O salvador da Humanidade (ou 'A missão do último homem')

O salvador da Humanidade (ou 'A missão do último homem')

Alexandre Santos (*)

Dorgival Snow olhou em volta e chorou.

O cenário era desolador.

Como João previra no Livro do Apocalipse, chegara o fim do mundo. Ele ainda não vira nenhuma das bestas, mas, com certeza, elas estavam por alguma parte daquele deserto fumegante de céu (se é que se podia chamar aquilo de céu) plúmbeo riscado por raios e trovões. Não poderia haver nada mais feio. Nenhuma melodia, nenhuma cor, nenhum sabor, nenhuma fragrância, nenhum movimento, nenhuma vida. Onde estariam os animais, os pássaros, os peixes, os insetos? [Onde estariam] as árvores, os campos, as flores? [Onde estariam] todos? Que destino horroroso Deus reservara a ele?, pensou Dorgival. Por tudo o que fizera ao longo da vida [ele] merecia coisa melhor. Por que logo ele - um homem que proporcionara tantas alegrias (especialmente às mulheres) - fora escolhido para testemunhar o final dos tempos? Talvez, pensou ele, aquela miséria fosse castigo pelas desilusões que, em contraponto [às alegrias], também dera causa. Mas, continuou Dorgival naquele profundo mergulho em si mesmo, o quê ele poderia ter feito de diferente, se seduzir, desfrutar mulheres e, depois largá-las apaixonadas era da sua natureza de macho dominante? Deus o fizera assim e assim ele era. Não era justo ser castigado por agir conforme Deus quis.

Vagamente, Dorgival lembrou de que, há poucos anos, tão logo recobrara o vigor perdido momentaneamente (provavelmente por feitiço, castigo ou, quem, sabe, aviso para evitar desdita maior), passara a ser muito exigente com as mulheres e isto lhe gerara muitos infortúnios, atiçando recalques e gerando novas pragas. Talvez este tenha sido o seu maior pecado. Vozes experientes disseram-lhe que deveria ter continuado na gandaia, pois, pelo menos, antes de serem abandonadas com o coração partido e saudades indizíveis nas partes mais secretas, por seu intermédio, as mulheres teriam conhecido o paraíso e vivido momentos de extrema felicidade. De fato, ao contrário daquilo que fora na juventude - quando, sem distinção de peso, cor, idade ou altura, traçava qualquer fêmea que lhe atravessasse o caminho -, com a maturidade, Dorgival passara a ser seletivo e só se dava às poucas que atendiam ao seu rigoroso processo seletivo. Esta mudança de atitude provocara muitas decepções, especialmente nas ultra balzaquenas que sonhavam sentir-se estocadas e preenchidas pelo nervo insaciável que fazia a fama de Dorgival Snow.

A fila das oferecidas era grande (e não parava de crescer). Compreensivelmente, nas primeiras posições, estavam aquelas pior posicionadas no ranking da palatáveis, uma lista criada por Dorgival para orientar-lhe a ação, a começar pelas assanhadas Elvira - uma volumosa matrona que, depois de um passado de glórias, fora vencida pelo tempo e, de uns anos para cá, perdera as formas, ganhando algumas arrobas extras, especialmente no abdômen e nas ancas -, Gertudes - solteirona cansada de guerra que, coitada, fazendo jus ao apelido de JacaEncardida, depois de longa temporada no putanèe sem remorsos, engordara e criara robustas papadas -, Quitéria - viúva de fogo ardente, que, no passado, fora um pitelzinho cobiçado por todos e, agora, chamada pelas esquinas de Canhão-do-Padre, perdera as formas, estufando a outrora cinturinha de pilão com os pneus e mais pneus que a faziam parecer uma pipa -; e Gerivalda - referida pelas fofoqueiras como 'a sempre-virgem', que, um dia jurara guardar as virtudes para Dorgival, mas, perdera a chance, inicialmente pela queda de pressão que derrubara o garanhão dos seus sonhos e, depois, cansada de esperar, ainda com as membranas e ranhuras intactas, se entregara às macarronadas e às pizzas, trocando a antiga formosura por algo que a fazia ojerizar espelhos.

