Acertando contas com o passado - Partes 1 a 4

Parte 1 - Maria

Três horas da tarde! Maria, uma mulher negra, de aproximadamente 50 anos de idade cuja be-leza e vigor já se haviam ido embora devido à vida dura e às escolhas erradas que fizera em vida, estava em sua casa – se é que se podia chamar aquilo de casa – num dos extremos das regiões periféricas da mai-or cidade do país. À sua frente, uma garrafa de cachaça pela metade, um copo ainda cheio – não por mui-to tempo – e um maço de cigarros com um isqueiro ao lado. Saíra há poucos dias da cadeia e decidira não se envolver mais com o mundo (ou submundo?) do crime. Suas atitudes erradas custaram-lhe a vida do marido e o abandono dos seus três filhos, dois homens e uma mulher. Chefe de boca, sabia muito bem das consequências a quem cai nas garras da lei. O tráfico não perdoa quem se deixa prender; ainda mais quem abre o bico e entrega seus patrões. Agora, abatida, depressiva, sem poder ou status naquela região, sabia que sua vida estava por um fio, ou por um milagre.

Enquanto perdia-se, absorta em seus pensamentos, nem notava que era vigiada bem de perto por alguém que não podia ser visto pelos olhos comuns da matéria. O ser das sombras que a observava, divertia-se com a situação da pobre mulher e nutria-se de seus pensamentos e das energias etéricas da fu-maça e do álcool. O ambiente impregnara-se de tal modo com energias deletérias que se tornara difícil a sobrevida de qualquer pensamento positivo por parte dela. A criatura trevosa, com forma humana, preparava-se para o ataque final, o que levaria sua vítima ao suicídio, quando notou no pulso esquerdo de Maria uma pulseira preta e vermelha com um pingente em forma de tridente e no pescoço um colar marrom do qual pendia um pequeno machado duplo.

A criatura entendeu aquilo como um sinal de perigo e passou a observar melhor o entorno de Maria e deparou-se com outro ser. Era uma moça bonita que ele não tinha visto antes. Não tinha visto por-que ela não quisera se fazer vista. A moça tinha os cabelos negros e longos, vestia um vestido vermelho e negro e sua face era metade caveira. Reconheceu na hora a senhora Rosa e achou melhor se recolher, pois estes espíritos nunca vêm sozinhos. Se ela estava ali, certamente trouxera seus compadres e comadres que se puseram do lado de fora da residência. Mas era tarde demais. Ela já o notara e agora o encarava.

– O que fazes aqui, escravo das trevas? Por que importunas e vampiriza esta minha filha?

– Perdão, senhora. Não sabia que esta mulher era sua protegida. Vou me retirar. – Embora trevoso, não era burro. Sabia que não tinha forças contra aquela senhora e seus falangeiros. Retirou-se.

A pergunta que a senhora Rosa fizera ao ser das trevas foi apenas retórica. Ela sabia muito bem por que ele estava ali, mas não era hora de revelar. Além disso, filha sua ninguém iria destruir assim. Então, soprou um leve vento que fez os pelos de Maria se eriçarem. Percebendo que algo, ou alguém, es-tava por perto, Maria, com um pouco de lucidez que lhe restava, cruzou os braços – de punhos fechados – no peito e clamou, de olhos fechados, por seu pai e por sua senhora.

– Calma, filha! Calma que estou aqui. Você tem muitos débitos dos dois lados da existência. Será preciso quitá-los, mas não se entregue, não desista de lutar, não se mate, pois será muito pior. A vida é um presente que nos deu o Criador e tirá-la de si mesmo é como se recusasse o que te foi dado. Acalme-se e mantenha o foco e fé. Tu terás mais dificuldades pela frente e irá superá-las, mas não deves sucumbir aos obstáculos, nem satisfazer ao masoquismo de quem quer te ver sofrer. Seja forte, filha. Seja forte! Do-na Rosa disse isso e se retirou.

