O Menino que Queria Ser "Dotor"

Cinco da matina. O sol já ameaça com seus primeiros raios pintados de ouro e o vento forte balançando as folhas das bananeiras faz cair dos cachos as bananas maduras. O galo de Zefinha canta acordando as galinhas para comer pedrinhas no quintal e o menino que queria ser “dotor” acaba de afiar a sua foice de cabo torto, coloca-a debaixo do braço, pega o lanche que a mãe já colocou na lata de leite Ninho – cuscús de fubá com sardinha de lata, e parte para o corte de cana junto com alguns amigos que lhe esperam no terreiro de casa. Será uma caminhada longa até o canavial. Tomam a estrada em direção ao Engenho Canavieiras. Pés descalços, pois a alpercata velha atrapalha na caminhada... será calçada só no serviço por causa dos espinhos e troncos das canas que cortadas em bico-de-gaita cortam os pés. O caminho comprido, desenha-se aos seus olhos como uma trilha sinuosa que quanto mais se anda mais comprida fica. O campo verde, parece mais um tapete colocado sobre a terra. Ao lado do caminho os matos molhados pelo orvalho da manhã estão gelados e causam arrepios quando batem nos braços e nas pernas descobertas.

Ao longe aparece o canavial e Dedé, o menino que queria ser “dotor”, sente seu coração ficar gelado, seus braços adormecem e seus pés ficam pesados, pois detesta aquele tipo de serviço.

A professora do vilarejo – Maria Luíza, morava em Recife, mas passava a semana no sítio para dar as aulas no grupo escolar. Viajava para casa na sexta-feira à tarde. A noite só tinha aulas até a quinta. Seu marido era Tonho de Dóro. Tonho de Dóro era motorista de uma família rica que morava em Casa Forte, no Recife. Dedé estudava a noite e era amigo de Tonho de Dóro que lhe contava as belezas da capital e sempre dizia que quem estudava no interior nunca chegava ser doutor. Isso deixava Dedé louco da vida e com vontade de ir embora, e o amigo sempre dizia que se a mãe de Dedé autorizasse o levava para morar em sua casa. Aí sim, ia estudar em Recife e ser doutor. Mas a mãe de Dedé nem queria ouvir essa história.

Dedé e os colegas da palha chegam no canavial a ser cortado, acertam com o empreiteiro e lá vai cada um, de foice ou facão em punho, ao ataque das Curimbatórias e POJ´s. Dedé vai logo descascando a primeira cana que corta e chupa. Depois se afasta, senta-se numa pedra e fica pensativo. Fecha os olhos num sono lento de cansaço e vê grandes edifícios; carros para cima e para baixo; aviões voando; moças bonitas e bem vestidas passeando numa praça com fontes iluminadas, da mesma forma que Tonho de Dóro sempe lhe conta.

Desperta e volta ao eito. Corta umas duas ou três touceiras de cana e para novamente. Os braços estão exaustos de toda uma semana de trabalho. Diz ao amigo Tota que vai embora. Parte para casa. Logo adiante, ao atravessar o riacho, não vai pela ponte, entra rio adentro para tirar do corpo o pelo da palha da cana que já irrita o corpo. Deixa as mangas supostas da camisa irem rio abaixo e faz afundar a foice na parte mais funda do riacho. Promete a si mesmo que não voltará a cortar cana. Vai estudar para ser “dotor”.

Por pura ironia, Tonho de Dóro estar no vilarejo com um carro da família para quem trabalha. Veio buscar a esposa Maria Luisa que não viajou na sexta-feira. Quando Dedé vai chegando em casa, logo observa o amigo que conversa na frente da venda de Biu Gabriel, a única do lugar. Vendia de tudo: de sabonete a sela de cavalo. Dedé dirigi-se pra lá.

