Uma Outra chance para a vida

“De tudo a nada! E tudo por minha inteira responsabilidade. Se é assim, de que adianta continuar vivendo?”. Eram esses os pensamentos de Carlos enquanto segurava numa das mãos uma caixa de comprimidos para dormir e na outra um copo de whisky. Estava desgostoso da vida. Caíra em depressão após o término de seu relacionamento de cerca de duas décadas. Meses já haviam se passado e ele ainda não se acostumara com a nova situação. Ele tinha consciência de que fora, se não o único culpado, o maior responsável por tudo o que estava passando. Seu conhecimento e prática nos trabalhos espirituais pareciam não lhe dar o sustento suficiente para suportar as coisas e por vezes perdia a fé. Não entendera os sinais que a vida lhe foi dando no decorrer dos últimos anos, ou os entendera de maneira equivocada. Na verdade, ele não acreditara que o rompimento fosse de fato acontecer. Mas aconteceu e, embora não estivesse desprevenido, sentiu por demais.

Levou os remédios à boca, todos de uma vez e tomou o copo de whisky. Em menos dez minutos estava apagado. Desmaiou. Acordou, não se sabe quanto tempo depois, deitado, largado em um lugar que mais lembrava um pântano fétido. Estava de bruços, com o rosto na lama, levantando-se (ou tentando), quando sentiu um pé em suas costas, afundando-o mais ainda. E ouviu uma voz potente e firme a dizer-lhe:

– Covarde! Nem para tirar a própria vida serviste. Até o errado, quando feito, precisa ser bem feito. Covarde. Se quisesses mesmo matar-te, terias tentado de outra forma.

O dono daquela voz, tirou o pé de suas costas, agarrou-o pelo pescoço e o ergueu como se ergue um boneco para, em seguida, jogar-lhe inerte, quase, em um raro pedaço de terra firme. Virou-se e pôde ver a figura que o atormentava. Era um sujeito alto, de porte imponente, vestia-se todo de preto, tinha uma espada na cintura e um grande tridente na mão. Além disso, trajava uma capa preta por fora e vermelha por dentro e uma cartola imponente sobre a cabeça. À medida que a capa balançava ao vento que soprava naquele lugar, Carlos podia perceber que estava com vários símbolos gravados em vermelho.

Quando pode fixar melhor o olhar, aquele ser o estava encarando de forma firme e assustadora, a ponto de parecer penetrar-lhe a alma. E falou de novo:

– É para cá que quer vir com seu ato de covardia? Olhe quanto sofrimento ao teu redor? Foi para isso que recebeste o presente da Vida do nosso Pai Maior?

Estupefato, sem reação e com aqueles olhos a lhe fuzilar o mais profundo íntimo da alma, Carlos só conseguiu perguntar:

– Eu morri e já estou nos arredores do inferno? – mas olhou em volta e viu incontáveis pessoas em situação tão ou mais deprimente que a dele. Chamar o que via de sub humano era até demais. Na realidade estava muito abaixo dessa condição. A figura que lhe olhava, deu uma estrondosa gargalhada e respondeu:

– Não! Tu não morreste e isso aqui é o paraíso perto do inferno. Mas eu te levarei até lá. Vim com essa missão. Te mostrar o inferno dos que atentam contra a própria vida. Vocês fazem as besteiras de vocês e depois nós é que temos de vir resgatá-los.

– Quem é você? – perguntou com voz insegura o debilitado Carlos.

– Não te interessa saber quem sou. Contente-se em saber que sou apenas um dos guardiões da Lei. Aos que cometem o hediondo crime que tentaste cometer não é dado o direito de saber de certas coisas. Agora vamos porque meu tempo é curto e tua lição é muito grande.

O guardião envolveu Carlos com uma redoma energética e, como num passe de mágica, foram parar em um lugar muito mais denso e frio do que aquele em que estavam. Não havia fogo ou ranger de dentes, mas por outro lado, o desespero mental em que se encontravam os seres dali era terrível. Todos ali eram cobrados pelas próprias consciências em virtude do vilipêndio que cometeram contra si próprio. E alguns eram acompanhados por algozes que lhes sugavam as reservas vitais. E tudo estava dentro da Lei.

Tudo aquilo foi causando uma imensa angústia em Carlos, que sentia todas as terminações nervosas agitarem-se. O guardião percebeu, deu-lhe uma pequena energizada, porém, naquele momento nada mais podia fazer. Então, levou seu tutelado até um grupo especial de seres, em sua maioria mulheres e explicou que todos aqueles seres haviam cometido suicídio em decorrência de atitudes que Carlos tivera em outras existências. Agora, agindo dentro da Lei, eles tentavam fazer com que Carlos pagasse da mesma forma.

