Mafalda

I

-“.Mafalda, mas aonde foste tu inventar uma historia dessas? Quem te pode incutir isso nessa cabecinha? O mundo não é quadrado, tal como o planeta também não, é redondo, redondo, ouviste? Há muito tempo que essa teoria terminou, há tanto tempo, que os nossos antepassados, e os antepassados deles já o sabiam…”

Oh, mãe, tu e as tuas teorias, que desabavam, quando me olhavas e procuravas sabedoria nos meus olhos, exigindo-a, e te surgia em seu lugar a ignorância, normal de quem ainda não aprendeu, sobre os seus quinze anos de idade. Como tu mudaste após a morte súbita do paizinho, vivias então somente para a análise, para o estudo, para a faculdade aonde davas aulas de literatura procurando em cada leitura, um contacto mais próximo dele, dizias que as palavras vos uniam, e entre elas o encontravas, era pior do que loucura; e eu, com uma vontade enorme de te dizer que se o paizinho tivesse vivo, a imoralidade falaria mais alto, seria inevitável, porque é o processo da vida, ele teria chegado à idade da insatisfação, da procura, aquela ridícula idade dos quarenta que descobre que ainda só tem dezoito anos, partindo assim, ficando indeciso, fútil, quase imaturo, como todos os pais das minhas amigas, vamos lá entender os homens, isso hoje bate em todas as portas, e também iria bater à nossa, porque digam o que as tuas teorias têm a dizer, de nada servem, pois entre o coração e a razão, vence sempre a primeira, e ao contrario do que tu idealizas, elitista como sempre, o amor não dura para sempre, Shakespeare está nos livros que atravessam séculos, descreveu-o na minha opinião como ninguém, mas o próprio era a imagem que o renegava, pois indiscutivelmente percebia dos outros, e dos sonhos, mas não da sua dura realidade da indecisão.

Mãe, para ti embora não o reconhecesses o mundo era quadrado, o teu mundo era esse, do qual diariamente limavas as arestas, não para o aperfeiçoares, mas na esperança que se tornasse redondo tal como o nosso planeta.

Acordavas de manha, radiante, porque tinhas um dia cheio de leitura, de ensinamentos, de aprendizagem, de sabedoria e conhecimento, matando assim um pouco da tua saudade; mas há noite eu chorava no canto escuro do meu quarto, por te ouvir chorar, deleitada nos lençóis molhados à força do rio da tua dor, pedindo a Deus, que a tua fé te trouxesse o paizinho de volta, mas não volta mãe, quis-te dizer isso todas as noites, quis ir ter contigo, abraçar-te e dizer-te que a vida é continua, é preciso vivê-la, e não nos deixar morrer atrás de quem já foi, mas a tua dor era tão grande que impunha um muro entre nós, e eu não ia, e o pai não vinha.

Por isso mãe, não acreditava eu nas tuas palavras quando me dizias, que o planeta era redondo, porque eu seguidora fiel dos teus passos, só visionava o teu mundo quadrado, o teu planeta cheio de aresta finas, pontiagudas, impossíveis de redobrar. Não era o cabo das tormentas, mas era uma vida atormentada por uma outra vida que outrora existiu.

Os meus quinze anos passaram, metade com a alegria do amanhecer, outra metade com a tristeza da madrugada, passaram, e eu aplicava as tuas teorias, embora por vezes bárbaras e absurdas nas minhas disciplinas, ficando sempre locada aos melhores da turma, afinal a minha mãe era uma conceituada professora universitária. E assim cheguei à faculdade, à aprendizagem inicial, pois nunca existe final para a sabedoria, tal como correctamente me ensinaste, cheguei, e descobri, que o encanto do sonho, termina na dura realidade que vivemos, pois não eram os subúrbios de casa, aqui terminou o meu encanto por ti, e abriu as portas ao fascínio do mundo redondo.

Farta de cubismos e arestas aprendi que num poema, pode estar a alma, e que no mesmo, tu fazias as pazes com o paizinho, pela primeira vez, acreditei sinceramente em ti, porque neles hoje também mato a saudade das tuas palavras, e de ti!

Joana Sousa Freitas
Enviado por Joana Sousa Freitas em 11/11/2005
Código do texto: T70012