- Tonho!
- Oi Dedé. Quando vai morar lá em casa?
- Vou hoje!
- Tua mãe vai deixar?
- Saio escondido, mas não passa de hoje. Não corto mais cana e nem moro mais nesse lugar.
- Não dá certo sair escondido. Vou falar com tua mãe. Ela me disse outro dia que para morar comigo e estudar ela deixaria.

Tonho vai então conversar com a mãe de Dedé que fica de longe para não atrapalhar a conversa. Conversa vai, conversa vem e finalmente Dedé ta liberado para viajar.

Tonho de Dóro dá uma tragada no cigarro, joga a ponta fora e chama Dedé que conversa com amigos na calçada da venda.

- Tua mãe concordou, arruma as coisas e vamos embora para chegar cedo em casa.

Dedé calça a única alpercata que tem, veste a roupa de ir pra rua no domingo, pega uma sacola que a mãe já lhe entrega com uma calça e duas camisas.... é só o que tem....e diz a Tonho que já ta pronto. Despede-se da mãe, que faz mil recomendações, tomam o carro e vão embora. Serão três horas de viagem até Recife. Dedé senta-se no banco de trás esbanjando felicidade, mas as lágrimas correm dos olhos ao acenar para os colegas dando adeus.

E lá se vão. O dia é de sol, propício para viagens. A estrada pelo canavial e plantações de mandioca, desenha-se à frente como um labirinto. Dedé encosta-se na porta e enquanto o carro vai se afastando do vilarejo, vai se lembrando do seu cavalo de pau, baixeiro e corredor, ganhador das cavalhadas de argolinha, cujos prêmios eram entregues pelas meninas mais bonitas nos dias de domingo; do jogo de pião; das brincadeiras de pega ao redor da escola; do jogo de criminoso na calçada de dona Lulu; das pescarias de piaba; das passarinhadas de badoque; dos laços para pegar calango na barreira da estrada; das cantorias de viola que gostava de assistir na casa de seu Quincas; das brincadeiras de roda das meninas, onde ficava a apreciar o rodopiar das saias; e mais; e mais; e mais. Tudo isso ficaria para trás na busca de um horizonte mais promissor.

No meio da estrada um susto. O carro estancou quando atravessava a linha de ferro e o trem apitou com cerca de cem metros de distância. Tonho de Dóro pulou da direção e empurrou o carro conseguindo tirar da frente do camboio, que passou como um raio quase torando a bunda do Cinca Chambord.

Na pista a viagem é mais tranqüila e Dedé adormece. Acorda já Recife com o barulho dos carros. Trafegam nas imediações do aeroporto dos Guararapes. Mesmo admirado com tanto carro e o decolar dos aviões. O cenário não lhe causa muito espanto, pois é igualzinho ao que Tonho sempre lhe desenhava.

Tonho de Dóro quando pensou em trazer Dedé para capital, conversou com sua patroa vendo a possibilidade de seu protegido ficar também trabalhando com a família. Ajudaria nos afazeres da casa: tratando o jardim, lavando os carros, entre outras coisas. Não seria necessário, de início, pagar salário, apenas a manutenção e facilidade para freqüentar uma escola. Sua patroa, dona Almerina, tinha aceitado a proposta de Tonho e dito que podia trazer o garoto a qualquer hora que seria bem tratado.

Chegam finalmente na residência de Tonho de Dóro e Maria Luíza. Todos se acomodam. Após a janta Tonho de Dóro chama Dedé para conversar e lhe conta a conversa que teve com sua patroa e diz que se ele aceitar estará empregado na segunda-feira pela manhã. Dedé aceita de imediato e passa o resto do sábado e o domingo na companhia dos anfitriões. Na segunda-feira Tonho apresenta-o a dona Almerina que recebe bem. No mesmo dia vai com Tonho de Dóro e Dedé a uma escola perto e o matricula na quarta séria primária. A sorte então estar lançada.
limavitoria
Enviado por limavitoria em 12/10/2007
Reeditado em 12/10/2007
Código do texto: T690869