Pouco a pouco se habituando àquele cenário de destruição, Dorgival Snow fechou os olhos. Estava diante do Armagedom e, sabia muito bem, precisava se preparar para o Julgamento Final, precisava expiar os pecados (pelo menos, os principais). Conhecendo quem, de fato, era, Dorgival Snow temeu o iminente encontro com Deus. Ele sabia não ter cometido nenhum dos pecados capitais, a não ser a Luxúria. Ah! A Luxúria. Quantas noites passara em claro no vuc-vuc impune com mulheres que sequer sabia o nome. Quantas serenatas insistiu até ver abrirem as janelas por onde entrara e saíra horas mais tarde, saciado, deixando para trás carnes em brasa e corações arrebatados. Quantas humilhações impôs a varões apaixonados por donzelas que, arfando desejos não satisfeitos, suspiravam o nome de Dorgival, ao recusar-lhes [a eles! os varões apaixonados] ofertas de amor. Sim. Dorgival Snow era culpado de praticar a mais desregrada Luxúria, fazendo do sexo, não um instrumento do esplendor de Deus, mas um caminho para a perdição e para o pecado. E, disposto a garantir lugar no Paraíso, Dorgival arrependeu-se. Arrependeu-se sinceramente e decidiu mortificar os desejos e guardar o mais casto dos celibatos. Pronto! Daquele momento em diante, Dorgival Snow jurara a si mesmo, resistiria a qualquer das tentações da carne. Se dependesse de si, estava preparado para entrar no Reino dos Céus.

Mesmo assim, como constatou prontamente, o Julgamento Final exigia provas concretas do arrependimento. Em Sua excelsa sabedoria, Deus desconfiava da palavra empenhada por pecadores contumazes.

E veio a provação.

Errando por aqueles solos calcinados, Dorgival Snow tentou abrigo numa gruta surgida do nada e... tudo mudou.

De repente, envolto em névoa adocicada por um incenso aromático qualquer, Dorgival Snow se viu cercado por silhuetas femininas que dançavam ao seu redor, oferecendo-se como a um Sultão em visita ao harém. Se fossem outros tempos, Dorgival estaria se sentindo nos céus, mas, naquele momento, a promessa de orgia era tudo o quê ele não queria. Apurando a visão, progressivamente habituada à penumbra perfumada, os perfis em movimento ganharam nitidez e ele descobriu que aquelas dançarinas eram suas velhas conhecidas. Disfarçadas por roupas insinuantes e encobertas pelo fog, estavam Elvira, Gertudes, Quitéria e Gerivalda - mulheres que, por razões próprias do garanhão amadurecido, tinham saído da alça de mira de Dorgival Snow há tempos e, agora, em função expiação que se auto infligira através da pureza do celibato, [saído] mais ainda e já não tinham qualquer chance de sentir a sua virilidade. De qualquer modo, pressionadas pela oportunidade ou pelo fim do mundo que se aproximava, aquelas mulheres pareciam não estar dispostas a aceitar o desdém passivamente. Aliás, a julgar pela ferocidade como a coreografia ganhava tons eróticos, transformando-se em uma agressiva dança do acasalamento, e pela saliência como, intencionalmente, [as mulheres] alargaram as frestas das roupas sensuais para mostrar mais e mais nacos das carnes adiposas, estava claro que, já sem conter a volúpia e o desejo, elas se ofereciam abertamente, partindo para uma espécie 'tudo ou nada'. E, sem saber da recente promessa feita por Dorgival Snow de renunciar à Luxúria em troca de um lugar no céu, as fêmeas capricharam a linguagem do corpo, requebrando um convite à fornicação sem limites.

