O Anti-Romântico

Numa noite qualquer, daquelas que inquietam o espírito, estava a vagar pelas mais escuras ruas que a melancolia é capaz de arquitetar. Seguia inerte a tudo, quando de súbito surge uma locomotiva que estaciona ao meu lado, de repente surge na janela o maquinista, se tratava de Marco Polo.

- Você vem? - Perguntou-me.

Não respondi, mas entrei como quem não tem nada a perder. A locomotiva partiu, e a medida que a mesma se locomovia retrocediam os séculos. Viajava para o passado.

Ao entrar na cabine sentei ao lado de um jovem. Após irrelevantes cordialidades fui atiçado pela curiosidade e perguntei:

-Para onde viaja?

- Para a Idade Média, busco a honra,o amor, os valores hoje perdidos. Hoje tudo é técnica, tudo é progresso, tudo é produto.

Pobre escritor romântico, basta uma garrafa de whisky e uma ideia fixa para loar o passado. Não sabes que o medievo é feito de traições, pestes e guerra? Não sabes que há sempre algo podre nos reinos, tal como na Dinamarca?

A locomotiva seguiu, passados rapidamente alguns séculos, ocorreu que um outro homem entrou na cabine, carregando uma tela em branco e uma bolsa em que carregava tintas.

-Para onde vai?- Perguntei com a mesma curiosidade latente.

-Para o apogeu da civilização, a Antiguidade Clássica! O tempo das grandes discussões na Ágora e das incontáveis pesquisas da Biblioteca de Alexandria, o tempo da razão, do homem, como um fim em si mesmo.

Ingênuo renascentista, ai de tu se soubesses que é o homem, se soubesses que não há nada como a arbitrariedade que reside nas "verdades universais", se refugias na mesma Antiguidade que tem as mãos sujas do sangue de Sócrates.

A viagem continuou, pude ver pela janela uma mulher ruiva montada num cavalo, guiando um grande exército, vi camponeses fugindo para as cidades, o que será que o destino lhes reserva?

Após dois séculos de viagem, entrou um cavaleiro, tinha uma cruz desenhada em sua armadura.

-Para onde vai?- Perguntei, como de costume.

-Para a Terra Santa em tempos de glória, para o grandioso Templo de Salomão.

Miserável Cruzado, se ouvisse os ensinamentos do Rei Sábio, murmurando a consciência de que tudo é em vão, talvez não tivesse matado tantos, talvez não tivesse incorporado o segundo cavaleiro apocalíptico.

Outro homem entra na cabine se ajuntando a comitiva, usava uma coroa e vestimentas reais. Mais uma fez faço o imprescindível questionamento:

-Vossa majestade, porque viajas ao passado?

-Volto ao Império Romano, pois ei de restaurá-lo em toda sua glória.

Pudera, Carlos Magno. Mas se soubesses que os impérios são ornamentados em jactância? Aquela mesma, que assassinou Cesar e que dividirá também seu império.

Eras e eras se passavam e outros passageiros entravam e saiam, sempre fugindo do presente, mas o passado nunca era como nos ideais. Até que cheguei ao fim da linha, isto é, o início. Estava sozinho. Tal como um poeta, a realidade plausível caiu de repente em cima de mim: Não há nada de sublime na história humana. Há de se ter piedade daqueles, que por nostalgia, se apegam ao passado, se entregam ao passado e esquecem a vida. Mas há de se ter ainda mais piedade de mim, que fugi ao passado sem expectativa de futuro, agora sigo pro futuro desconsolado de passado, nada me restou além de vaidade.Talvez resida em mim a loucura, de dançar, em plenitude de consciência, uma Mazurka com a contingência e o cinismo.

Ao descer da locomotiva colei um velho aviso na porta da cabine: Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate!