JANJÃO DAS MULA

Há quem reclame que sou muito autobiográfico em meus contos.

Apesar de narrar acontecimentos na primeira pessoa, porém, dificilmente conto algo de minha própria vivência. Estilo de narrativa é vício de construção do texto, apaixonante, que nos permite entrar no enredo conforme queiramos. E como já quis vivenciar certas aventuras!

Há um personagem (não sou eu), de cuja existência sei o suficiente para considerá-lo único, senão no teor, qualidade, quantidade de aventuras, ao menos no folclórico e insólito jeito como viveu variadas iniciativas, e na maneira como nunca entendeu quase nada do que fez.

Já se arrastava há anos a segunda guerra mundial, lá longe, e um padre pobre, nômade, que ninguém sabia d’onde vinha e pr’onde ia, passou pelas poeirentas terras do Trumundú, montado em jegue sarnento (tadinho), e resolveu pedir pousada num rancho de terra batida, onde Jovina Piniquinha (era pra ter sido registrada Pequenina, mas cartório lá nos cafundó é coisa complicada) estendia roupa pra quarar. Acostumada à solidão do agreste, só vestia uma camisolinha puída e curta, que, com o susto e a virada repentina, atendendo ao grito do padre, rasgou de cima a baixo, deixando suas jovens vergonhas expostas.

Jovina não era, propriamente, mulher recatada, e andava enfarada do jeito sonso de Chico Graúna, seu marido. Era fogosa, enquanto ele, na fala dela, faísquinha pixulé, que nem dava gosto. Diante do padre, sedento de água e prazer, nem se preocupou em ocultar sua palpitação e curvas. E ali mesmo, no terreiro, resolveram a questão.

Pouco depois continuaram as lambanças lá dentro, no catre do casal, e quando o padre resolveu provar um pouco do angu queimado, do fundo da panela, chegou Chico, estranhando aquele sujeito mexendo no que era seu. Sem dizer nada, entrou mais e achou Jovina na cama, nuazinha em pelo, que dormia a sono solto. Voltou e encarou o padre, que estava paralisado de medo. Mas quando o marido começou a puxar a peixeira e se aproximar, teve inspiração repentina pra inventar que encontrou a mulher desmaiada lá fora, trouxe pra dentro e pôs pano úmido no corpo, pra tentar reanima-la. Estava, inclusive, juntando um resto de comida, para tentar lhe fazer comer. Disse isso tudo muito rápido e ficou esperando a reação do outro.

Chico era religioso e supersticioso, então pensou que padre não podia mentir, e resolveu engolir a conversa. Quando ela acordou e foi, pelada, encontrar seu amante, deu de cara com o marido ali, e quase teve, realmente, um troço. O padre aproveitou a deixa e disse ao coitado do corno que se não a levassem de volta pra cama, iria desmaiar de novo.

No fim das contas, o padre se abancou na choça e desfrutou da hospedagem de Chico, além dos amores de Jovina, durante quase três meses, e só resolveu ir embora, quando viu que a barriga da mulher começava a crescer. Não valia a pena facilitar ainda mais, né?

A criança nasceu com oito meses, gorda, branca demais e nem um pouco parecida com o pai ou sua família. Jovina olhava assustada, mas Chico, apesar de achar estranha a cor tão desmaiada do pequeno, não atinou com o que até os vizinhos e parentes desconfiavam. Como tinha de registrar o garoto, aproveitou a ida na cidade e levou um papel do padre que achou em casa, depois que o tal se fora. O cartorário leu e disse que era só um poema frouxo, assinado por Jean Muland, que na pronúncia simplória do cartorário virou Jão Mulão.

Chico gostou do nome, da mesma forma que detestava seu sobrenome: Graúna. Então achou por bem por o nome de Jão, mas ao invés de Mulão, preferiu das Mula. Jão das Mula.

Por feio e esquisito que possa parecer tal nome, ficou ainda pior, na prática, porque Chico era gago, e quando chamava o filho, costumava dizer, gritando:

- Jan . . . Jan . . . Jão! Jan . . . Jan . . . Jão!

E, não só as gentes do povoado, como também o próprio pequeno, acabaram tomando como usual Janjão das Mula. Ninguém nunca leu o registro, pra saber como era, mesmo. E o povaréu repetia, a quem quisesse ouvir, que Janjão das Mula era fio de dona Penica e de um padre, mas foi assumido pelo Chico Graúna, que nunca desconfiou de nada.

Quando Janjão fez dez anos, Jovina recebeu uma carta (que não mostrou pra ninguém), arrumou a trouxa e se mandou, dizendo que ia virar freira. Pai e filho acreditaram e choraram, na despedida, mas todos diziam que ela tinha ido é se enfiar debaixo da batina do padre.

Daí pra frente a vida de pai e filho se transformou numa confusão tão grande, que virou lenda naqueles arraiais. Aliás, foi uma dessas confusões que fez o Chico passar desta pra melhor, deixando Janjão ao Deus dará, mas isso eu vou contar mais adiante.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 23/04/2020
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