De sua parte, acuado pelas fêmeas enlouquecidas, mas decidido a manter a jura, Dorgival tentava se esquivar, suando a cântaros. Como aprendera nas raras vezes em que, por uma razão qualquer, não quis ir às vias de fato com uma ou outra mulher, Dorgival sabia que não bastava a vontade da 'cabeça de cima', pois, como parecia ter vida própria, se não fosse controlado e tomasse decisão em contrário, o membro viril não sossegaria até conseguir seu intento. Em situações como aquela, o melhor a fazer era pensar coisas diferentes para distrair o corpo e não deixar o bruto acordar. Foi o quê Dorgival fez.

Inicialmente, contextualizando a gravidade da situação, ele trouxe à mente que estava no fim do mundo, prestes a partir da vida tal como conhecera desde sempre. Conforme esperado, de tão grave, por instantes, aquele pensamento sugou toda a sua adrenalina, deixando nada para os corpos cavernosos da massa viril, a qual, para tranquilidade de Dorgival Snow, permaneceu murcha e dócil. Como das outras vezes, no entanto, Dorgival lembrava muito bem, a inércia do nervo não duraria muito tempo. Aliás, diante daquele clima de alcova e da iminência do fim do mundo, provavelmente o bruto acordaria a qualquer instante para cobrar uma 'última aventura', quebrando irremediavelmente a promessa que lhe garantiria absolvição no Juízo Final. Dorgival exasperou-se e, decidido a manter a sonolência do bruto e, consequentemente, a abstinência prometida, como último recurso, lembrou a si mesmo que, um dia, jurara que não comeria nenhuma daquelas mulheres 'nem no fim do mundo'.

Dorgival não devia ter pensado aquilo, pois, talvez orientada pelo demônio que mora em cada um, arrancando um leve tremor no membro adormecido, uma voz questionou a sua responsabilidade com a Humanidade.

- Deixe de ser egoísta, Dorgival. Será que, só para cumprir um capricho idiota ou manter o celibato para salvar a alma, você vai deixar de traçar estas mulheres, fazendo-lhes a felicidade e deixar nelas a semente que vai repovoar o mundo? Você prefere entrar para a história como o último homem que pisou a face da Terra ou como o homem que salvou a Humanidade, garantindo a sobrevivência da espécie?

E, sem saber o que fazer, Dorgival se viu numa encruzilhada. De um lado, [estava] o cumprimento da promessa feita a si mesmo em troca da absolvição no Juízo Final e da vida eterna no paraíso. De outro [lado], [estava] a salvação da Humanidade, o repovoamento do planeta. Ele nunca fora egoísta. Em outra circunstância, não teria qualquer dificuldade em oferecer-se em sacrifício, mas, daquela vez, o que estava em jogo era a Salvação. Será que salvar a Humanidade da extinção merecia o seu sacrifício pessoal? De sua parte, sem saber ou sem ligar para o drama vivido por ele, as mulheres estreitaram o cerco, espargindo o almíscar próprio das fêmeas decididas, coisa que, seguramente, terminaria por despertar o membro adormecido, cobrando proibições a Dorgival

- Pai, afasta de mim este cálice - Imerso no terrível dilema, Dorival implorou.

O apelo parece ter surtido efeito.

Depois de alguns segundos, Dorgival sentiu uma mão macia e conhecida acariciar o seu nervo ainda inerte, o qual, imediatamente, em decisão unilateral como se nada estivesse acontecendo, despertou pronto para ação.

- O que foi, meu bem? - a voz rouca de Claudete trouxe Dorgival do devaneio.

Banhado em lágrimas de alegria, Dorgival percebeu que aquilo tudo não passara de um pesadelo. Ele não estava no fim do mundo, o futuro da Humanidade não dependia dele e ele não era alvo da disputa de mulheres. Estava a salvo, no sítio de Moreno - o paraíso que dividia com Claudete, a mulher cujo amor conseguira tirá-lo da Luxúria e do pecado, deixando-o pronto para o Juízo Final.

- Deixe de besteira e venha para cá, fazer o quê você faz de melhor - a mulher sussurrou.

O mundo voltara ao normal.

(*) Alexandre Santos é ex-presidente da União Brasileira de Escritores e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural