NARRATIVA SEM FIM   

 
    Ele era um garoto. Ele era muitas outras coisas e saberia disso depois. Ele é nosso herói sem nome, sem feitos, sem asas. Ele é tudo e nada, som e fúria, tempestade e bonança, literatura e melancolia, mel e sangue. Em 2005, ele era uma criança como qualquer outra, com sonhos, brinquedos e um mundo imaginativo. No seu aniversário de 9 anos, ele em meio aos convidados da rua e festejos, chegou na janela do fundo da casa e olhou para as estrelas. Ele desejou ter aquela sensação de preenchimento e exaltação para sempre. No mesmo ano, ele conheceu pela primeira a face da contradição.
           O tio de ele estava na cidade. Era querido por todos, principalmente por ele. Não sei. Penso que os dois tinha um encantamento muito comum entre gerações diferentes. Um velho e um jovem, algo bastante romantizado pela indústria cultural brasileira. Ele e seu tio “Dondoga” tinha uma relação de amizade que agradava a todos. Eles ficam sempre juntos, conversando e contando besteiras que somente ambos entendiam. Ele e Dondoga tinha um rito incomum, colocavam duas cadeiras bem na frente da casa e ficavam sentados olhando as pessoas passarem: conhecidas e desconhecidas. Ele e seu tio era um barato. Eram.
        Um dia. Só um dia, ele enquanto garoto de 9 anos em 2005 estava deitado na cama de sua avó, irmã de seu tio Dondoga. Ele tinha acordado cedo e estava tentando voltar a dormir. Não tem aquela famosa cena da trilogia do Homem Aranha em que o herói é beijado pela protagonista, Mary Jane, de forma invertida onde o (Aranha) estava de cabeça para baixo pendurado pela teia? Ele foi beijado pela primeira vez de cabeça para baixo por seu tio Dondoga. Beijo na boca. Três vezes. Ele não entendeu a primeira, nem a segunda, tampouco a terceira vez. Beijos que matam, beijos nojentos. Seu tio ria, repetia, gostava. Ele ficou paralisado, não era bonito, não era cinema, era alguma coisa que estava além de sua compreensão pueril.
          Ele contou para sua mãe. Ele chorou. Se sentiu mal e queria ajuda. A mãe de ele não queria escândalos, visto que se preocupava com a saúde também de sua mãe, a avó dele ele, a irmã de Dondoga. Ela era idosa assim com seu irmão e tinha problemas de coração. A mãe de ele não queria que quase ninguém soubesse, também por causa de seu marido, o pai de ele. A mãe de ele temia uma tragédia. O caso ou acaso ficou não dito. Entretanto, alguma coisa aconteceu porque o tio de ele nunca mais voltou. O mundo de ele mudou, ele deixou de ser criança aos 9 anos. Alguma coisa tinha mudado dentro de ele, por que não era mais o mesmo. A visão do mundo passou a ser mais real, crua e latente para ele. Com certeza as direções de sua vida divergia das quais ele tinha imaginado e desejado as estrelas no seu aniversário, meses antes.
            Mais tarde, ele conheceu o sexo. No mesmo ano, ele brincando porque sempre foi muito elétrico e curioso, encontrou na caixa de ferramentas do pai uma revista. Aquele tipo de revista que assim como o filme já começam na cena. Imagens e pessoas de diferentes cores e gêneros, da mesma forma como ele quando estava no banheiro tomando banho, unidas de uma maneira avassaladora como se fossem peças de lego. Aquelas imagens nunca saíram da mente de ele. Eram fortes, ele descobriu o universo distorcido do sexo. Seu coração agora batia intensamente e seus olhos tinham os brilhos errados. Ele nunca mais foi o mesmo.
           Anos se passaram. Viajem de férias em fevereiro roxo de Carnaval. A família de ele e outras famílias de amigos viajaram juntas, alugaram uma casa de veraneio com jardins cheios de piolhos de cobras e baratas. A noite tinha grilos falantes praticamente. Ele se sentia estranho e, ao mesmo tempo, entusiasmado com o próprio corpo. No banheiro, ele fazia manobras com partes de si mesmo como nunca tinha feito. Ele não entendia a significância daquilo, não sabia porque fazia, só fazia. Algo saia de ele, era uma sensação prazerosa, estranha e desconexa. Ele olhava o que saiu e voltava a fazer.
          Meses depois ele estava na escola. Tinha alguém ali que marcaria sua vida para sempre. Não era uma garota do 4 ano como aquela de cabelos cacheados e pinta perto dos lábios que era a coisa mais linda. Tampouco aquela outra cacheada do ano anterior que sumiu no mundo e que me lembrava Débora Secco. Débora Secco do nordeste. Também não era um amigo, colega, professor/a e brinquedo. Do mesmo modo, não era nada bom. Era um zelador. Roberto. Ele gostava dele. Ele buscava inconscientemente homens que lhe servirá como pai. O seu era distante, trabalha muito, não que fosse um relapso ou irresponsável.
           Ele gostava de Roberto. Roberto era engraçado. Contava piadas e todo mundo ria. Todo mundo amava Roberto. Ele também, mas temporariamente e saberia depois. Ele conversava com Roberto, riam e se divertiam. Um dia ele estava na escola pós-aula. Fim de tarde, ele foi ao banheiro e lá estava Roberto. Calças abaixadas e pênis ereto. Roberto não era mais aquele Roberto. Parecia uma estátua, homem possuído e inigualável. Ele ficou sem graça, sem entender e recebeu aquela situação com uma naturalidade porque o pior estava por vim. Passou por Roberto, foi ao banheiro, urinou, fechou o zíper, deu descarga, fechou o boxe. Roberto tinha mudado de posição. Agora estava vestido com as calças, porém, seu órgão continua enrijecido. Roberto não falava, não tinha voz.
       Semanas depois, ele e Roberto viveriam o ápice. Novamente, escola vazia, fim de tarde e ele esperava seus responsáveis lhe buscarem, seu outro tio confiável desta vez. Ele subiu para o andar de cima, sem entender e colocar maldade em nenhuma situação. Roberto foi atrás de ele. Trancou a parte da escola em que ele estava. Ele lembra das grades que os cercaram, era verde. Ele estava na varanda esperando seu tio e Roberto chegou ao seu encontro. Só estavam os dois. Então Roberto diz:

