja é um esqueleto de homem. “ Podia observar agora. De novo fantasiei que roubava porque fazia dias que não comia.

“E seria justificável roubar por que não tem comida? “ “Que bom exemplo o meu! “ Deliberei. “Não... vou agora chamar a polícia. “ E parti em direção ao telefone no outro cômodo, mas não tive a coragem de completar a ligação. Decidi retornar e ver se o moço não desistia de roubar e ia embora.

“Entrar naquela loja nessas condições, debaixo dessa chuva, não vai dar certo. “ E fiquei esperando o homem ir embora. Contei de um a cem, depois sentei à mesa para tomar minha sopa, dando-lhe tempo para desistir de seus planos malévolos. Esvaziei metade do prato de sopa e voei para a janela para ver o que ocorria lá. A chuva diminuíra.

Lá estava ele, arremetendo a ferramenta contra a porta dos fundos da loja de colchões. Não desistia e, por um átimo de instante, torci por ele. Que ele lograsse entrar na loja e roubar não um colchão, mas quem sabe assaltasse a caixa registradora da loja? Seria mais inteligente e torci para que ele tivesse isso com clareza em sua mente.

Me questionei se seria cúmplice de uma ação ilícita e minha consciência disse-me não. E o homem arrebentou a porta. Eu, impulsivamente, corri para o telefone e chamei a polícia. Dei todos os dados, rua, número, coisa e tal. Disseram vir imediatamente. Eu retornei para a cozinha para assistir o desfecho da situação.

Lá embaixo, passados alguns minutos, somente o barulho da chuva leve e nenhum movimento. A porta estava aberta e o homem desaparecera lá dentro. Na certa, estava se confrontando com alguma dificuldade para roubar o dinheiro da loja que estava na caixa registradora. Ao longe, pensei ouvir o barulho de uma viatura de polícia.