Seres irracionais

O Sol já estava raiando e aquele homem ranzinza levava seu bonito cavalo de volta à baia. Andara a noite toda por trilhas difíceis, com subidas e descidas íngremes. Muito para um cavalo já cansado. O pobre animal mal conseguia manter-se de pé, mas mesmo assim Roque o castigava com golpes de facão como se fosse um chicote. Não se importava se o atingia com a lateral ou com o corte da lâmina. O sangue escorria sobre o pelo suado do lindo corcel e se precipitava sobre a poeira do terreiro. Nada o comovia. Não tinha coração. Roque era um homem muito grande, media quase dois metros e também era muito forte. O trabalho na roça desde menino lhes renderam muitos músculos e muito vigor físico. Sua moradia era um barracão velho, no quintal de sua vó Maria, mofado e sujo, quase decadente, era usado para espalhar feijões ou outros grãos. Roque tinha uma índole má sem precedentes. Índole má é uma forma para suavizar um pouco a perversidade dele porque na verdade ele era inescrupuloso. No sentido estrito da palavra, um verdadeiro demônio. Jà havia retirado o arreio do animal, mas mesmo assim obrigava o pobre bicho aos seus caprichos através de gritos e murros. Um vizinho seu o observava à distância, evitando envolver-se. Conhecia bem a fama violenta dele e sabia do que era capaz. Noutra noite, Tony vira Roque chegar em casa embriagado. Seu cachorro o recebeu latindo muito. Roque num ataque de fúria o agarrou pelo pescoço e o levou para dentro do barracão. No dia seguinte o pobre cãozinho aparecera sem um de seus olhos. Fora retirado a sangue frio com um canivete. Uma das maiores crueldades que vira em toda a sua vida. Mas, muito longe de ser a única. Era compulsivo na prática de maus tratos. Tony fora criado junto com Roque. Eram até amigos, mas, vez por outra, Roque parecia estar possuído e quando isso acontecia ninguém queria esse status. Tony o vira fazer muitas maldades e tomou conhecimento de outras tantas. Enquanto assistia ao embate de Roque com o cavalo lembrou-se de que também já fora vítima do “amigo”. Quando decidiu criar galinhas... Tinha umas vinte galinhas caipiras. Aves lindas e gordas. E também um lindo galo mestiço. Pensava em produzir ovos para vender. Roque não gostou nada da ideia. Na manhã do dia seguinte, para surpresa de Tony, todas as aves apareceram com os pescoços torcidos entre os vãos da cerca. Um longo varal de aves mortas. O galo mestiço fora decapitado. Roque mais uma vez agira como um demônio na penumbra da noite. Tony, embora soubesse ser Roque o responsável pelo ato, nada fez, por falta de provas e, principalmente, por temer represálias. Apesar de temer o enfrentamento com Roque, Tony estava inclinado a proteger aquele pobre cavalo. Não poderia permitir que viesse a ter o mesmo destino que tivera Andorinha. Outro animal de Roque. Uma linda égua, da raça Quarto de Milha, animal de beleza e de valor inestimável. A égua estava com Roque há três meses. Numa ocasião, ela se negou a puxar a charrete. Roque então começou a forçá-la até o seu limite empreendendo altas doses de crueldade. Do chicote à madeira. Da água ao fogo. Sim, ao fogo. O maléfico teve a audácia de fazer uma tocha de fogo com panos velhos e gasolina e de aproximá-la às genitálias da égua para forçá-la a romper marcha. Tortura pesada que de nada adiantou. Andorinha ficou gravemente machucada. Muito mal. Roque tentou recuperá-la. Conduziu o animal até uma zona de mata, apoiou sua cabeça sobre um gancho de madeira e inseriu duas garrafas de chá de boldo pelas narinas da pobre égua. Acreditava que amenizaria as queimaduras que provocara, mas não, apenas levou-a à óbito. E depois dela possuiu outros cavalos e maltratou a todos porque isso era o que sabia fazer de melhor. Seus maus-tratos eram extensos. Alcançavam cavalos, gatos, cães, pássaros, galinhas, enfim, não tinham limites. Quando Roque desferiu um novo golpe de facão no lombo do cavalo, Tony decidiu enfrentá-lo. Usou primeiramente da verbalização, mas acabou terminando nas vias de fato. O que ele não esperava é que Roque se encontrava armado. Puxou um revólver 38 da cintura e fez um disparo contra o peito de Tony que caiu ao solo. Depois evadiu-se por uma trilha que dava na Pedra da Cruz. Uma trilha íngreme e estreita com vários pontos de risco. As dificuldades da via somadas ao estado físico do animal convergiram para um final um tanto trágico. Em uma zona mais estreita da mata, próxima a um despenhadeiro, Roque, que se encontrava montado no pelo, segurava-se apenas às clinas do cavalo, o qual veio a empinar e a ficar apoiado sobre as patas traseiras. Ato contínuo, ambos despencaram a uma altura de dez metros. Roque quebrou as costelas e ficou preso sob o cavalo que não se moveu. Na manhã do dia seguinte, Roque foi localizado caído ao solo, sem vida. O cavalo, num gesto bem mais humano, relinchava, batia as patas e tentava mover o corpo de Roque, na mais pura demonstração de sofrimento e pêsame. Cavalo muito besta!

Vander Cruz
Enviado por Vander Cruz em 08/05/2020
Reeditado em 27/01/2023
Código do texto: T6941159
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