Entrevero no sul do continente

Dedicado a Sebastião, mestre dos operadores.

Deitado em sua cama no alojamento, com as mãos atrás do pescoço, soltava densas baforadas de cigarro em direção ao teto. Quem entrasse no quarto naquele instante, não conseguiria imaginar todas as imagens que assistia, de olhos fechados, produzidas pelas memórias da infância. Tão vivas que chegava a sentir os pés e as mãos geladas, enquanto caminhava de madrugada em companhia do irmão, entre um buraco e outro, encarregados de manterem acesas as fogueiras dentro destes para que a fumaça protegesse os pés de maçãs das intensas geadas durante os invernos lageanos. Na lida do campo, os dias pareciam todos iguais, o trabalho contínuo transformava-os em um quadro de uma só cor. Mas, dentro de si, um comichão, uma angustiosa força, dessas que acometem desbravadores e aventureiros, praticamente o obrigou a deixar aquele lugar há quase dez anos. Estava agora com vinte e dois e, dali a instantes, embarcaria, pela primeira vez, em uma viajem para outro país. Era seu prêmio, o presente que se deu para celebrar o encerramento de uma grande obra do governo na qual trabalhara por meses. Se sentia orgulhoso. Só Deus sabia os desafios que enfrentara naqueles anos longe de casa! Olhou o relógio. Faltavam ainda alguns minutos para a partida. Não iria sozinho, a muito custo convencera seu colega de quarto, um rapaz calado e trabalhador, cristão fervoroso, extremamente crente, até demais, achava. Desde o início se entenderam, talvez por serem parecidos, reservados e de pouca prosa. Este, a princípio, não gostou da ideia, achou-a excessivamente cara. Percebendo que não cederia, desferiu um daqueles argumentos capaz de arrastar um boi, “Deixa eu te falar uma coisa, trabalhamos como ninguém construindo essas casas, fizemos umas dez mil horas extras, sei lá! Missão cumprida! Se tu continuar desse jeito, nunca vai ter uma história de verdade para contar para os teus Piás! E, quando tu estiver bem velho, assentado na varanda da sua casa, vai ficar pensando assim, por que não fui naquela excursão? Perdi a única chance que tive na vida de conhecer a Argentina!” Bastou! O outro apenas meneou a cabeça concordando. E lá se foram. O dia clareava quando o ônibus entrou na avenida principal de Buenos Aires. Andaram por tudo quanto há! Encantaram-se com o Bairro La Boca e passearam, como dois meninos, por todo El Caminito. Quase choraram ao ouvirem um bandoneonista executar “Por una cabeza”, um dos tangos mais famosos, imortalizado na voz de Carlos Gardel e que, uma década depois, se transformaria em trilha do filme “Perfume de mulher”, estrelado por Al Pacino. Acharam uma esquisitice quando o guia disse que visitariam um cemitério. Entretanto, ficaram boquiabertos com as esculturas de mármore nos mausoléus das famílias nobres! La recoleta. Nunca mais esqueceriam aquele nome. Deliciaram-se com as empanadas e se espantaram com a grossura do bife de picanha servido em uma tradicional parrilla na região central. Encerrada a excursão, resolveram ficar mais alguns dias naquela cidade que tanto os impressionara. Além do mais, estavam de férias e dinheiro não lhes faltava. Mas, em uma tarde que perambulavam despreocupadamente, algo os incomodou. Em frente à Casa Rosada, sede do governo, começaram a desconfiar que nem tudo eram cores no país de Evita. Um grupo de mulheres com lenços brancos na cabeça, segurando fotos e cartazes, gritava em direção ao prédio. Eram as mães da Praça de Maio, como viriam a saber depois através do recepcionista do hotel que lhes explicou, em legítimo portunhol, que protestavam devido ao desaparecimento dos filhos, sequestrados por se oporem ao regime ditatorial vigente no país desde 1976. Não dormiram tão bem aquela noite, talvez pressentissem o que estaria por vir, foram despertados pelo barulho de gritos e foguetes, o país decretara guerra contra a Inglaterra pela posse das Ilhas Malvinas. Todas as fronteiras foram fechadas. Estavam presos. Após choro, cigarros e orações, conseguiram se acalmar o suficiente para raciocinarem, devia haver uma maneira de voltarem para o Brasil. Desceu sozinho para o saguão do hotel, seu companheiro só interromperia o diálogo com a divindade quando lhe fornecessem uma pista para a salvação! Mas ela apareceu personificada ao que rezara apenas algumas ave-marias. Encontrou a camareira no corredor. Sabia que eram brasileiros e que, obviamente, fariam qualquer coisa para escaparem de todo aquele caos que não lhes pertencia. Perseguido pelos militares, o irmão fugira com a ajuda de pescadores que o transportaram para a outra margem do rio da prata, em solo uruguaio. Não pensou duas vezes, telefonou para o número que esta lhe dera. Combinaram local e hora do embarque. Foram com a roupa do corpo, deixaram para trás toda a bagagem no hotel e quase todo dinheiro com o barqueiro, que pareceu se valer, ao revelar o preço do serviço, da já acirrada rivalidade futebolística entre os dois países. As águas estavam tranquilas, mas seus batimentos só desacelerariam quando pisassem em território uruguaio. Ao mirarem o reflexo da lua sobre a superfície, divagaram se era esse o porquê do nome do rio. O cheiro de diesel preenchia suas narinas e o som do motor do barco era a música de fundo, não teriam apenas uma história para contar, faziam parte da própria história, aquela que seria ensinada nos livros dos filhos que ainda não conheciam.

Ps. influenciada pela desastrosa participação na guerra, a Argentina conseguiu restabelecer sua democracia em 1983.

A mães da Praça de Maio ainda lutam por justiça e pela preservação da memória dos seus e de todos os filhos torturados e assassinados pelas ditaduras latino americanas.

Humberto Brusadelli
Enviado por Humberto Brusadelli em 22/08/2020
Reeditado em 10/09/2020
Código do texto: T7043650
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