Amor de carnaval

Amor de carnaval

Alexandre Santos(*)

Ele já nem sabia que dia era aquele. Em meio a uma sede e dor-de-cabeça insuportáveis, João Luiz recordava, apenas, de que, na véspera, sem planos muito definidos, saíra de casa no final da manhã para almoçar com Tonho e Miguel no Biruta, um bar da beira mar de Brasília Teimosa, na praia do Pina. Conhecendo os amigos como conhecia, sabia que ‘sair para almoçar’ era o eufemismo que usariam para ‘encher a cara’. Não deu outra. De cerveja em cerveja, a tarde foi avançando e, entre piadas, comentários sobre a ‘bunda da vizinha’ (qualquer que fosse a vizinha), planos para os próximos dias (e só sobre estes) e todo o tipo de conversa fiada, a vista foi turvando. Foi no começo da noite quando Miguel teve a grande ideia:

– Vamos para o Azulão?

Sem que ninguém pensasse dar resposta à interrogação solta no ar, o trio levantou-se e, automaticamente como se atendesse a um chamado divino, pegou o primeiro ônibus no rumo do Recife Antigo. O destino era a cunha aberta pelos enormes e feiosos prismas de concreto fincados no meio do antigo casario aos pés da ponte Buarque de Macedo em claro desafio aos velhos ninhos e às musas que os guardavam. Era naquelas redondezas que, na noite da 6ª feira, emergia o som mágico e pulava a multidão vestida de azul. Com um sorriso meio idiota, Tonho filosofou que, já há alguns anos, limitado apenas pelos acordes que, no começo da manhã seguinte, liberava o Galo da Madrugada para encantar o sábado de Zé Pereira, o Azulão escapara das amarras pensadas pelo próprio criador e ganhara vida própria, deixando de ser apenas o bloco do Bandepe para ser um bloco do povo. Agora, o Azulão era de quem quisesse. Não precisava sequer usar o azul predominante. Bastava entrar no cordão.

Era no Azulão que ganhariam a noite e, se Deus quisesse, mais alguma coisa.

A música ainda estava longe, mas já mostrava o porque da fama que tinha até no exterior. Repentinamente eletrizado, Tonho apontou os cabelos eriçados pelo arrepio que lhe corria os braços e, com pompa e circunstância, anunciou: “hoje ninguém me segura”. Era a senha que faltava para caírem na folia. Como se não houvesse a corda que isolava pessoas de abadá azulado com a marca estilizada do Bandepe, a trinca se misturou aos pierrôs, colombinas, palhaços, mágicos, diabos, anjos, presidiários, toureiros, pirilampos, fadas, bruxas, mascarados, cangaceiros, maurícios-de-nassau, caboclos-de-lança, papangús, almas e caboclinhos, se incorporando à onda que, carinhosamente, levitava pela rua como se não quisesse machucar paralelepípedos nos quais portugueses, holandeses, africanos e caetés haviam escrito a história de todos os carnavais.

Consciente de que, naquela noite de repouso para os devotos do Galo, era um dos poucos acordados na cidade, o Azulão imperou e, decidido a não dar trégua ao sossego, encheu a ilha do Recife de luz, música e movimento. Ao som do frevo rasgado, o bloco se movia em solavancos sincronizados, inflando e desinflando a bolha azul que pulsava segundo o ritmo alucinante. Marcados pelos surdos e taróis, clarinetas, saxofones, trompetes e trombones sopraram mais forte e o frevo ferveu, arrastando João Luiz, Miguel e Tonho junto com a multidão cuja mancha se esparramava até o Chanteclair. O Azulão saiu da Avenida Martins de Barros, arrebanhando os foliões espalhados pelos cais do Apolo e do Paço Alfândega e, entorpecido pela alegria, subiu a Avenida Rio Branco em direção ao Marco Zero, reverenciando sobrados centenários testemunhas de muitos carnavais e que serviram de pousada e bordel para marinheiros de todos os portos em busca de todos os descansos e todos os prazeres. Quando parecia que todos iam morrer de tanto pular, Deus entrava em cena e, de rincões celestiais reservados especialmente para os gênios, mobilizava os irmãos Raul e Edgard Moraes, João Santiago, Capiba e Nelson Ferreira para orientar a orquestra a criar o tempo necessário para a recuperação dos foliões com uma sequência de frevos-canção e marchas-de-bloco. Era a hora de respirar e recompor a força para a nova maratona.

