O que sobrou do céu

 

As três foram parar no grupo de pertencimento. Quem percebeu o problema foi Vandete, que presenciou a gota d’água. Do lado de fora, ouvia-se o depoimento de todos e parecia com o AA ou algo semelhante.

“boa tarde a todos, glória ao Pai esse momento. Meu nome é Diana, estou há quarenta dias sem usar álcool em gel.”

“Oooi, Diaaana.”

”antes eu lavava as mãos umas setenta vezes; agora, me mantenho numa média de trinta, quarenta, num turno de serviço.”

Foi estranho ouvir esse tipo de coisa, principalmente vindo de Diana, que eu conheço bem.

Com o aumento de casos no hospital, ela começou a perder parâmetros. Diana é uma daquelas colegas que não andam sobre o muro. Você a ama ou a odeia. Opinava demais sobre EPI’s, sobre o racionamento, sobre a quarentena, sobre o nosso dever cívico de abraçar o COVID-19 e esquecia de que num plantão de vinte e quatro horas, as pessoas perdem muita coisa, inclusive os nervos.

Diana tinha vários desafetos, o maior deles era Jovina, a copeira que não queria se aposentar. Jovina já havia enfrentado outras crises, outros tempos, outras chefias. No entanto, já idosa, se mantinha no serviço às custas da nossa paciência. Era resistente a qualquer mudança. Pra diminuir o tempo no ambiente do hospital, começou a atrasar bastante, nunca entrava de máscara, usava sapatos abertos, fumava, e por mais advertências e notificações que levasse, Jovina era caso perdido. Irritava Lídia, que falava muito alto e irritava Ester, que era enxaquecosa, que reclamava muito e enlouquecia Maria, que batia a porta com força quando estava com raiva, mas antes de sair pedia pra Judite, que ficava em silêncio no meio da confusão, fazer um café forte.

O que Jovina tinha de desobediente, tinha de humana, e nisso era muito melhor que Diana.

Ambas eram da mesma escala de plantões, o que fazia Diana “pagar os pecados”, como ela mesma dizia. Ex-freira, Diana foi parar na área de saúde por algum mistério que até hoje não se sabe. Sempre que a fofoca começa, dizemos que ela deveria ter permanecido no convento ou em casa ou em qualquer outro canto que não perturbasse o grupo com tanta rigidez e aquela pseudo fé, a qual eu chamo de ignorância; a mesma que a fez limpar as mesas e cadeiras da sala com o único álcool em gel disponível pra o setor naquele dia. Fé demais só atrapalha.

Diana e Jovina eram mistura seca. Plantão-pancada como dizíamos.

Certa vez recebemos uma criança na pediatria, vítima de hidrocefalia e Diana disse que era um possível castigo pra mãe promíscua. Quem estava perto tinha que respirar fundo pra não gritar ou não começar um novo confronto. Era insuportável. Mas ela era concursada. Tinha estabilidade.

O aumento dos casos de COVID-19, fez com que Vandete, juntamente com a direção do hospital estabelecesse um plano de ação. Nessa divisão de grupos, haveria um intervalo para apoio psicológico, coisa inédita e muito necessária pra os funcionários da ativa.

Vandete era justa, mas não muito democrática. Gerenciava com poucas palavras e metade delas era pra brigar com Jovina ou Diana. A copeira tratava muito bem os pacientes, era adorada pelos colegas de outros setores, mas desestabilizava o palco da Nutrição.

No segundo mês de frente de combate, já haviam quatro afastadas, ninguém queria dar plantão extra e a coisas estavas bem caóticas. Vandete recebia visitas periódicas da Secretaria de Saúde, e com a escassez de EPI’s e com os números de infectados diariamente no jornal, optou por deixar a mediação do grupo de apoio na mão da psicologia.

“Tenho medo de perder meu filho”, “saí de casa pra não adoecer meus pais”,”meu marido está com a mãe diabética, não nos vemos há semanas”, eram alguns desabafos do começo.

Hoje o grupo estava mais pra uma casa de marimbondo que pra qualquer apoio emocional. Aquilo não era terapêutico.

Apesar das mensagens que todos recebiam pelas redes sociais, eu não via mudança positiva nenhuma, pelo contrário, pra mim os humanos continuam como sempre, e piorados. A prova disso é que agora tinha briga todos os dias no trabalho, e ninguém mais pedia desculpas.

