SOMOS SÓ NÓS

Ela dirigia o seu Volvo e repassava todas as providências do dia. Deixara as orientações para que tudo saísse como planejado naquele dia especial em que comemoravam o aniversário de casamento. Apenas um jantar a dois, apenas nós, disse ela quando questionada sobre o que desejava fazer naquele dia. Saiu mais cedo do trabalho, arrumou os cabelos e as unhas. Desviou-se do caminho por alguns minutos para buscar aquele candelabro que vinha namorando já fazia meses. Ficaria ótimo na mesa, já imaginava os pratos encorpados, as taças de cristal e ele meio na lateral dando um toque. Nada como uma mesa bem-posta. A mesa, ela trazia do berço. Contudo, por mais que tentasse controlar, sua mente parecia desviar-se insistentemente. Algo insignificante, que lhe passaria batido, uma piada talvez. Houve um suicídio, alguém se jogou nos trilhos de um trem. Ao tomar conhecimento do ocorrido, um colega disse, em tom de reclamação ou brincadeira: logo no trem, atrasando assim a vida de tantos. Não bastasse a tragédia, no trem, será que ele chegaria na hora?

Entrou na garagem distraída, por pouco não atropelou um transeunte que passava correndo e, como ela, parecia ter seu tempo sempre ocupado. Sempre tinha pressa, e, no entanto, neste dia, a vontade era parar e chorar. Um dia tão festivo, ora vamos, sorria. Ele não havia chegado em casa, de modo que aproveitou para dar os últimos retoques. Maria já tinha se ido. A janta estava no forno, apenas ligá-lo. Pôs o candelabro, afastou-se a apreciou o ambiente. Supimpa, perfeito! Subiu, seguiu pelo corredor e deteve-se no pequeno quarto. Entrou, observou o berço, as caixas, a banheirinha. Precisava dar um jeito, mas era tão difícil. Seguiu. Ela estava terminando de vestir-se quando ouviu a porta bater. Era ele. Olhou no relógio, passou as mãos nos cabelos, se olhou mais uma vez no espelho. Sorria, disse a si mesma e foi ao seu encontro. Ele deu-lhe um beijo na bochecha e disse: vou tomar um banho e ficar mais à vontade. Já desço. Ela ficou no meio do corredor a mirá-lo até que desaparecesse. Ele sempre chega tarde, e é como se não a visse. Via, mas não olhava. Há quanto tempo não se olhavam, fugindo como se tivessem vergonha, ou culpa, ou, ela realmente não fazia ideia do porquê.

Ele desceu e ela não conseguiu disfarçar o olhar de desaprovação ao mirar os chinelos e a bermuda surrada com que ele se apresentou.

- Nada como a nossa casa! disse. E a janta, o que teremos?

- Tomara que não seja o de sempre, disse ela sem disfarçar a irritação, mas cedendo em seguida e dando-lhe um sorriso. Por alguns segundos a noite pareceu não estar perdida.

- Como foi o trabalho hoje, ela perguntou.

- O de sempre disse ele, sem retribuir a pergunta, deixando-a no ar, com o trem. Sentaram-se os dois na mesa. Ela esperou para ver se ele comentava algo do candelabro, mas não teve retorno. Olhou ao fundo a sala de estar. Preciso me desfazer destas coisas todas, pensou ao ver as caixas com compras que fez compulsivamente nos últimos meses. Não havia mais lugar.

- Lembra do meu amigo que estava com câncer, disse ela quebrando o silêncio que se interpôs.

- Acho que você me disse algo.

- Fui informada de que cortaram o plano de saúde dele. Como se não bastasse eu já ter tido que lhe dar a notícia de que estava sendo afastado.

- Comum. Você sabe, os custos. O Sr. G é durão, você sempre diz.

- Sim, sim, eu entendo a eficiência. Ele estava trabalhando, mas ficava chato, ele não estava dando conta. Ele queria tanto trabalhar, até que ele foi afastado. Fica chato assim não ser eficiente.

Ele levantou-se e pôs-se a abrir o vinho. - Querida, disse, esquece, é só trabalho. Vamos nos divertir esta noite, comemorar. Quantos anos? Eu teria reunido a família, mas você quis assim. O pessoal me parabenizou pelo aplicativo.

Ela baixou os olhos e engoliu em seco. Ele nem se lembra de quantos anos se passaram. Ela encarou-o, com os olhos mareados, em seguida baixou novamente os olhos.

- Você sempre diz que somos só nós, apenas nós. Foram 18 anos, uma vida. Agora ele está só, lutando contra a morte.

- Ora, ele pode buscar seus direitos. Vocês têm um bom departamento jurídico, e, agora com a sucumbência, estarão bem. É como os efeitos colaterais dos remédios que tens tomado desde o ocorrido.

Ela não resistiu, tentou disfarçar os olhos marejados. O sangue correndo por entre suas pernas voltou a importuná-la. Lembrou-se daquela noite, sempre lembrava, mas não dizia.

- Isso parece desumano. Bem, mas até que eles são bastante humanos, sim, mas sempre a eficiência. A sra. T. me disse quando precisei de uns dias, volte logo, se não.... Gostou do candelabro? Lembrei daquele jogo, detetive, você conhece, não?

- Ah? É lindo. Sim, claro, muito joguei. Gostava muito de dona... não lembro.

- Dona Violeta ou dona Branca querido.

- Dona Violeta, chamava sempre de Dona Violaste. Levantou-se, foi até a televisão e ligou. Voltou, acompanhado do noticiário.

- Eu estou com fome. O que temos?

- Você, que é do direito, qual era o quadro de assassinato que você preferia?

- Ora, Dona Violeta, com o candelabro na biblioteca.

- Desculpe querido – deu uma gargalhada – só consigo lhe ver como o Sr. Black, com uma corda em um palácio! Ela se levantou e foi até a cozinha. Ele não entende, pensou. Abriu o forno e retirou as codornas com ervilhas. Estava tão quente, que sua mão não resistiu. Foi tudo ao chão. Sentou-se e levou as mãos aos olhos. De repente: o trem? Ergueu-se, abriu a porta da cozinha e caminhou até a calçada. O trem mais próximo? E, no meio da rua, contou os minutos que a levariam até o trem.

Ana Feijo
Enviado por Ana Feijo em 25/02/2020
Código do texto: T6873954
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.