O guardião colocou uma tela mental na frente de Carlos e ele pôde ver aqueles espíritos junto com ele em algumas existências anteriores. Foram pessoas traídas, abandonadas, entregues à própria sorte. Inclusive algumas mulheres grávidas cujos bebês também não resistiram. Havia também alguns amigos que foram enganados com falsas promessas e tiveram seus bens e suas companheiras usurpados por ele. Um espírito feminino em especial chamou a atenção de Carlos, pois não tirava os olhos de sua direção. Através daquele olhar, Carlos conseguiu sentir uma dor e angústia indescritíveis.

O guardião explicou a Carlos que aquela mulher fora a esposa, na encarnação imediatamente anterior, a quem Carlos fizera juras de amor eterno e a quem traíra inúmeras vezes. Sentindo-se desprezada e abandonada, jogou-se de um penhasco.

Na atual existência, Carlos tivera a oportunidade de quitar alguns de seus débitos cármicos na área dos relacionamentos, da afetividade e da sexualidade. Todavia, não resistira às tentações e caíra mais uma vez no mesmo erro. Arrependido e consciente de que nada que fizesse resultaria na recuperação do amor perdido, Carlos tentara matar-se tomando diversos comprimidos para dormir junto com bebida alcoólica.

Estava na verdade tentando fugir da realidade da pior maneira possível. Não suportando o que via, caiu prostrado de joelhos no chão e começou a chorar convulsivamente. Pediu perdão a todos que um dia magoara, ferira e provocara o suicídio. Ele era corresponsável por todos aqueles sofrimentos. Entendera o porquê, ao menos em parte, do que vivenciara até o presente momento na atual encarnação. Não podia reclamar, pois era a Lei do Retorno em plena atividade. Ninguém escapa dela. Era preciso viver e deixar viver, mas como era difícil o desapego.

O guardião sentiu que o que externava ali era verdadeiro. Os sentimentos afloravam através das lágrimas. Então, foram envoltos por uma luz azul clara e apenas o guardião ouviu:

– Gratidão por teus serviços, guardião. Venceste mais uma etapa em tua evolução. Podes retornar a teus domínios.

O guardião curvou-se em sinal de respeito a uma energia e autoridade muito acima dele e foi embora. Carlos viu-se só diante de um fluxo de energia azul que o havia levado para outro lugar, muito mais ameno, e ouviu uma voz, agora suave e firme:

– Filho, precisas ser forte. Tua missão ainda está apenas no começo. Não podes fraquejar a todo instante e nem cometer os mesmos erros sempre. Não podes querer que te façam sempre as vontades. Não és senhor de nada nem ninguém, apenas de tua própria vida. Se erraste, filho, e erraste mesmo, tens de suportar as consequências e buscar teus próprios caminhos para a felicidade. As almas trilham caminhos que se encontram, desencontram e se reencontram, filho. Este é o eterno ciclo da vida e suas fases. Teu caminhar ainda terá alguns espinhos e também flores, mas agora vai, porque te foi concedida mais uma chance.

Carlos sentiu uma leve brisa no rosto e, de repente, viu-se dentro de uma ambulância. Abriu lenta e sofregamente os olhos e pôde reconhecer Maria Eduarda, uma amiga dos últimos tempos. Ela achara Carlos caído no chão de seu quarto e chamara por socorro médico. Ele ficou cerca de dez dias internado a fim de que se recuperasse por completo. Durante todo o período de internação, Maria Eduarda ia vê-lo praticamente todos os dias.

Quando saiu do hospital, Carlos procurou ajuda terapêutica e dedicou-se de corpo e alma aos trabalhos de caridade espiritual. Não se casou novamente, mas viveu muitos anos ao lado de Maria Eduarda, companheira a quem soube retribuir toda a dedicação, carinho, amor, compreensão e fidelidade. Quanto ao grande amor da sua vida, nunca mais voltou e o tempo também não conseguiu apagá-lo da memória. No entanto, soube deixá-lo no lugar certo: o passado.

Desencarnou cerca de quatro décadas após esse fato ocorrido e ao chegar do outro lado da vida, deparou-se com o mesmo guardião, agora muito mais receptivo:

– Bem-vindo, camarada! Tu chegas e eu me preparo para voltar. Daqui um tempo tu é que me guiarás no plano terreno. Vamos cuidar agora de recompor essa tua energia. É hora de descansar e se preparar para uma nova aprendizagem.

Abraçaram-se e seguiram!

Cícero – 27-07-2020

Cícero Carlos Lopes
Enviado por Cícero Carlos Lopes em 27/07/2020
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