Solitário

(Ruídos estranhos na gravação...)

Quero registrar com essa voz um tanto singular e com ruídos de inteligência artística os depoimentos solitários. Tudo iniciado, sem grandes intervenções, com uma festa cheia de gente querendo ser indivíduos do futuro, mas sendo gente ainda. Festa em preto e branco. Aos anos de 2050, minha possível adolescência pediu mais do que a solidão comum. Nesta tal festa de cosmovisão duvidável , ser solitário era no mínimo o resquício da minha personalidade extra-terrestre tão insultada . Vou ganhar créditos afirmando que tudo está universalmente normal com esse seres dançantes por aqui. Não importando a cor da festa, só importando exaltação das gentes.

(Ruídos interceptados na gravação)

O calendário continua a navegar na água da privada da minha existência.

Estou rico. Estou fruindo a solidão com uma mulher e dois filhos ( os nomes vocês imaginem quaisquer de sua escolha indistinta).

Elaborei roteiros, dirigi três filmes que a crítica especializada exaltou ser o marco do futuro e do presente. O tempo está além dos meus filmes. Títulos? Você talvez pense que se eu não revelei o nome dos meus filhos e esposa, vou espalhar na gravação os títulos dos filmes?

Solitário 1, 2 e 3. A trilogia que deixou minhas noções de milionário rodando em meus fúteis depoimentos. Uma espiral materialista.

Os filmes começam em 2055. Tratei da solidão dos cães abandonados em grandes cidades tecnológicas. Cada filme é sobre uma raça de cão específica. Cão sozinho no mundo. Um mundo canino, com as cinzas de pessoas que esqueceram que não podemos traumatizar animais, eles não falam.

(Transmissão não pode ser reproduzida integralmente)

... nestes anos ainda continuo a gravar? Sim! Minha solidão me tornou um analfabeto de pessoas fúteis. Como são tantas, estou solitário e divorciado e talvez mais distante das minhas noções de solidão. Meus filhos estão sozinhos com traumas e tentando comprar a felicidade em doses animalescas. O mais velho está na terapia. Entrou em crises psicóticas, pois não encontrou a marca de leite preferida no mercado planetário. Uma crise de identidade. Eu disse a ele... disse que estamos num planeta , num sistema solar, numa galáxia, num universo que conhecemos minimamente, assim como nós somos mínimos. Ele disse que eu estava com meus certificados de paternidade inválidos. Realmente. Faz tempos e tempos que não frequento a escola de pais e talvez receba mais multas neste ano em que meus relacionamentos estão pausados e também bugados.

(Transmissão final)

Após não reconhecer as crises do meu filho mais velho, meus filmes caíram na fossa da história do cinema. Estou mais velho do que posso definir em minhas enciclopédias mais íntimas. Mais velho do que a mente do meu filho sem identidade e sem o leite de determinada marca que ele precisa.

(Transmissão final - parte 2)

Meus depoimentos não foram bem aceitos aqui na casa de repouso. Não sei por que é casa.

Não sei por que é repouso. Talvez da vida? Na verdade, da minha sólida solidão de terras desconhecidas.

(voz desconhecida na mente)

- Você perdeu o resto de sanidade por estar comigo, se é que eles sabem o que é sanidade ( altas risadas).

Vocês perceberam que ainda estou só. Mas agora tenho uma voz amiga na minha cabeça. A voz chama-se Jaime. Alguns funcionários insistem que minha realidade foi estilhaçada . Afirmam minha insanidade. Não aceito a voz das pessoas, aceito a voz do Jaime. Quem disse o que é insanidade?

E se quem definiu a insanidade, não aceitasse a amizade maís íntima de todas... amizade com uma voz interna . Sou muito inteligente para compartilhar minha solidão. Prefiro a solidão da minha loucura ( loucura segundo eles; na verdade sou mais realista do que esses corpos sem a fagulha da genialidade).

Encerro hoje com um aforismo do Jaime: " estar só é não se adaptar ao todo de indivíduos que insistem em ser singulares, sendo mais iguais do que os antepassados deles"

PS: não reproduza esse aforismo do Jaime, se não tiver coragem de conviver com suas vozes.

Fonte: Arquivo do Departamento de História da Psiquiatria e do Cinema Planetário

Fabio Garcia
Enviado por Fabio Garcia em 26/07/2020
Reeditado em 09/08/2020
Código do texto: T7017358
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