Maria sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo e de repente ouviu uma explosão. Correu então para a janela e viu alguns barracos pegando fogo. Teve tempo apenas de pegar uma velha bolsa com os documentos e correu para fora. Junto com os vizinhos viu o fogo devorar veloz e ferozmente vários barra-cos da comunidade onde morava. Ajoelhou-se no meio da rua e chorou copiosamente. O local, além de distante, era de difícil acesso e os bombeiros demoraram a chegar. Quando conseguiram, quase não havia fogo a apagar. Os casebres de madeira não ofereceram qualquer resistência para as chamas. Maria e os outros desabrigados, centenas, foram encaminhados a diversos abrigos da prefeitura e quem podia ir para a casa de parentes, também foram. Maria, coitada, sozinha, negra, desempregada, ex-presidiária e já entrando na velhice... O que seria dela? O que o destino lhe preparava? Por que, pensava ela, por que Deus, seus guias e seus orixás deixavam que tudo aquilo lhe acontecesse? Eram perguntas sem respostas. Ao menos naquele momento.

Parte 2 – Cristóvão

Numa parte nobre da cidade, porém próximo de onde ocorreu o incêndio, morava Cristóvão, um promissor empresário do ramo de alimentação, descendente de portugueses, na faixa dos quarenta anos, casado com Sônia e pai de dois filhos: Carlos, quinze anos, e Patrícia, dezoito anos.

Era começo de noite. Cristóvão estava na varanda de seu apartamento, no quinto andar de um luxuoso prédio. A televisão estava ligada na sala e ele estava divagando em seus pensamentos sobre a vi-da, a empresa, o casamento, os filhos quando ouviu o som daquelas chamadas especiais dos jornais quando vão passar alguma notícia fora de hora e em caráter de urgência. Cristóvão correu para a sala a tempo de ouvir o repórter falar e mostrar o que tinha acontecido e ficou estupefato. Sentiu vontade de ajudar aquelas pessoas.

Ele sempre fora um homem de bom coração, origem humilde, subiu na vida à custa de muito e honesto trabalho. Hoje, se não era um grande milionário, podia sustentar a si e à família com relativa facilidade e dando-se a alguns luxos que o dinheiro pode comprar: viagens ao exterior, ótimos carros, escolas particulares para os filhos, etc.

Cristóvão estava sozinho em casa. A mulher havia dito que iria ao cabeleireiro, de novo, pensou ele. A filha tinha saído com o namorado e o filho ainda não retornara da escola. Queria ajudar, mas ainda não sabia como. Chegara mais cedo do trabalho e não havia ninguém em casa. Comunicara-se durante o dia com a família através dos aplicativos de mensagens. Também ele fazia uso da tecnologia que aproxima os distantes e distancia os próximos.

Os ponteiros do relógio marcavam entre sete e oito horas da noite de uma sexta-feira quente e seca, o clima típico do verão de uma grande cidade com muito cinza (e outras cores) do concreto e pouco verde das árvores. Por esse momento, sua esposa chegou, cumprimentou-se com um “Olá, querido!” e um beijo rápido – um selinho, como se diz hoje – e foi direto ao quarto para trocar de roupa. Logo depois chegou Carlos, que mal cumprimentou o pai e foi direto para o quarto. O garoto andava esquisito ultima-mente. A filha voltaria só no domingo, pois, junto com o namorado e a família deste, fora passar o final de semana na praia.

Às sextas-feiras era comum a família “jantar” pizza ao invés de comida normal. Nesse dia, Cristóvão resolveu pedir a pizza por telefone e comerem em casa. O dia de trabalho havia sido muito puxado e ele não estava disposto a ir a um lugar barulhento. Comunicou a decisão à esposa e ao filho, que aceitaram meio a contragosto.

Enquanto esperava as pizzas chegarem, demoraria cerca de uma hora, Cristóvão ficou na sala e continuou vendo os programas jornalísticos. Todos noticiavam a tragédia do dia e mostravam as imagens daquelas pessoas agora sem ter onde morar, o que vestir, comer ou beber. Sabe-se lá como eram esses abri-gos para onde foram. O interfone tocou. Era o porteiro avisando da pizza. Cristóvão desceu para pagar e buscar. Mesmo de elevador, era um tanto quanto demorado, porque além de morar no quinto andar, a por-taria não era tão perto do edifício.

Quando retornou à casa, cerca de dez minutos depois, a mesa já estava posta com os pratos, talheres, copos e refrigerantes. Sônia, a esposa, apareceu rapidamente e gritou pelo filho, que demorou um pouco, – coisa de adolescente – mas apareceu. Durante a refeição, comentou com a esposa e o filho sobre o que vira nos noticiários e sobre sua vontade de ajudar. Sônia e Carlos, apesar de serem boas pessoas, não eram muito afeitos a ajudar o próximo. Teve de ouvir deles:

– Você se preocupa demais com quem nem conhece e esquece da sua própria casa, da sua pró-pria família. Deixa eles se virarem. Não é problema nosso. Eu, por exemplo, preciso trocar de carro. O meu já tem mais de um ano. Está na hora de trocar. – disse Sônia.

– Pai, eu preciso comprar alguns materiais para as aulas de Artes, livros para Português e Filo-sofia e outras coisas. Faz um tempinho que eu deixei a lista com a mãe. Concordo com ela. O problema é deles, eles que devem se virar pra conseguir o que querem. Cada um que cuide da sua vida. – foi essa a fala de Carlos.

– Como vocês são egoístas! Só pensam em vocês mesmos. A gente precisa ajudar a quem tem mais necessidade. Afinal, nem todo mundo consegue se levantar sozinho. – foi a resposta de Cristóvão.

Carlos, percebendo que os pais iriam começar uma discussão, aliás, mais uma, levantou-se e foi deitar-se e curtir suas redes sociais. Naquela noite, sabia ele, ninguém iria bater à porta do seu quarto para dar-lhe boa noite.

– Você é louco ou o quê? Querer tirar do que é nosso para dar àquele bando de sem teto, endoidou de vez, foi?

– Doida é você! O pouco que vamos fazer não irá nos prejudicar em nada. Deixe de pensar apenas em si mesma. Aquelas pessoas perderam tudo do pouco que possuíam. É nosso dever como cidadãos de bem, fazer a caridade a quem precisa. A gente deve retribuir as coisas boas que a vida nos dá. Ou você já se esqueceu disso?

– Quer dizer que você está comigo por caridade? Que eu devo ajudar a quem nem conheço e nunca fez nada por mim? Me poupe!

– Que absurdo é esse? Estamos juntos há dezenove anos, construímos uma linda família juntos, criamos um negócio juntos. Para de falar besteira.

A discussão entre o casal se dava em um tom de voz alto, não era a primeira vez e sempre por motivos materiais. Os vizinhos já haviam reclamado com o síndico do prédio e com eles mesmos. Carlos, do seu quarto, tudo ouvia. Colocou os fones de ouvido e continuou a ouvir suas músicas. Seus pais pouco sabiam dele. As músicas eram depressivas, as coisas na escola não iam bem, tinha poucos amigos e já pensara algumas vezes em suicídio. Sorte da irmã, Patrícia, que não estava ali para passar por aquilo.

Nesses momentos assim, que Cristóvão notava que sua esposa não tinha o coração tão bom e nem ele mesmo era tão equilibrado. Havia já alguns meses que as coisas não iam bem em sua casa, mas ao menos nos negócios tudo estava indo bem. Ainda bem que Patrícia não estava em casa naquele momento. Ela, sim, era uma pessoa sensível que ajudava os outros sem esquecer de si. Menina de ouro.

Sônia já se cansara daquela vida. Casara-se muito jovem com Cristóvão, ela dezessete anos, ele vinte e dois, e um ano depois engravidara. Ajudou o marido a construir a pequena empresa que possuíam, um buffet, a partir de um quiosque de cachorro quente. Está certo que tinham uma vida confortável, mas Cristóvão trabalhava demais, pouco dava atenção à família, a ela. Ela tinha fome de vida, ela tinha sede de viver os prazeres que a vida podia proporcionar. Pensou em Patrícia. Ainda bem que aquela menina não estava em casa. Não suportaria vê-la defendendo o pai. Apesar de sua filha, Patrícia era, na visão de Sônia, o “patinho feio” da família. Patinho feio que de feio não tinha nada, bem sabia ela.

