marcelino

Impressionava-lhe como a chave velha ainda fluía fácil na fechadura antiga. Admirava a bela pesada porta de ferro batido e vidro, que lembrava outras de escolas em que lecionara. Coisa quase inexistente, hoje. Coisa pouco valorizada.

A resistência que a robusta folha móvel da porta impunha-lhe ao braço, ao abri-la, deixava-lhe na mão o cheiro metálico do passado. Sempre o mesmo.

Tinha suas vantagens morar num apartamento térreo no velho centro da cidade. Aos 84 anos, isso era garantia de padaria perto, socorro rápido, e de algum movimento a sacudir o silêncio do tempo.

A manhã de domingo era clara, lúcida como lembrava já ter sido. Os passos curtos deixavam a padaria mais longe, mas já não tinha pressa. E o sol da manhã, inexperiente e tenro, era como uma carícia infantil em sua pele seca e fina.

- E aí, professor?

- Bom dia. Na volta pego o jornal.

Preferia o sol da manhã. O sol da tarde nada tinha de ingênuo. Enrijecido pela ameaça da noite, ardia como as rabugices de um velho.

- O de sempre, professor?

- O de sempre.

Dois pães. Todos os dias. Há tantos dias. Sempre sobrava um, que torrava na tarde do dia seguinte com um pouco de manteiga. Nunca entendera direito porque não comia o pão do dia na mesma tarde, sempre torrava o da véspera. E deixava o do dia virar de véspera.

Talvez simplesmente gostasse de pão amanhecido torrado.

Talvez sofresse de uma inevitável lógica da precedência.

Afinal, tantos anos ensinando matemática. A tanta gente, por vezes de sucessivas gerações da mesma família. A lógica podia ter virado vício. A razão podia ter-se adoentado numa espécie de obsessão sequencial. Tudo se contava, dores se somavam, lembranças se subtraíam.

- O jornal.

- Aqui, professor.

- Põe na conta.

- Ouviu a confusão na rua de madrugada?

Claro que tinha ouvido. Sempre ouvia. A janela de madeira, frente para a rua, nada retinha. E sua cota de sono, que se vinha esgotando aos poucos, havia alguns meses findara de vez. Anos antes, não acreditava que velho não dormisse.

Na cozinha, o café coado, o pão fresco chacoalharam lembranças. Existiria no mundo alguém em quem o cheiro de café não despertasse memórias entorpecidas? Não acreditava. Não podia conceber.

Nele, eram sobretudo duas: o cigarro e as manhãs com a mulher.

Era tão bom fumar. Tinha sido tão bom. Naquele tempo, não havia incomodar a fumaça, a perseguição do saudável. Ao contrário, fumar era heroico, elegante. Alguns diziam que sua boca era meio torta de tanto fumar. Não era por isso. Mas fazia sentido dizerem.

Agora, as manhãs com a mulher! Ah, melhores que quase tudo. Melhores mesmo que o casamento. A calma do afeto matinal até o entardecer do tempo.

Havia-se casado cedo. Todos casavam cedo naquela época. Dificuldades houve, e muitas. A frustração da paternidade, abortada no primeiro fracasso. Mas sempre uma afinação, uma gentileza ou outra, um carinho. A conversa terna como o café quente. De modo que nem se lembrava se amava a mulher quando se casaram. Mas não duvidava amá-la quando ela se foi.

Morrera havia cinco anos, não sem antes alguns meses de sofrimento sobre o leito. Estivera com ela e, enquanto possível, as conversas matinais ternas e os cafés tenros também.

Hoje, tudo era uma solidão que geralmente fingia não perceber. Tinha que fingir, senão desesperava. E não era afeito a desesperos. Falava sozinho, então. Não tinha jeito. Quem não o faria? Quem, em situação similar, não o fazia? Ouvia-se durante os cafés.

A solidão era um conjunto vazio. A solidão era andar pela casa sem rumo. Ia ao quarto buscar uma coisa que não pegava e fazia outra. Voltava à cozinha e lembrava e voltava ao quarto. E lembrava o que tinha deixado de fazer na cozinha. E em todos os cômodos não tinha ninguém.

Mas era assim, e assossegara-se no silêncio, no desânimo lento, no desencorajar progressivo.

Não entendia por que naquela manhã resolvera pensar tanto em tudo. E com um tom de calamidade que não era seu. Não era dado a dramas, sentimentalismos e congêneres. Era professor de matemática.

Não entendia por que, naquela manhã, lembrava tão agudamente não ter mais intimidades sobreviventes no mundo: ninguém que pudesse ouvi-lo numa conversa menos fática, menos casual, menos sem sentido – e talvez sem sentido algum. Ninguém a quem pudesse reclamar, e que lhe fosse repreender o queixume com um carinho frouxo. Ninguém a quem contar repetidas histórias gastas do passado roto, e que pudesse ouvi-las com fingido interesse. Ninguém.

