Insignificância

Era uma manhã. O dia não importa. Afinal, qual seria a diferença se eu falasse que é 05 de janeiro, 23 de maio ou 10 de novembro? A maioria não saberia nada com essa informação, seja o clima da cidade, o ânimo com a proximidade de um feriado ou a tristeza com a final de um campeonato.

O importante talvez seja saber que estava frio. Não nevava, mas o vento era forte e constante vindo acompanhado de uma garoa leve e irritante. Nesse dia incerto, havia um jovem de cabelos escuros dos quais só era possível ver as pontas devido a grossa touca de lã que usava. Os seus passos eram confusos como os de alguém que se encontrava perdido. Cambaleava no meio da calçada porque a sua mente cheia de pensamentos não permitia que os comandos fossem dados corretamente para os seus músculos.

Não sabia o que tinha feito. Quer dizer, sabia, mas não parecia real. A sua memória era confusa e as imagens que se lembrava pareciam com as de um sonho. Tudo se passava tão rápido na sua cabeça que ele não conseguia ser veloz o suficiente para entender o que a sua memória tentava o lembrar. Mas conseguia ver os olhos desconfiados e amedrontados das pessoas pelas quais passava enquanto cambaleava. Não entendia o porquê de estar sendo olhado assim e ao mesmo tempo se sentia a pior pessoa do mundo, um monstro que as pessoas caçam com foices e forcados somente tentando se livrar de uma visão tão horrenda.

Ele teve que ficar parado durante alguns segundos para que o seu corpo tomasse coragem e aceitasse o comando para que a sua cabeça olhasse para baixo. O cheiro que o seu nariz sentiu ao movimentar a cabeça o fez fechar os olhos, mas conseguiu perceber que os seus sapatos eram velhos e diferentes um dos outros. A calça já apresentava rasgos e era de um tamanho maior do que precisava. Enquanto estava de olhos fechados ficava repetindo essas informações em sua cabeça tentando de alguma forma encaixá-las ao mesmo tempo em que tentava se livrar do cheiro.

O fedor o lembrava de sua casa e isso o fazia sentir um medo dolorido. A dor, essa com certeza estava no meio desse sentimento. Mas não como uma intrusa ocasional. Ela era mais parecida com um irmão siamês cruel. Mesmo no meio dessa dor, a sua mente arrumou um caminho para afastá-lo disso, abrindo um clarão e o fazendo se lembrar. Não do que tinha feito para estar ali, mas do melhor momento da sua vida. Ele estava na escola vendo o professor entregar as provas enquanto aguardava ansiosamente pela sua. Quando a recebeu, viu que tinha tirado mais uma nota máxima. O professor o elogiava diante de toda a sala e falava com toda a certeza do mundo que ele teria o melhor destino possível. Nesse momento ele se sentiu a pessoa mais importante do mundo e que nada poderia derrubá-lo já que o seu imponente destino já estava traçado.

Com essa memória teve a força necessária para abrir os olhos. Percebeu que a luz o incomodava, mas viu que estava com um casaco preto com a manga direita faltando. Estava a segurando e os seus músculos diziam que ela estava pesada, mas os seus olhos não conseguiam focar para ver o que carregava. Depois de um tempo, que parecia uma eternidade com o pequeno esforço gigantesco, viu que a manga estava amarrada em uma das pontas e que dali não parava de pingar sangue. Inconscientemente tentou dar um passo para frente, mas caiu antes que o seu pé voltasse a encostar no chão.

Ele ficou horas desmaiado ali no chão até que alguém se aproximou dele e percebeu que os seus batimentos cardíacos estavam muito baixos. Somente depois de alguns dias acordou no hospital, mas dessa vez estava bem mais alerta. Explicou que estava há algumas semanas sem comer quase nada. Tentou pedir comida para as pessoas, mas só recebia desculpas. Tentou achar comida no lixo, mas ela sempre estava misturada com vidro, muita sujeira e até mesmo vômito ou cocô. As pessoas nem mesmo tentavam separar a comida, aquilo que é o mais essencial para se ter uma vida, do lixo comum. Então ele decidiu tentar caçar para sobreviver, mas, como estava na cidade, só podia caçar ratos. E foi o que fez, mas quando conseguiu já estava muito debilitado para continuar a viver. Ele até queria morrer já que tentar sobreviver significava ser desprezado, humilhado e arrasado. Significava a dor que sentia. Mas ainda tinha esperanças que a previsão do professor se concretizasse. Afinal, pelo menos isso significava que não era uma pessoa ruim como o resto achava, apenas que sentia fome.