Foi com esses pensamentos que o casal e seu filho foram dormir aquela noite. Cristóvão dormiu no sofá da sala e Sônia sozinha no quarto. Se tivessem o mínimo de equilíbrio e espiritualidade, teriam percebido que alguém se deleitava grandemente com a situação que ali se apresentava. Alguém que foi embora, mas que deixou uma energia muito densa no ambiente. Tão densa a ponto de perturbar o sono dos três.

Parte 3 – Maria e Cristóvão

O final de semana foi muito movimentado para Cristóvão no trabalho com o buffet e ele não teve tempo de pensar em tudo o que acontecera. Pouco conversara com a esposa e menos ainda com o filho. Estava decidido a não comprar o carro que Sônia havia comentado e decidira também ir à escola do filho na segunda-feira.

Cristóvão notou no sábado pela manhã, quando chegou ao trabalho, que alguns funcionários não foram trabalhar. Perguntou a alguns outros e ouviu de um deles:

– Vixi, sr. Cristóvão! O senhor não viu nos jornais ontem sobre o incêndio na comunidade aqui perto? Todos os que faltaram hoje são de lá. Foi uma tragédia daquelas. Graças a Deus ninguém morreu.

Cristóvão ficou terrivelmente surpreso e falou:

– Tudo bem. Avisem a quem foi vítima do incêndio que eles não precisam se preocupar com o emprego. Cuidem de si e dos seus em primeiro lugar e depois voltem ao trabalho.

Aquele final de semana foi realmente corrido devido à falta de muitos funcionários. Foi tanta correria que Cristóvão decidiu dar dois dias seguidos de folga aos seus funcionários, que voltariam somente na quarta-feira ao trabalho. Segunda-feira já seria a folga normal e terça-feira haveria apenas atividades internas de organização, sem eventos.

Enquanto isso, em um dos abrigos da prefeitura, Maria e as outras pessoas que perderam suas casas estavam a dividir as doações de roupas e alimentos que começavam a chegar. A maior preocupação de Maria, porém, era para onde ir. Ficara desde o ocorrido em abstinência da bebida e do cigarro, em virtude do que seu organismo já dava sinais da falta dessas coisas. Ela sentia uma vontade enorme de beber e fumar, principalmente quando via outras pessoas fazendo isso. No entanto, toda vez que batia essa vontade, parecia ouvir uma voz bem lá no fundo de sua cabeça “Deixa disso, mulher! Isso está ajudando a te matar. Seja firme e tenha fé.”

No domingo seguinte ao incêndio, Maria estava andando pelo lado do abrigo quando sentiu alguém segurar-lhe pelo braço, de costas, sem permitir que ela se virasse e dizer:

– Fica calma, vovó! Fica calma! Todo aquele fogo foi um recado da chefia geral lá da boca. Fica esperta e de bico fechado. Se a vovó ficar quietinha, ainda vai viver bastante. Agora, se começar a falar as coisas que nem matraca, vovó vai virar churrasquinho. Entendeu?

Maria apenas fez sinal positivo com a cabeça e não olhou para trás, primeiro porque não podia, depois porque não teve coragem. Só lhe restava a vida, coisa que ela não queria perder.

Chegou segunda-feira. Para Maria, tudo estava na mesma. Já Cristóvão, além de descansar, teve a volta da filha, Patrícia, que chegou logo após o almoço. Chegou toda alegre e viu aquele clima baixo astral e quis logo saber o porquê. Percebeu pelas aparências de todos. O irmão estava indo para as aulas da tarde na escola, o pai estava indo resolver alguns negócios do buffet, só ficara sua mãe. Pegou todos de saída. Carlos disse apenas que os pais tinham brigado de novo. Cristóvão alegou pressa e só deu um rápido abraço nela. Patrícia resolveu perguntar, então para a mãe. Esta, apenas lhe respondeu de forma seca, como de praxe:

– As mesmas manias do seu pai: querer ficar ajudando a essa gente pobre e à toa. Agora deu de querer ajudar às vítimas do incêndio na comunidade aqui perto. Vê se pode uma coisa dessas?

– Mas, mãe, todo esse clima pesado só por isso? Deixa o papai ajudar a quem ele quiser. Até onde eu sei, não estamos passando por dificuldades financeiras. Então, qual o problema?