A chuva caiu quando, vindo pela Avenida Marquês de Olinda, o Azulão se preparava para cruzar a ponte Maurício de Nassau e invadir a ilha de Santo Antônio para a apoteose na Avenida dos Guararapes. Muita gente buscou proteção sob as marquises, inclusive João Luiz, Miguel e Tonho. Aquele pequeno temporal parece ter sido arte do Cupido, pois, do nada, sob o mesmo abrigo, depararam as três bruxas, sorridentes e completamente ensopadas. Culpa ou não do álcool das últimas horas (jamais saberiam), concluíram ser aquelas as bruxas mais bonitas já vistas sobre a face da Terra em todos os tempos. Feronômios exaltados, prontamente, o assanhamento grassou libertino com enxerimento geral. Mal descobriram chamarem-se Glória, Márcia e Júlia, os galãs convidaram as bruxas a deixar a vastidão azul do bloco compacto e ficar ali com eles, no Recife Antigo, zanzando de bar em bar pelas ruas da Guia, Vigário Tenório e Bom Jesus, em homenagem às grandes farras, que, um dia, em passado não tão remoto, embalavam as noites da zona. E, ouvindo o hino de Vassourinhas se esvair nas águas do Capibaribe, acompanhados como queriam desde sempre, partiram para mais um carnaval.

Alguma coisa fez os casais se formarem naturalmente e, antes de chegarem ao segundo bar da longa peregrinação pelo antigo meretrício, lembrando tempos não vividos, João Luiz e Glória andavam de mãos dadas, Miguel trocava beijos com Márcia e Tonho e Júlia estavam aos amassos. Curtiam a felicidade arrebatadora dos amores de carnaval e, talvez refletindo a licenciosidade vivida e trabalhada naquele ambiente em que, por muitos anos, reinara a putaria, sonhavam os planos mais malucos para aquela noite. Embora cada um alimentasse as próprias loucuras, a julgar pela pressa, menções, insinuações e permissões, com a libido à flor da pele, as mulheres faziam jus às fantasias que usavam e pareciam prestes a explodir prazeres. A trinca exultou, pois um festim com as ninfas era tudo o que o paraíso poderia propiciar naquela noite. O céu estava ali, na frente deles, especialmente porque (no dizer deles próprios), a despeito da farra ter começado cedo, ainda havia muita energia reservada para a folia. Mas, repleta de fantasmas da vida, a noite escondia mistérios. Entregues às traquinagens do amor, do mesmo modo que não perceberam a chegada da guarda que, com uma ponta de inveja, lhes exigiu “compostura”, os machos não sentiram o passar do tempo e, muito menos, compreenderam a estranha perturbação que, de repente (depois desconfiaram ter sido à meia-noite), agitou as mulheres, alterando-lhes o humor e fazendo desaparecer a excitação. Sem maiores explicações, as bruxas cessaram beijos, desvencilharam abraços, interromperam carinhos e, como se nada estivesse acontecendo, avisaram, simplesmente, que precisavam voltar para casa. Não houve chance para ponderações. Do mesmo jeito que, do nada, tinham aparecido horas atrás, as mulheres desapareceram sem deixar rastros. Nem endereço, nem lugar de trabalho, sequer um número de telefone através do qual pudessem ser contatadas. Sem a presença de Glória, Márcia e Júlia, a noitada que prometia longa e prazerosa virou apenas uma lembrança de carnaval. Feridos nos brios de homem, a trinca ainda cogitou uma ‘caçada de fim-de-noite pela Rua da Moeda’, mas a visão dos bêbados dormitando pelos bares e das quengas sentadas no meio-fio falou mais alto. A noite tinha acabado. Não adiantava insistir. Era hora de fazer como todo o mundo e descansar para brincar o Galo.

Na manhã seguinte, logo cedo, o telefone tocou. Sem saber exatamente que dia era aquele, amargando a maior ressaca já curtida na vida, João Luiz atendeu. Era Célia, a noiva, que saía do plantão na enfermaria do hospital Barão de Lucena e, antes de seguir para o Galo, queria ‘matar as saudades’ e tomar café no Mercado da Boa Vista. Repentinamente esquecido da dor-de-cabeça, João Luiz ainda pensou dizer sim. Só, então, lembrou ter combinado com Tonho e Miguel varrer o Galo de ponta a ponta até achar as bruxas que, na véspera, os tinha enfeitiçado.

(*) Alexandre Santos é presidente do Clube de Engenharia de Pernambuco, ex presidente da União Brasileira de Escritores (UBE) e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural