Santianna

Passei a semana inteira subindo e descendo a ladeira do morro por Madalena. Estudava pela manhã e era só chegar em casa, pra mãe chamar o tempo todo: “Santianna, traga água!” “Santianna , vá na Deusa buscar a tinta de cabelo”. “Santianna, vá comprar verdura e diga a seu Dino que anote." Fazia tudo rápido pra sobrar tempo pro dever de casa. Eu gostava da escola. Só não gostava da Dora.

À tarde, a mãe passava o café enquanto Madalena andava pela sala de salto alto pra frente e pra trás como via na TV. Falava com o chinelo e imitava um monte de gente. Queria ser atriz.

Madalena era bonita, tinha olho verde, sabia cantar. Era boa comigo, mas às vezes, não. Eu com dez anos e ela, quinze. Só ela podia descer as escadas quintas à noite. A mãe não me deixava sair do quarto. Dizia que era coisa de adulto. Isso me dava muita raiva.

Eu ouvia aquelas vozes estranhas, barulho de prato, de cadeira arrastando e ficava tão cansada de me imaginar chegando na festa com a saia verde que tio Jorge deu a Madalena e todo mundo me aplaudindo porque eu estava linda como a mãe, que ali mesmo adormecia. Acordava com o sol esquentando meu braço. Descia atrás de brigadeiro ou bolo, mas nunca tinha nada pra mim.

No sábado teve pagode na Dona Mercia. O tio mandou a mãe me levar. Madalena me olhou feio. Eu nem queria ir mas a mãe fazia os gostos dele. Uma vez o tio trouxe um tênis pra Madalena, um relógio pra mãe e uma boneca pra mim. Era coisa cara, lá do Centro. Tio Jorge podia comprar no Centro.

Eu ouvi uma vez na venda que ele tinha duas filhas. Nesse dia, dona Mercia se benzeu me olhando. “Tomara que essa não puxe à mãe”, virou a cara e saiu. Mas lá no pagode me deu coxinha e guaraná. Ela era boa comigo, mas às vezes não.

Eu nem gostava de pagode, gostava de funk. Só queria ir pra casa. Madalena rodopiava na frente do tio Jorge. Todo mundo aplaudia só porque ela usava a saia verde. Não fosse isso, eu dançava melhor que ela. A mãe fritava pastel naquele calor. Tio Jorge voltou com a gente pra casa. Mãe fez suco e mandou Madalena comprar pão. Tio Jorge disse que ia junto mas quando eu pedi pra ir, ele mudou de ideia. Pegou o celular e pediu pizza.

Tio Jorge podia comprar pizza. Ele era bom comigo, às vezes não. Como na vez que eu dei uma surra na Dora porque ela perguntou se eu era filha de rapariga. Falei que era filha da Cida e parti pra cima dela enquanto as outras riam de mim. Voltei da escola toda rasgada e a diretora mandou chamar a mãe.

O tio Jorge passou uma semana sem ir lá em casa. Mãe ficou nervosa. Me pôs de castigo, me trancou duas vezes. Só falou comigo direito quando o tio apareceu. Depois Madalena me disse que Dora era filha dele, mas se eu abrisse a boca ela me matava.

Madalena não era minha irmã de verdade. E a mãe dizia pra eu não confiar em ninguém. Cida também não era minha mãe de verdade. Vez ou outra fala que nem o diabo me quis, aí fiquei na porta dela.

Na quarta, cheguei cansada da escola porque depois da aula, mãe me mandou entregar um pacote na rua de cima. Ninguém podia ver o bagulho. Escondi na frente do umbigo pra não perder. Na subida, o chinelo me deu duas bolhas no pé, mesmo assim fui depressa porque tinha medo do Léo Bituca.

Madalena nunca ia entregar pacote pra não queimar a cara no sol. Tio Jorge brigava e dizia que ela ficava mais bonita sem pegar sol. Fiz a entrega e voltei correndo. Uma bolha estourou. A outra sangrou. Cheguei em casa sem consegui falar direito, mãe pegou o dinheiro e me mandou pro quarto. Cochilei.

Acordei já escuro, com dor de cabeça. Chamei a mãe, ninguém respondeu. Madalena não estava na cama. Fui até a cozinha me apoiando nas paredes pra não vomitar no chão, porque eu não queria limpar nada. Quando acendi a luz, vi o tio Jorge sacudir Madalena, que voou como uma rã, mas caiu de pé. Não sei o que ela tava fazendo no colo dele mas depois disso, só lembro que vomitei e tudo apagou de vez.

Fiquei em casa no outro dia. Mãe trouxe biscoito, escovou meu cabelo, mandou Madalena comprar verdura, limpar a casa, e ela toda calada. À noite, fui pro quarto porque a festa já tinha começado. Sentei no chão pra fazer o dever e larguei tudo quando vi a saia verde embaixo da cama. Calcei a sandália de Madalena e corri pro espelho. Andei pra frente e pra trás como via na TV.

Eu também tenho olhos verdes. Procurei no gavetão a caixa de esmalte pra usar um roxo. Mãe nunca ia saber. Foi bem na hora que alguém destrancou a porta. Tremi de susto. Derrubei os esmaltes no chão. Vi que a luz do corredor tava acesa. Fui bem devagar e pus a cara na porta. Era Madalena. Ela sentada no primeiro degrau da escada. Fui bem na ponta dos pés e quando cheguei perto, vi que ela tinha a cara borrada de choro.

Da escada dava pra ouvir um barulho grande na sala, gargalhadas, cheiro forte de menta. Quando me viu com a roupa dela, sorriu sem vontade. Pensei que ela ia me bater, mas levantou calma, beijou meu rosto e disse que a mãe tava me chamando lá embaixo. Desci dois degraus, depois mais dois. Vi a mãe. Olhei pra trás. Madalena me aplaudia.

Lis F Nogueira
Enviado por Lis F Nogueira em 11/08/2020
Código do texto: T7032908
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