Diana abria os plantões com uma oração em voz alta. Rezava na sala da clínica, na sala da produção, na cozinha e no abastecimento. Jovina sentava na porta da sala, tirava o cigarro do bolso, não fumava, mas também não rezava.

Na reunião seguinte, uma queixa formal: “não sou obrigada, quem quiser que reze em casa ou calada”, “mas uma oração não vai prejudicar ninguém, Jandira, respeite a fé dos outros, disse outra colega.”, “fé demais só atrapalha.” Uma das poucas vezes que me manifestei nesse grupo.

Jovina fazia tudo pra que Diana brigasse e geralmente dava certo, até que um dia as duas esqueceram de si e no meio de uma discussão fluorescente, as panelas tremeram com o estampido de Diana: “ porque você não morre?”

Jovina sem cor nos lábios a encarava com o punho dentro dos olhos, mirando acertá-la. Não houve denúncia, apenas uma conversa de portas fechadas na sala da coordenação.

“Gente, terminando de usar as pranchetas, limpem!”, “entrei na sala e estava lá, um escorpião morto há dias, porque ninguém teve a capacidade de chamar alguém pra limpar”, “o papel toalha havia acabado, você queria que eu enxugasse minhas mãos com o que? Por isso usei as máscaras”. Eram as queixas recentes do grupo.

As coisas começaram a acabar. Sabão, máscara, álcool, os testes. Jovina permanecia firme e prometeu uma trégua a Diana, assim que Vandete reassumiu a medição do grupo.

Diana por sua vez falava cada vez menos, levava álcool em todos os bolsos, andava pálida, tensa, ausente. Mais oito colegas precisaram ser afastadas por conta da doença, e só sabe do peso, quem ficou.

Vandete também andava enfraquecida, mas por ter perdido o pai durante a pandemia. A palavra era mesmo s o b r e v i v e r.

Jovina tirava plantões extras como cozinheira e diante das opções limitadas, fazia purê com canela, arroz com gengibre, saía floreando os pratos pra trazer um sorriso ou uma surpresa pra equipe.

No dia em que colocou baunilha no arroz-doce, Diana reclamou: “isso é vaidade. As pessoas não estão sentindo o cheiro ou o gosto das coisas, você ainda não sabe o que o vírus causa? Deus quer que você faça seu trabalho. É Ele quem vai te aplaudir, não os outros”. Deu as costas e deixou Jovina se contorcendo em chamas. Em outros tempos, seria guerra. Mas tudo é imprevisível agora.

Jovina permaneceu calada, nos dias seguintes também.

Duas semanas depois, Diana deu entrada na emergência, já com complicações respiratórias. Nenhuma das colegas teve coragem de entrar pra vê-la. Jovina entrou.

A enfermeira chefe conta que Jovina desconsiderou o isolamento. Foi preciso intervir pra tirá-la de lá. Jovina chorava alto, “é minha filha, é minha filha”. Ninguém sabia, exceto Vandete e a própria Diana, cuja casca de beata, regava o ruim dentro dela.

Há rumores de que Diana havia crescido num convento, não conhecia os pais; outros dizem que Jovina já era um pouco senil e assumiu a relação com Diana em redenção; outros dizem que uma aguentava a outra e Deus não aguentava nenhuma das duas. Há um pedaço de céu pra cada um de nós, mas saber lidar com isso é a jornada de uma vida.

Quando Diana se recuperou, Jovina deu entrada na aposentadoria. Diana voltou do quase morte, aceitando que fé demais atrapalha. Saiu do grupo de apoio, mas dizem que as reuniões continuam fervendo.

Do lado de fora, ouvi quando Helen começou: “sou a Helen, do administrativo.” , “ooooi, Helen.”, “eu não sei exatamente porque estou aqui, mas a verdade é que Zilda morreu por minha causa. Quando ela começou a tilintar os dedos da mesa, fui tomada por uma irritabilidade incontrolável. Pensei numa maneira de fazer aquilo parar. Pensar em coisas violentas começou a me animar. Eu sentia uma satisfação naquilo. Ainda sinto...”

Lis F Nogueira
Enviado por Lis F Nogueira em 16/04/2020
Reeditado em 16/04/2020
Código do texto: T6918581
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