Última palavra: inhame

Morta. Pelo menos umas três vezes de ontem pra hoje. Enfurnada na emergência cardiológica onde o plantão é no mínimo, bem longo. Não é a minha ala favorita, mas pelo menos é setor fechado e não temos pacientes amontoados pelos corredores.

Mizael já agonizava desde às sete da manhã, quando assumi o prontuário e seu acompanhamento clínico. O garoto vinha da Mata do Rolo, dezessete anos, baixa estatura e um coração que não dava conta do corpo que tinha. Estava acompanhado pelo pai, João Emílio, que há quarenta dias não voltava pra casa por conta da crise do filho.

João Emílio capinava cana de açúcar e na baixa estação, mandava Mizael pra São Luiz do Quitunde. Ele ficava sob os cuidados da tia, enquanto João fazia um bico na fábrica de queijo. A assistente social concordou que as refeições de João fossem feitas na própria enfermaria, já que Mizael piorava quando se via sem ele por perto.

Quando o paciente está grave é comum usar uma máscara pra auxiliar a sua respiração. A de Mizael praticamente cobria seu rosto inteiro. Balbuciava qualquer coisa enquanto segurava a mão do pai. João aproximava o ouvido pra entendê-lo, mas a fraqueza era tanta que na segunda vez o menino desmaiou. Corre médico, enfermeiro, auxiliar, tira a máscara, mede pulso, traz o oxímetro, desfibrilador, chama o maqueiro urgente, pois parece que o menino precisa ser entubado.

Os outros pacientes permaneciam em silêncio, como que em respeito àquela agonia. João, no pé da cama, suou de desespero até o momento em que estabilizaram o filho . Ninguém da família aparecia pra dividir as horas com ele. No prontuário só constava informação sobre pai e mãe. João adotou a cadeira do lado do leito. Fez dela raiz.

O setor fechado não deixa a gente ver se é dia ou noite, mas aquele pai não dormia e amor também se prova com esse nível de vigilância. Só largava a mão do menino na hora da medicação.

A equipe, apesar de cuidar de todos com esmero, não tinha muita esperança sobre o caso e pra nós, era questão de horas. A madrugada seguia tranquila e era possível ouvir a oscilação das máquinas de monitoramento e o cansaço de João cada vez que ele estirava as pernas como se quisesse fazer o corpo desistir do sono.

Eu, dois enfermeiros, a médica e a farmacêutica, revezávamos o intervalo, rezando pra que o plantão terminasse logo. Eu, rezando com mais força, já que meu plantão seria de trinta e seis horas.

“Seu João, quer um cafezinho?”, perguntei. Ele aceitou com constrangimento como se não merecesse, mas aproveitei a paz dos minutos pra distraí-lo um pouco. “Tá com saudade de casa, seu João? Tá aqui há muitos dias, não é?”. “Tem nada em casa não, dotôra. Sinto falta do cuscuz, que aqui não tem, mas se eu tivesse em casa, ia querer tá aqui com o Miza. Desde novo que é doente. A mãe não quis saber dele”.

Ouvi por alto a história dos dois. Nasceram gêmeos, Mizael e Miguel. A mãe usou drogas por um bom tempo, tentou abortar não deu certo, trinta anos mais nova que João Emílio. Miguel, natimorto. Na enfermaria, a gente acaba sabendo mesmo sem querer. Ainda assim, eu conversava pra que pelo menos aquele café fosse só dele.. “Mas o senhor tem outros filhos? Tem quem lhe ajude com Mizael?”. “Tenho idade de avô, dotôra.” O menino ocupou meu tempo e meu sossego. Só peço a nossa sinhora a saúde dele, pra eu pisar de novo na roça antes que o sol seque tudo”.

Mais uns dez minutos e o apito do monitor fez a equipe correr novamente. Mizael contraia os braços e a barriga ascítica, travava o pulmão. Estava ofegante ao ponto de embaçar a máscara. O pescoço enrijecido sacudia a cabeça pra trás. João atravessou-se na frente da enfermeira, segurou a mão do filho com força. Eram quatro pessoas contendo a crise respiratória. Oxímetro, injetável, soro, a respiração fazia a barriga pulsar e isso servia como medidor de vida pra quem não entendia o que estava acontecendo.

Enquanto a equipe trabalhava, João ordenava como pai: “tem calma, fio”; “tem calma”. A médica chamou João no canto: “estamos fazendo o possível, mas o prognóstico é reservado.” João só entendeu que a noite estava doída demais.

Seis da manhã começa a troca de plantão. Minha vigésima terceira hora de trabalho. Eu deveria escrever um relatório sinalizando as intercorrências da noite, algumas menos complicadas e a de Mizael. Minha vontade era deixar tudo sobre a mesa e sair. Porém, teria mais doze horas pela frente, eu e a equipe que chegaria às sete.

A copeira fez barulho ao arrastar o carinho com as bandejas. O cheiro de papa me deu enjoo, um misto de cansaço e desesperança. Distribuiu o desjejum leito por leito, alguns estavam em dieta zero (como Mizael). João continuava sentado na cadeira, vigilante, mas visivelmente esgotado.

“Banana cozida ou inhame, senhor?”. João riscava a bandeja separando em partes diferentes o inhame e os ovos mexidos. “Me dá inhame, pai”. Mizael falava por dentro da máscara, o que fazia aumentar a frequência cardíaca no monitor. “Pode não, Miza”. O pai engolia sem sentir o gosto. A angústia tira o gosto das coisas.

Uma auxiliar de enfermagem trabalhava também como cuidadora. A equipe se dispôs a fazer uma cota pra que ela ficasse exclusivamente com Mizael, quando não fosse plantão da sua escala, pra que João pudesse ir em casa, tomar um banho, dormir um pouco. “Ele só tem eu no mundo, diga a moça que carece não, dotôra”.

“Inhame”. Foi a palavra que entendi na hora em que o monitor disparou. Mizael puxou o ar, arregalou os olhos, convulsionou. João afastou-se com bandeja e tudo, mas não ao ponto de perder o filho de vista. “Fecha, fecha!”, o auxiliar fechava a cortina às pressas pra isolar o leito e evitar que os demais pacientes ficassem agitados vendo os procedimentos de emergência. Do lado de fora, João permanecia sentado e alisava o peito. Do lado de fora, ouvia um resto da voz de Mizael “inhame, pai”, “bora, pai”, “...ha-me, pa...”

João soltou um grito agudo. O susto gerou uma comoção entre pacientes e acompanhantes. Luzes, fios, monitores. Abriram a cortina ainda enquanto tentavam ressuscitar Mizael. João, por sua vez, caído da própria altura, estava esticado no chão. Massagem cardíaca, pulso, respiração. Já não respondia aos sinais vitais. A médica atestava o óbito: oito horas e quarenta e dois minutos. Infarto fulminante.

“Doutora! Doutora!”, a enfermeira segurava o ombro de Mizael enquanto o monitor se arrastava até estabilizar por completo. Oito e cinquenta e sete: Mizael com a máscara de oxigênio, visando o teto, não buscou a cadeira onde João sentava; lento por sedação, estirava a mão buscando novamente a presença do pai.

Lis F Nogueira
Enviado por Lis F Nogueira em 04/08/2020
Reeditado em 04/08/2020
Código do texto: T7026408
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