Um marujo

A noite arrastou seu negro manto sobre a Terra. Em algum lugar, alguém se sentou desolado numa pedra em frente ao mar. Olhou para o horizonte e viu a lua cheia fazendo prateada sombra sobre as águas. As estrelas acompanhavam, com seu brilho distante, a rainha da noite. Este alguém se sentiu indigno de contemplar tamanha beleza e baixou os olhos para a areia sob seus pés, não sem antes fechá-los, respirar fundo sentindo a suave brisa encher-lhe os pulmões, como se aquilo pudesse dar-lhe um pouco de ânimo e de esperança diante da vida.

Assim, cabisbaixo, não percebeu uma presença que se aproximava. Era um homem com as calças levantadas até próximo dos joelhos, trazia uma caneca de bebida nas mãos e andava cambaleando. Trajava também um chapeuzinho branco e um colar de conchas. Achegou-se e sentou-se ao lado daquela criatura prostrada ali na pedra.

– Ei, moço, levanta essa cabeça! Para de se lamentar e segue porque a vida está passando. A missão é grande para ficar aí parado. O que foi já foi e pronto!

O ouvinte, incrédulo, ouviu a voz, mas devido a seu estado emocional, não pôde ver a figura do marujo a seu lado, que continuou:

– Olha pro mar na tua frente. Repara que as ondas sempre vão e sempre vêm. A vida também é assim, moço. Hoje tu “tá” aqui, tu “veio” a este plano e um dia vai voltar à casa verdadeira. Quando o mar recebe alguma coisa que não é dele, ele devolve, moço! Mas também, às vezes o mar nos dá de pre-sente algo que lhe pertence. O mar da vida também é assim. O que for teu ele trará, o que não for, ele levará. Tenha calma e não troque os pés pelas mãos. Nas lutas da vida, com certeza há vitórias, mas no lugar das perdas há aprendizado. E tu “tem” aprendido, não é mesmo? Tem aprendido da forma que pediu para aprender antes de vir pra este plano.

O homem sentado na pedra ouvia nitidamente a voz que lhe falava, mas não conseguia ver de quem era. Quando olhava ao redor, não via ninguém e pensava estar enlouquecendo. Nesse momento, o marujo deu uma sonora gargalhada. O homem sentado na pedra, ao menos ergueu a cabeça, colocou o rosto entre as mãos e começou a olhar fixamente para o mar e para a lua. De seus olhos começaram a brotar fios de lágrimas, tão salgadas quanto as águas do mar.

– Chora, moço! Pode chorar! – continuou o marujo – Chora que lava a alma. Se tu “pudesse” me ver eu até te dava um pouco da minha bebida. Mas tu não “pode”, não é mesmo!? Não pode ou não quer, hein!? Tu “caiu” nas marolas da vida, não foi? Mas pense bem em tudo o que aconteceu pra tu “está” assim. Alguma vez te obrigaram a algo? Não, né!? Os homens precisam aprender que são senhores de suas escolhas e reféns de suas consequências. Essa é a Lei Divina, moço. Dela ninguém escapa. Depois que tu “parar” de chorar, levanta, vai até a casa da Grande Mãe e se lave por inteiro. Enquanto tu se “lava” na casa da Grande Mãe, a luz da Lua, luz do Grande Pai, também vai te banhar. Depois disso tu “vai” ficar mais aliviado. Mas nunca esqueça, moço, que quem tem o leme da tua vida é tu mesmo. Se tua via é um barco, tu “é” o comandante desse barco. Então, faça a viagem valer a pena.

Terminado o pranto, o homem se levantou, caminhou até o mar e foi entrando até que a água lhe cobrisse a cintura. As ondas estavam calmas, serenas, embora a água estivesse gelada. O homem se ajoelhou e deixou ser coberto pelas ondas do mar. Nessa hora, parece ter ouvido o canto melodioso das sereias. Embora não visse, o marujo estava do lado dele o tempo todo, mas agora em silêncio, pois sua parte fora feita.

Alguns minutos depois, o homem saiu do mar e se dirigiu à sua casa. Quando pisou na areia onde as ondas não chegavam, virou-se e aí pôde ver o marujo, que lhe saudou com um aceno de mão e erguendo a caneca onde trazia sua bebida. Piscou os olhos, espantado, e quando os abriu novamente, o marujo não estava mais lá. O homem, então, foi embora. Ao chegar em casa, tomou seu banho quente, trocou-se e adormeceu. Talvez não se lembrasse de nada no dia seguinte, talvez achasse que fosse uma alucinação ou um sonho. Mas isso não importava.

Enquanto isso, lá nas ondas do mar, o marujo voltava para casa e era recebido pela Grande Mãe, que o abraçara e acalentara. A sua missão fora cumprida com êxito, embora ele achasse que pudesse ter feito mais. Porém, a Grande Mãe, falara-lhe a respeito do livre arbítrio, deixando bem claro que a ajuda só tem o efeito desejado se o ajudado se permite a isso e permite-se também à correção de rumos. Ninguém, dissera Ela, ninguém deve dar um passo maior ou menor do que a perna alcança.

Cícero – 26-04-2020

Cícero Carlos Lopes
Enviado por Cícero Carlos Lopes em 26/04/2020
Código do texto: T6929593
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.