CONVERSA DE BAR (VI)

(Julia) – Verônica, já estamos nessa cervejinha há semanas, vamos pedir pelo menos uma caipirinha pra diversificar.

(Verônica) – Pode ser, mantendo a cerveja como copo base nós podemos acrescentar o que você quiser.

(Julia) – Acrescentar o quiser seria uma boa escolha, queria acrescentar mais profundidade na minha vida e no copo. Sabe, eu complico tudo demais, gosto da abstração, tenho problema com a superfície, fica tudo banal, tudo deveria ter um significado maior.

(Verônica) – Tudo o que nós damos significado fica sempre coberto por um véu de mistério. A gente nunca sabe ao fundo o porquê de cada coisa de cada pessoa, e nem de nós mesmas, eu gosto das coisas misteriosas, já se surpreendeu com você?

(Julia) – Já, pro bem e pro mal, já pensei coisas que achei ótima, já disse coisas que eram horríveis, já chorei na privada pensando que merda, que droga, que porra, porque a gente às vezes vai tanto contra a gente, eu tenho problema com dias muito quietos, com o vazio, com o nada, se o dia tá passando sem muito sentido e eu não conseguir imaginar nada, é como se eu tivesse morrendo lentamente, e se estou confusa, pensando em muitas coisas, é como se eu tivesse morrendo rapidamente, porque parece que não vai dar tempo, na verdade a gente usa muito mal o tempo. – Amigo, mais uma cerveja e duas caipirinhas.

(Verônica) – Sabe, às vezes, quando a gente pede mais bebida, sabe que vai sair do controle na fala, e isso pode nos dar uma ressaca moral grande, ou sairmos aliviados. Os amigos que mais duram são o que não ligam absolutamente. Os que sabem que essa vida é errante e errante somos todos nós. Que tentamos nos achar de alguma forma, como mexer numa geleia tentando pegar um pedaço de fruta e ela vai fugindo, às vezes se mescla na geleia, você não sabe bem, tem as que tem pimenta, que maravilha, aí você fica querendo um pedaço de pimenta, a gente vai buscando as frutas, as pimentas, o doce a gente come com gosto, e doce apimentado vale pra vida, talvez seja a graça.

De repente, surge um barulho no meio dos túneis que ficam próximos ao bar, burburinho de tambores, gente entoando algum coro. Contudo, a escuridão dos túneis, envolta numa fumaça que parece impregnar aqueles dias de inverno, não permite que se possa ver o que há atrás daquele viaduto na Avenida São João.

Júlia e Verônica se reclinam na janela do bar para tentarem entender algo que se passa e antes que alguma alma bondosa apareça aspergindo notícias, ambas começam a confabular:

- Aposto uma caipirinha que se trata de uma manifestação dos PTS , Partido dos Trabalhadores Socialistas

- Não. Acredito que seja uma manifestação da DCL , Direita Conservadora Libertária. Eles estão tentando um golpe militar e estão prestes a conseguir desde os últimos acontecimentos.

Júlia se espanta com a hipótese de Verônica , estende um olhar perdido em direção aos túneis e retoma a mesa, seu copo de caipirinha, precisamente, onde um limão descansa, imune da efervescência política daqueles tempos.

Verônica sente-se perturbada com a possibilidade de um golpe militar e parece entrar numa catarse. Começa a se pensar queimando numa fogueira da inquisição. Ouve o som dos tambores ficando cada vez mais forte e contundente. Então, cogitou, tambores são símbolos libertários, não deve ser um grupo de fanáticos. Mas quem são?

Estavam ambas cansadas das promessas de " mundo melhor" da política partidária que, de fato , nunca se concretizam e não se tratam nada mais do que uma ilusão compartilhada. A ilusão de amparo, como a de um aconchego materno ou paterno mas ainda assim, uma ilusão.

Pensando nestas coisas Verônica tenta verbalizar sua insatisfação constante com a política, mas nem precisa. Seu olhar refletido nos espelhos quebrados que ficam dependurados na marquise, revelam como aquele olhar se multiplica.

- Este espelho, repara Julia, já foi um lustre. Hoje parece uma arma que vai cair na nossa cabeça a qualquer momento.

Ambas riem, e complementa verônica:

- Como cê pode observar, até este espelho do bar já foi um lustre e hoje é uma ameaça. Tudo é uma questão de perspectiva, não existe bem nem mal completos.

Os primeiros manifestantes cruzam o túnel naquele instante, carregam uma imensa faixa e marcham juntos, entoando um coro. Em letras garrafais, reluzindo no meio da multidão, como um texto que fala por si mesmo está escrito:

"e o leite mau na cara dos caretas, chuva do mesmo bom sobre os caretas, la mala leche para los puretas, e o resto inunde as almas dos caretas"