— Então, vai rolar? (Roberto) 

— Oxé! Rolar o quê? (Ele)

— Você sabe… (Roberto)

— Eu não sei, Roberto! (Ele)


         Mentira, ele sabia. Ele soube naquele momento o que iria rolar se tiver ficado ou dito sim, que era o que Roberto almejava. Bateu uma intuição e ele praticamente gritou se afastando de Roberto:

— Roberto, vou embora sozinho mesmo! Não vou esperar meu tio, vamos abra lá em baixo que minha namorada está me esperando. (Ele)

        Ele Mentiu, ele não tinha namorada, bem que ele queria uma naquele momento. Contudo, para enfrentar Roberto, era instância de vida e segurança que ele tivesse uma namorada. Ele desceu as escadas do local da varanda correndo, fingindo calma e controle da situação. Fingira que nada de ruim acontecera. Roberto demorando veio atrás de ele e abriu o portão. Ele foi para casa sozinho naquela tarde e encontrará seu tio no meio do caminho. Não disse nada, fingiu que nada ocorreu. Na verdade, ele nunca falou para ninguém o que aconteceu. Como seu tio Dondoga que nunca mais apareceu, Roberto também sumiu dias depois e nunca mais foi visto por ele. Julgo que morreu como Dondoga. Dizem que “quem não é visto não é lembrado”, mas essas duas figuras nunca saíram da mente de ele e lhe perturbaram durante anos e mais anos.
     Ele cresceu, viveu e continuou tentando fazendo isso. Muita coisa aconteceu na vida de ele. Mudança, memorias e sentenças. Ele passou a entender algumas coisas, outras não e parece que ficaria a vida inteira tentando compreender essas coisas. Aparentemente com as notas iniciais de um piano, ele apesar dos traumas, não teve grandes problemas para lidar com eles. Não virou um rebelde sem causa, não teve síndrome do pânico, tendências abusivas e preocupantes. Ele voltou a escola, fingiu que nada aconteceu, saia para a rua, brincava e ria como antes, só que sem Robertos, Dondogas e outros. Porém, ele mesmo adulto, carrega em si as marcas desses e muitos outros episódios. Ele tem problemas, todo mundo tem. Ele tem questões que precisa enfrentar, lidar, trabalhar, mudar. Ele tem sequelas, razoáveis, mas sequelas. Ele existe?