– Você também? Ah! Esqueci que você é igualzinha a seu pai! Quer dizer que a gente dá duro a vida inteira e tem que sair ajudando a todo mundo por aí? Me poupe, vai!

– Mãe, isso se chama humanidade. Fazer a caridade a quem precisa é um dever cristão...

Não teve tempo de terminar a frase, pois ouviu a resposta de sua mãe aos berros:

– Ah, vai pro inferno você também. Não sei nem por que voltou! – e saiu para o seu quarto, batendo a porta.

Patrícia percebeu que havia algo a mais de errado. Mas para evitar conflitos com o gênio forte da mãe, resolveu ficar quieta. Nesse instante, sentiu um calafrio percorrer todo o corpo. Ela frequentava um centro espírita kardecista desde os dezesseis anos e já se descobrira sensitiva. Podia perceber as energias do ambiente. Tomou banho, pôs uma roupa mais simples e foi dormir para descansar da viagem. Entretanto, seu sono não foi tranquilo e ela acordou duas horas depois com uma forte dor de cabeça. Levantou, lavou o rosto, fez uma breve prece e aos poucos o desconforto foi passando. Decidiu ir para a sala assistir um pouco de TV.

Em pouco tempo seu pai chegou e eles puderam conversar. Cristóvão lhe contou tudo. Pai e filha tinham pensamentos muito parecidos. Se não fossem pai e filha, dir-se-ia que eram almas gêmeas. Patrícia ainda ouviu de seu pai que fora na escola de Carlos e, sem ele saber, conversara com a diretora, com o coordenador e com alguns professores. Todos relataram a ele sobre o comportamento altamente introspectivo do garoto, algumas boas aulas nas quais ele havia faltado e algumas marcas que os colegas e mesmo professores viram em seus braços. Patrícia disse:

– Pai, toma cuidado quando falar com ele. Ele está se sentindo sozinho, abandonado. Isso tu-do podem ser sinais de depressão, é perigoso demais. Converse com ele, mas não se deixe influenciar pelo clima entre o senhor e mamãe, está bem!

– Está bem, filha! Pelo jeito que você fala, até parece que nossos papeis estão invertidos. Mui-to obrigado.

Despediram-se. Patrícia saiu, tinha um encontro com as amigas. Cristóvão foi tomar banho, pois estava próximo à hora do jantar. Antes, perguntou por Sônia. A filha lhe dissera que ela tinha se trancado no quarto e não mais saíra.

Como estavam brigados, Cristóvão foi tomar banho no banheiro da área comum do aparta-mento e não na suíte do casal. De banho tomado, foi para a sala e esperou a chegada de Carlos, que não demorou. Carlos abriu a porta e deu de cara com o pai na sala. Assustou-se, pois nunca vira o pai daquela maneira.

– Senta aqui do meu lado, Carlos. A gente precisa conversar sério. – Sem reação, Carlos sentou-se ao lado do pai, de cabeça baixa e perguntou:

– O que foi, pai? O que aconteceu? – Cristóvão respirou fundo e:

– Tira sua blusa, por favor, quero ver seus braços.

– Por quê?

– Tira a blusa apenas. – A voz do pai estava tão firme, que Carlos não teve outra alternativa.

– Que marcas são essas? Por que esses cortes? Levanta a cabeça, olha nos meus olhos e me responde.

– Deixa o menino em paz, Cristóvão. Você quase nunca esteve presente. Vai querer dar lição de moral agora por quê? – Era Sônia que despertara, ouvira as vozes do marido e do filho e resolveu aparecer, parecia dopada, grogue; talvez pelo sono mal dormido, talvez pelos remédios que tomara.

– Fica quieta! – Cristóvão falou alto e firme, de um jeito que ela não teve outra alternativa. – Você sabia que nosso filho anda se cortando? Olha os braços dele. Você sabia que ele tem faltado às aulas? Você sabia que ele tem sofrido bullying na escola?

Carlos ouvia tudo e gritou, chorando:

– Calem-se! Vocês estão tão preocupados consigo mesmo que não vêm que eu estou morrendo. Morrendo aos poucos de depressão, de saudade de pais presentes, de solidão, de angústia. Parem de brigar, por favor. Eu preciso de ajuda!

