A despedida de Amadeu Arcanjo

A despedida de Amadeu Arcanjo

Alexandre Santos (*)

Como se fosse uma noiva, Amadeu Arcanjo só chegou depois de duas horas de atraso. Estava acompanhado dos amigos de todas as farras e das mulheres de todos os aperreios. Ao contrário das vezes anteriores, estava calado e imóvel. Vinha sufocado por tufos de algodão enfiados nas narinas e nos ouvidos, metido num pomposo ataúde – mogno maciço, crucifixo e alças douradas, visor de cristal e aldrava interna “para o caso de desistência ou emergência”, explicara, esperançoso, o dono da mortuária, que fizera questão de dar ao velho companheiro o melhor funeral que já promovera em sua longa carreira de papa-defuntos. O corpo tinha passado as últimas horas em câmara ardente numa sala abarrotada de coroas de todas as flores e de todas as idades, testemunhando a interminável procissão que desfilava perante o esquife em silenciosa homenagem. Na fila da frente, cuidando das velas que bruxuleavam castiçais de prata e enxotando moscas que teimavam perturbar o velório, além de Janine, a buliçosa promoter contratada para organizar as exéquias, estavam, lado a lado, como se fossem irmãs que não se falavam, as quatro esposas – a mais velha, única de papel passado, que convivia com as traquinagens do marido desde um tempo que não mais lembrava, e as outras três, que, embora nutrissem respeito pela matriz, referida por todas como ‘primeira-dama’, desconfiavam e odiavam a possibilidade da existência de outras fêmeas na vida de Amadeu – e duas outras mulheres, que, a julgar pelos ‘ais’ e ‘oh! Meu Deus’ suspirados entre uma Ave Maria e outra, seguramente também faziam parte do harém. Se estivesse vivo, Amadeu teria dado uma gargalhada quando, sem saber como consolar as viúvas, ao rezar o réquiem, num gesto largo, o padre apontou para o mulherio da primeira fila e se referiu a ele como um “homem de coração grande e vontade insaciável”. O ranger de dentes e o brilho assassino que pintou o olhar daquelas mulheres enciumadas indicaram que, se nada fosse feito, o enterro poderia terminar em morte. Foi quando alguém mais experiente apontou para a barraca da esquina e, com a solenidade que o momento merecia, sugeriu que os verdadeiros amigos fossem tomar um último trago em homenagem a Amadeu. Como num passe de mágica, a sala esvaziou. Todos, inclusive a primeira-dama, foram entornar os goles que faltavam para a perfeita comunhão com o espírito que se despedia. Só depois de muitas garrafas, quando raivas e ciúmes estavam entorpecidos pelo álcool, o cadáver de Amadeu Arcanjo voltou a ter companhia e, em meio ao cheiro de cachaça que pairava no ar, o ambiente perdera a tensão inicial, com conversas engroladas e hinos religiosos completamente desafinados. Aliviada com a retomada do quórum e já arrependida de ter aceitado aquele serviço, Janine pode comandar o translado do corpo ao cemitério, que não seria o Père-Lachaise, que sonhava para si própria, mas, pelo menos, um lugar onde poderia se livrar do defunto que tantas dores de cabeça estava causando. Lembrando aos presentes que estavam com ‘horas de atraso’, Janine confirmou a colocação da urna funerária no rabecão e, apressada, seguiu para o cemitério, onde verificaria os detalhes finais do ‘enterro de primeira’ que prometera à casa funerária.