O único irmão, mais velho, morrera anos antes da mulher. Dos amigos, praticamente todos professores, e que se contavam com sobra nos dedos das mãos, fora ao enterro de todos. No último, já não tinha sequer com quem trocar as inusitadas falas típicas dos encontros fúnebres.

E, de alguma forma, não ter filhos era investir na solidão definitiva. Era um título de resgate futuro, que só não se sabia ao certo a quem caberia. Era a quebra da perpetuação da espécie, a ruptura da cadeia evolutiva, a negação das gerações futuras. O aborto de netos e bisnetos sequer incipientes.

Estava sendo dramático. Café e pão. Aquele cheiro que era paz não lhe deixava em paz.

“Não transmitira a ninguém o legado de sua miséria”.

Mudar de ambiente. Foi para a sala. Pena que já não era confiável deixar as janelas todas abertas para a rua, para o dia, para o sol, como faziam sempre nas manhãs de domingo décadas atrás. Era pouco crível, mas atacavam-se velhos em apartamentos singelos. Por pouca coisa.

Sobre a mesa de jantar, o quebra-cabeça era menos que iminente. Só um cantinho de peças ajustadas. E centenas dispersas. Nem os quebra-cabeças, com que tanto, tantas vezes, com tantas milhares de peças, antes mantivera em forma o raciocínio, já o divertiam. E divertia-se mesmo com eles: empolgava-se em descobrir inesperadas junções a partir de uma cor, um tom, de um início de forma, uma sombra.

Agora, tudo era sombra, esse vazio cheio de ser sozinho. Um vácuo, uma falta de ar, um desânimo. “Um deixar cair os braços ao sol-pôr do esforço”. O professor de matemática que também lia poesia...

Seu corpo não costumava ceder a essas tentações de dor literária, mas algo de diferente havia naquela manhã. De repente adoecera, um frio na barriga que desconhecia, um nó na garganta, uma agulha no peito.

Passava-lhe à mente, como num filme mudo, tudo quanto mudara nesse tempo imenso. Seus tantos anos de magistério não teriam valido uma obra? Afinal, de alguma forma tinha contribuído com o desenvolvimento do pensamento lógico, do discernimento, da lucidez de muita gente. Ou não? Em que beco desembocara o trabalho de sua geração inteira?

No seu tempo, professor era respeitado. Era autoridade, não prestador de serviço. Uma autoridade como paternidade acadêmica, algo de algum modo transcendente, mítico. No fim, seus alunos se tratavam como seus clientes, não como seus alunos. E o tratavam como um prestador de serviço, um contratado. Isso fizera com que encerrasse a carreira desanimado, encurvado, indignado.

Do que lia nos seus jornais matinais, entendia que a educação ruía. Como se podia falar de algo como ensino à distância? O que podia ser isso? Ensino, não. Já havia tanta distância, tanta solidão. Por que instituí-las?

Relacionava-se com seus alunos. Discutia com seus alunos. Enfrentava-os. E era enfrentado por eles, certas vezes. Até além da conta, em alguns casos. Mas isso era ser humano. O choque de corpos, almas e mentes. Isso que tanto lhe faltava agora. E era essa falta que queriam institucionalizar!

Seu pensamento transportava-se rapidamente do amargor íntimo ao desalento humano. Do fosso pessoal à aporia coletiva. Não havia mais ninguém, não havia tempo, não havia sucesso.

Sua idade era uma contagem regressiva.

E o mundo que via parecia fascinado por um buraco negro de antivida, de indignidade, de imoralidade. Desamizade, deseducação. Medo e covardia... Como se tudo se devesse contrair num neutrino existencial, para só então despertar a esperança da expansão, numa explosão de quem quase sufoca.

Tinha que sair daquele torvelinho. Sua razão era o único recurso. Sentar-se ao sofá. O jornal. Isso, o jornal. Notícias locais. Havia a chance de serem menos desanimadoras.

Pôs os outros cadernos de lado. Pegou a folha da cidade. Chamou-lhe a atenção reportagem sobre um projeto urbanístico, revolucionário, combinação de bem-estar, convívio, cuidado ambiental, sofisticação arquitetônica, rigor matemático. O autor, um nome que lhe parecia conhecido.

Um nome conhecido, claro! Fora seu aluno.

Resolveu ler a matéria. O engenheiro e arquiteto fazia tributo à sua formação, a que creditava a criação. Formação nacional. Quase sempre local. Nominava professores que o tinham marcado. Entre eles, um que sempre o inspirara por sua severidade, seu equilíbrio, seu rigor lógico, sua humanidade. Não sabia de seu destino. Lembrava-lhe gostar de quebra-cabeças...

A paz das manhãs de domingo subitamente resgatada. Num átimo, a certeza da obra.

Resolveu que não daria o último alento naquele dia.