Pai e mãe, num raro momento de lucidez, correram a abraçar o filho. Após um tempo de conversa, ficou acertado que iriam procurar ajuda especializada, um psicólogo. Sônia encarregou-se disso e no dia seguinte, conseguiu com uma amiga o contato de uma psicóloga especializada nesses casos. Marcou a primeira consulta para dali a três dias, na quinta-feira. Patrícia chegou por volta das nove horas da noite, notou o clima um pouco mais ameno, mas não quis perguntar nada. No fundo sabia que as coisas começavam a se colocar em seus devidos lugares. Pela primeira vez em meses, aquela família teve uma tranquila noite de sono.

Na quarta-feira, Cristóvão fez a já tradicional reunião semanal para distribuir as tarefas que cada um teria de fazer e relembrar quais seriam os eventos dos próximos dias. Ao fim da reunião, Neusa, uma de suas funcionárias mais antigas, pediu para conversar com ele em particular.

– Pois não, Neusa, pode dizer.

– Sabe, o que é sr. Cristóvão, eu gostaria muito de pedir ajuda para uma pessoa conheço. Ela foi uma das vítimas daquele incêndio, é sozinha, perdeu absolutamente tudo, se chama Maria e está no abrigo da prefeitura onde eu presto serviço voluntário quando não estou aqui. – E contou tudo o que ela sabia sobre Maria.

– Tudo bem, Neusa. Peça para ela vir conversar comigo amanhã pela manhã. E se você puder, indique mais umas quatro ou cinco pessoas, estamos precisando de um reforço no quadro de funcionários.

No dia seguinte, no horário combinado, Maria estava lá para conversar com Cristóvão. Chegou e foi encaminhada ao escritório. Cristóvão mandou que entrasse e se sentasse.

– Bom dia, D. Maria. Tudo bem? A Neusa me falou que a senhora está precisando de um em-prego para recomeçar a vida. É isso mesmo?

– É, sim senhor. Mas ela contou pro “dotô” que além de negra eu sou ex-presidiária, que morava na favela e que sou da “macumba”, da Umbanda? – Maria perguntou porque era conhecedora dos preconceitos que haviam na sociedade.

– Não se preocupe. Ela me contou tudo e juro que isso pouco me importa. Para mim, o que vale é se a senhora quer recomeçar de verdade a sua vida. O que ficou no passado, no passado está. Só me interessa de agora em diante. Tudo bem? A senhora também não precisa ficar falando isso pra todo mundo não, viu.

Os olhos de Maria encheram-se de lágrimas que escorreram pelos sulcos de sua face já cansa-da. Agradeceu a Deus, seus guias e seus orixás pela nova oportunidade que recebia e depois agradeceu ao seu novo patrão. Agarraria aquela chance com unhas e dentes. Não iria cair de novo. A princípio, começa-ria a trabalhar como auxiliar de limpeza. O seu empenho e desempenho decidiriam as outras etapas desse novo momento em sua vida. Começava ali a sua redenção.

Parte 4 – Carlos, Patrícia e seus pais

Maria começou a trabalhar no buffet de Cristóvão. A princípio sentiu certo desdém por parte de algumas pessoas, outras com atitudes preconceituosas, mas a vida lhe ensinara a recuar de vez em quando, pois nem tudo deve ser rebatido. Os meses seguiam-se e ela conseguira alugar uma casinha simples com a ajuda de Neusa, que se tornara uma boa amiga. Mas deixemos a Maria um pouco de lado agora. Ela precisa curtir essa boa fase em sua vida.

Carlos era um adolescente de quinze anos que iniciara o Ensino médio, já Patrícia era uma jovem de dezoito anos que se preparava para entrar na universidade; pretendia cursar Filosofia e depois Psicologia. A mente humana sempre fora uma paixão da garota. Eram irmãos que se completavam. Enquanto ela fazia o tipo expansiva, extrovertida e fazia amizades fáceis, Carlo era altamente retraído, fechado em seu mundo com poucos amigos. Apesar de tudo, os irmãos se gostavam muito.

