O pai de minha mãe

O pai da minha mãe era um homem especial. Pelo menos é o que imagino. Quando me dei conta da existência do meu avô, ele já era, há muito anos – muitos mesmo – prisioneiro de seu próprio corpo, dominado pela doença de Parskinson. Naquela época não devia existir remédio para aliviar os efeitos visíveis da doença, os tremores e a falta de controle dos membros do corpo. Então ele tremia muito, babava, tombava o corpo para um dos lados, não falava, olhava e não via. Era tratado com carinho pelo seu Miguel, que, por sua vez, era tratado com carinho por todos nós. A casa de meu avô e de minha avó era um sobrado imponente na praça principal de sua cidade. Todos os netos frequentavam o casarão. Era o ponto de encontro dos primos adolescentes, o refúgio para as conversas impróprias, os segredos mais íntimos. Além disso, o casarão tinha uma pequena sacada de onde contemplávamos o movimento da praça, que, naquela época, era onde tudo acontecia. Minha avó também tinha uma enfermeira, cujo cabelo ia até a cintura, e que eu adorava pentear. Imagino que era porque meu cabelo era curto e crespo e eu o queria longo e liso, é claro. Meu avô assistia a todo o movimento em completo silêncio. Na nossa inocência, acreditávamos que ele não devia sentir nada, ouvir nada, importar-se com nada. Talvez se alegrasse internamente por lhe entretermos, não sei, mas além do beijo de bença-vô que ganhava de cada um de nós, pouco mais lhe era dedicado.

Não me lembro de ter consciência da história de vida do meu avô àquela época. Eu era criança. Foi muito depois de ele morrer que eu soube da sua trajetória como um homem cheio de vida, energia, dinheiro e poder - além de beleza, pois foi um homem muito bonito quando jovem. Meu avô era filho de imigrantes italianos e nasceu aqui no Brasil, numa cidade que devia ter poucos milhares de habitantes. Desconheço como foi sua infância, mas sei que se casou com a filha de outros imigrantes, provavelmente num daqueles arranjos familiares muito comuns na época. Meu avô era um homem inteligente e esperto para os negócios. Herdou um armazém que foi durante muito tempo o maior e melhor da cidade, embora isso possa significar um estabelecimento modesto de duas portas, onde se vendia arroz, feijão e café a granel. Numa região de pequenos agricultores, onde nasceriam grandes usinas de açúcar mais tarde, e para onde viriam os bancos ainda tempos depois, eram esses pequenos comerciantes que lidavam com dinheiro vivo. Assim meu avô logo se tornou uma espécie de banqueiro, segundo contava minha mãe. Emprestava dinheiro aos seus fregueses, os mesmos que lhe pagavam ao final do mês, após diárias marcas numa caderneta amarelada ou mesmo em folhas de papel de embrulhar pão. Se era bem-quisto, invejado ou odiado, não sei. Era respeitado. Se cobrava juros altos, também não sei. Enriqueceu. Foi fazendeiro e quase usineiro. Tudo isso antes dos 40 anos, pois tinha essa idade quando adoeceu.

Os filhos que teve criaram os seus próprios à sombra daquilo que ele produziu, mas não souberam multiplicar, apenas dividir. Assim, hoje nada mais existe dos bens do meu avô na família, com exceção do casarão na praça, que meu irmão fez questão de adquirir e ali viver, contemplando a praça até a sua própria morte.

Meu irmão viveu tanto quanto meu avô. Viveu fazendo e contando a história da cidade, como jornalista. Sabia da importância do casarão e do papel do avô nessa história. Sua insistência em manter a casa de meu avô na família fez com que ele vivesse solitariamente seus últimos anos ali. Por alguma razão, meu irmão não ocupava o quarto do meu avô. Por alguma razão, numa casa tão grande, meu irmão optou por construir um novo quarto, anexo à copa, onde passaria seus últimos dias. Hoje um outro descendente do meu avô, doente e solitário, habita o casarão e eu me pergunto até quando veremos a história se repetir.

Imune à ação perversa do tempo, o casarão permanece imponente na praça, sob os olhos de tanta gente que sequer imagina quanta história se esconde naquelas paredes, história que é da minha família, mas também é da cidade. Ricas histórias, guarda o casarão. Meu profundo agradecimento ao meu irmão que guardou o casarão. Não sei se meu irmão conviveu com meu avô são, mas certamente este marcou a sua vida. Quem sabe meu avô lhe pediu para cuidar do casarão. Quem sabe ele o queria apenas para contemplar a praça. Não importa. Meu avô merecia. Meu avô era um homem especial.

Para Fioravante

(13 Janeiro 2015)

Anelê Volpe
Enviado por Anelê Volpe em 29/07/2020
Reeditado em 30/07/2020
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