Na frente do cemitério, sob o pesado umbral guardado por terríveis gárgulas, de prancheta em punho, Janine passou em revista os itens da lista. Estava tudo pronto. Meninos do colégio municipal distribuíam folhetos contando o lado bom e publicável da movimentada vida de Amadeu Arcanjo. A orquestra formada às pressas com alunos do conservatório e músicos da fanfarra do Tiro de Guerra ensaiava os acordes iniciais de uma tal Missa glagolítica, de Janácek. Um ex-vereador, que ganhava a vida alugando a voz e talento verborrágico por qualquer tostão, gargarejava uma água salgada enquanto relembrava o panegírico e as linhas gerais da oração fúnebre que recitaria em seguida. As carpideiras, animadas com o adiantamento, faziam um treino de última hora, chorando graciosamente um enterro anônimo. O fotógrafo, socado no terno preto bolorento, aguardava a chegada do féretro testando a mira em mausoléus e criptas. Os coveiros, orgulhosos da farda recebida instantes antes, davam os últimos retoques na cova recém aberta. A porta do necrotério fora pregada para sepultar a imagem macabra das mortalhas estufadas por corpos ainda não necropsiados. Meia hora depois, aliviando Janine de uma crescente aflição, chegou o cortejo, que, a julgar pela demora, parecia ter parado em todos os bares do caminho. As coroas, de flores e de carne e osso, foram logo despachadas para o entorno da cova aberta ao lado de grandes nomes que recheavam o campo santo. Faltava escolher o conjunto que levaria o corpo até a última morada. Pelos planos do cerimonial, para dar charme e distinção, possibilitando uma bela fotografia, o esquife deveria ser conduzido por seis pessoas ilustres. Nunca um caixão fora tão disputado. Decidida, Janine interveio na confusão dos amigos, que, embriagados pelas inúmeras homenagens a Amadeu, se acotovelavam em torno do caixão, disputando as alças. Ao fim de muita discussão, ela conseguiu que Doeval Tacos, mais conhecido como Val Taquinho, um antigo xeleléu do governador, e Zé Baleia, barnabé graduado e amigo do prefeito, tomassem as primeiras posições do dispositivo e confiou as demais alças àqueles que pareciam menos embriagados. Começou, então, sob a direção de Janine e a força de seis braços insignes, a jornada rumo ao jazigo. Satisfeitos com a honraria, os escolhidos se avisaram de que, para evitar a Maldição da Alça, uma vez segura, a puxadeira não poderia ser mais solta até a última parada, pois quem o fizesse poderia ser o próximo a morrer. Compenetrados, os homens ergueram o ataúde do rabecão. Logo no primeiro segundo, ao sentir o peso, Val Taquinho estrilou – “Puxa vida! Está muito pesado. Eu não vou aguentar”, avisou, ouvindo em retorno um “agora não adianta reclamar, respira fundo e vamos em frente”. Apavorado com a Maldição da Alça, Val olhou em volta e não titubeou em recrutar os curiosos que, sem nada a ver com o funeral, assistiam o translado final: “Faz alguma coisa, cara. Pega aqui, por favor”, gritou desesperado, surpreendendo a todos, inclusive aos curiosos que, sem alternativa, compulsoriamente se incorporam ao cortejo. E, com os reforços de última hora, num ritmo pouco compreendido por quem não estava agarrado ao caixão, o andor seguiu por entre as covas rumo à casa eterna de Amadeu. Como se não pudesse esperar mais alguns instantes, a Terra puxava Amadeu com tal força que, nem mesmo os que sabiam pecados e trelas do defunto, podiam imaginar que um caixão pudesse pesar tanto. Para compensar, decididos a não entregar o corpo antes da hora ou no lugar errado, os amigos enfrentavam bravamente a gravidade inesperadamente mais forte. Para agravar a situação, os espíritos zombeteiros que tomavam conta dos bêbados puxavam e empurravam o caixão, balançando-o como se fosse uma rede. Já cansados e submetidos aos desejos da Terra e caprichos do álcool, sabiam que, cedo ou tarde, não suportariam o peso e viria o desastre. Mesmo assim, estranhamente, o cortejo seguia firme. Acontece que o mesmo milagre que deixava aqueles bêbados em pé fazia com que cada puxão fosse contrabalançado por um empurrão e vice-versa e, assim, a resultante da forças apontava para a cova e a caminhada seguia firme. Tudo ia mais ou menos bem, até que, por razões ainda não explicadas, os bêbados perderam o sincronismo e cada um puxou o caixão para o lado que queria, desfazendo o estranho equilíbrio. A dança ébria cresceu e, nem mesmo Zé Baleia, que até então nada falara, suportou, quebrando a resignação que lhe fazia, de rosto avermelhado e jugular prestes a explodir, suportar o peso em silêncio: “quem está balançando esta merda?”, explodiu o representante do prefeito.

Foi o início do desastre. A poucos metros da morada final, as forças que queriam apressar a chegada de Amadeu venceram. Sob o testemunho de cruzes e anjos encimados em mausoléus sisudos, o ataúde escorregou e, qual uma prancha de surfe macabra, revolveu o campo santo e resvalou todas as lápides que encontrou pela frente até mergulhar na cova aberta, arrastando Val Taquinho e Zé Baleia.A entrada abrupta dos representantes do governador e do prefeito na sepultura quebrou o script original e, a partir de então, cada um agiu como quis. Os coveiros pensaram estar diante de um novo sistema de sepultamento e trataram de inovar a seu modo, entregando coroas a Val Taquinho e Zé Baleia, que, surpresos e mal se equilibrando sobre o ataúde semienterrado, tentaram cumprir a tarefa que se esperava deles, espalhando as coroas de melhor forma possível. Assustadas com o inesperado início da função, as carpideiras também tentaram modernizar o chororô, criando lamentos nunca ouvidos. Para não ficar para trás, o ex-vereador subiu na tumba vizinha e, depois de um “parem coveiros apressados”, gritado com a voz mais impostada que conseguiu, danou-se a elogiar Amadeu Arcanjo. Ato contínuo, procurando se adaptar à nova situação, a orquestra esqueceu a missa exaustivamente ensaiada e encheu o ar com o hino municipal. Sem controlar a emoção, uma jovem que, até então ninguém conhecia, gritou “meu homem está vivo”, dando largada à confusão das viúvas, que se engalfinharam em meio a uma nuvem de baratas, arrancando cabelos e rasgando as saias.

Naquele momento, vendo o cerimonial estudado com tanto carinho ir para o beleléu, Janine teve uma crise nervosa e torceu para que o campo santo abrisse a bocarra insaciável e engolisse a todos.

(*) Alexandre Santos é ex-presidente da União Brasileira de Escritores