Patrícia veio ao mundo no início do segundo ano de casamento de Sônia e Cristóvão. Dois jovens apaixonados que se conheceram numa pracinha onde Sônia e sua turma costumavam se reunir. Ela era uma adolescente típica, fazia o tipo “rebelde sem causa”, meio maluquinha, gostava de curtir a vida. Cristóvão era o vendedor de cachorro quente do quiosque preferido de Sônia e sua galera. Quando se conheceram, ele tinha vinte e um anos e ela dezesseis. Ele, até mesmo por sua origem mais humilde, sempre fora mais centrado. Os opostos se atraíram e daí para o namoro foi um pulo. Um ano depois estavam casando, para o que os pais dela precisaram, literalmente, dar autorização. O amor, talvez a paixão com toda sua intensidade, fez com que fossem pais muito jovens e enfrentaram uma barra muito difícil para conseguir criar a filha.

Focados, porém, no objetivo de vencer na vida, pois ambos tinham ambição, – ela mais que ele – transformaram o pequeno quiosque no buffet dos dias atuais. Ele era craque na cozinha e administração e ela era uma ótima organizadora de eventos. Juntaram as qualidades e se deram merecidamente bem.

Patrícia, desde cedo, mostrava-se uma menina extremamente alegre e cheia de luz. Onde chegava, conseguia transmutar o ambiente para melhor e nunca apresentou atitudes egoístas, ao mesmo tempo que não costumava deixar-se levar por bajulações. Cresceu e se tornou muito bonita e desde os dezesseis anos namora com Marcelo, um jovem com a mesma idade e com pensamentos e a forma de ver a vida bastante parecidos com os dela. Era o que se podia chamar de “união perfeita”.

O nascimento de Carlos não foi o que se podia chamar de “planejado” ou “desejado”, pois veio numa época em que o casal passava por uma crise bem forte de relacionamento e também na questão financeira. Por sorte, nenhum dos dois era de se entregar aos vícios, por exemplo, beber e fumar. O que, às vezes, dificultava o relacionamento do casal era a diferença de temperamento. Enquanto Cristóvão demonstrava claramente maior objetividade e racionalidade diante das coisas da vida, Sônia, após dois ou três anos de casamento já dava sinais de cansaço, de arrependimento por casar-se tão nova. Julgava não ter “curtido” a vida como deveria. Agora casada e mãe, as coisas se complicaram bastante. A gravidez que trouxe Carlos à luz da vida foi tão complicada para mãe e bebê, que precisaram de intervenção médica antes, durante e após o parto.

Carlos, apesar de saudável, trazia em seu íntimo uma espécie de rejeição materna e nunca soubera lidar direito com isso. Decorre daí o seu isolamento e, na atualidade, seu comportamento indicador de depressão. Junte-se a esses fatores o fato de o pai estar quase sempre ausente devido ao trabalho para prover a casa e temos uma bomba relógio montada numa mente ainda em formação.

Desde a crise que Carlos tivera, quando disse que precisava de ajuda, ele passou a fazer terapia com uma psicóloga especializada em comportamento adolescente. A psicóloga, doutora Amanda, logo percebeu que o problema era familiar e sugeriu uma terapia para pais e filho. Ao cabo de alguns meses, o garoto mostrava sinais de evolução: estava mais sociável, mais alegre e menos introspectivo. Certo que Cristóvão e Sônia, com a ajuda de Patrícia, colaboraram para que isso ocorresse: deixaram de lado as suas diferenças para salvar o filho.

Na última consulta, após um ano de tratamento, doutora Amanda perguntou se a família tinha ou seguia alguma religião em específico. Ante a negativa, uma vez que apenas Patrícia seguia o Kardecismo, Sônia dizia-se ateia e Cristóvão tinha raízes católicas, mas não frequentava igreja alguma; a psicóloga recomendou que a família se espiritualizasse. Não indicou nenhuma religião, por outro lado, explicou a importância de se conectar com esse “algo superior”, o “criador da vida”, “Deus” ou “inteligência suprema” porque é preciso ter algo para acreditar, sem extremismos, pois é isso que nos desliga da realidade cruel que muitas vezes nos cerca. Sem saber, doutora Amanda estava sendo intuída.

Cícero Carlos Lopes
Enviado por Cícero Carlos Lopes em 29/03/2020
Código do texto: T6900500
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