O som

Acordou cedo com um irritante ruído.

— Que merda é essa! Exclamou.

Girou seus olhos embriagados de sono pelo escuro do quarto até encontrar o despertador. Tinha certeza de que o som vinha dali. Bateu em todas as teclas do aparelho, mas não teve êxito em desligá-lo. Possuído pelo ódio arrancou-o da tomada e atirou-o longe. Repentinamente ouviu a voz da esposa.

— Por que você está assim? O que foi que...?

— Essa zoada que não para, de onde vem?

— Justo hoje, justo agora...!!!

Não entendeu muito bem o que quis dizer a esposa. Sua voz se desfazia no fim das frases. Também pudera, era muito cedo e ele não tinha as ideias bem definidas, e ainda havia o som. O barulho ao seu ouvido era realmente a única coisa que atraia a sua concentração.

Levantou e andou pelo quarto procurando a origem do som que o atormentava. O ventilador, não. Alguma porta rangendo, não. Alguma torneira pingando no banheiro, também não. Ignorou o som por alguns instantes enquanto escovava os dentes e assim o som diminuiu, mas não parou. Onde estaria a mulher agora? O cheiro de café entrando no quarto a denunciava. No trajeto entre a quarto e a cozinha ele olhava para os lados. Talvez algum aparelho estivesse enguiçado e produzindo o tal ruído. A TV estava desligada. O DVD também. Olhou o aparelho telefônico e nada. Nesse momento deduziu o que era e deu um grito entusiasmado.

- O celular! Deve ser alguém ligando para mim. Uma emergência, seguramente, afinal, a essa hora da manhã. - Concluiu.

Correu de volta para o quarto e vasculhou os bolsos do paletó. O aparelho estava lá, mas não havia tocado.

- O da minha esposa então.

Virou a bolsa da mulher sobre a cama e espalhou as coisas dela. Encontrou o segundo aparelho que também havia permanecido mudo.

- De onde vem esse bip que não para? Lamentou

- Como você está papai?... Perguntou o filho que surgira de repente a suas costas

- Não muito bem, estou ouvindo um som que não para, está me tirando do sério. Será que não é nada no seu quarto?

O filho não respondeu. Nem estava mais lá. Era cedo de mais para querer a atenção de um pré-adolescente.

Foi até a cozinha e lá encontrou a esposa. Já estava arrumada.

Seu colo exalava um suave perfume. O perfume o fez lembrar de seus primeiros anos de casado e sentiu-se feliz. Elogiou a formosura da mulher diante de seus olhos. Ela parecia outra vez com vinte e poucos anos. Há muito tempo ele não se sentia assim diante dela, mas depois voltou a perceber o ruído e perguntou irritado.

- Você não está ouvindo esse som, esse ruído... como uma campainha, algo eletrônico, sei lá.

- Não...

- Ele não confiou na resposta da mulher. Ela sempre se enganava e esquecia onde guardava suas coisas. Poderia estar caducando... Levantou-se em um salto.

- Já sei! O alarme do carro!

Correu em disparada pela casa em direção à garagem pensando que um ladrão estivesse tentando roubar seu veículo. Nem se deu conta do perigo que seria dar de cara com um ladrão se realmente estivessem roubando seu carro. Mas estava. Tudo em seu lugar. Foi até o lado de fora para ver se não era o alarme do carro de algum vizinho. Também não era. Voltou para dentro de casa e só então notou que sua atitude havia tirado todos da cama. Filho, filha e esposa perguntaram para ele.

— O que você tem? O que está acontecendo?

- Não é nada, está tudo bem. - Nunca gostou de dar muitas explicações.

A esposa falou em médicos.

- Não gosto de médicos. Mas em último caso... Agora deixa eu me arrumar que tenho que ir ao trabalho.

No caminho até o escritório o som persistia, às vezes ele nem se dava conta do que estava ouvindo, mas estava... Passou todo o dia assim, e aquele ruído foi deixando-o cada vez mais irritado.

Continuava achando que algo perto dele estava produzindo o som. Não conseguia se concentrar diante do computador do escritório e em certo momento imaginou que vinha dali (a origem) do maldito bip-bip. Em um surto de loucura esmurrou a inocente maquina. Todos no escritório vieram ver o que tinha passado.

De repente só percebeu muitas vozes dizendo:

“Vá ao médico”, vá ao médico, médico, médico…”

E lá estava ele diante do Dr. que com um tipo de lanterna ao seu ouvido dizia.

- Eu não vejo nada aqui.

Ele não confiava no médico, achava-o com uma aparência gozada. Tava mais para palhaço do que para médico. Quando menos esperava viu a esposa e os filhos lá, não conseguiu entender, por onde haviam entrado. Eles perguntavam ao médico:

- Ele vai ficar bem?

Não ouviu resposta.

O doutor se aproximou e pediu que ele descrevesse com detalhes o som que ouvia

Ele concentrou todos os seus esforços nisso porque já não conseguia manter uma linha de raciocínio devido ao tal ruído.

— Não sei bem ao certo... É tipo um sinal... um aviso... uma campainha, ou um bip, ou um celular ...

- É um zumbido? Perguntou o médico.

- Não, é tipo eletrônico, elétrico... Não sei. Só sei que toca e para, toca e para, alto e baixo é terrível, vai se tornando mais alto e mais importante que todas as coisas é um bip...bip...bip...

O médico fez uma cara de quem não poderia ajudá-lo. Ele entendeu e desesperou-se.

— Será que estou ficando louco? Alguém me ajude.

De repente outro paciente que dividia a enfermaria com ele disse:

— Eu sei o que é. É a máquina.

O paciente era transfigurado, parecia irreal, louco, mas era o único que falava com convicção.

- Que máquina infernal é essa?

- A máquina que fica na cabeça da gente e no corpo, a maquina que sabe o que está passando com você.

Eu não quero nenhuma máquina na minha cabeça.

- E como faço para esse som parar?

- Só desligando a máquina.

— Como eu desligo! Gritou desesperado. - Não aguento mais esse som!

- Você não pode desligar, tem que pedir para outra pessoa fazer isso por você

Voltou-se para o médico e pediu:

- Desligue

- Eu não posso.

Agora os filhos.

- Desligue vamos! Ordenou.

- Não papai. Choravam.

Os colegas de trabalho estavam todos ali.

- Desliguem, desliguem a máquina do som pelo amor de Deus, eu não suporto o ruído.

- Não podemos, não podemos.

Correu desesperado batendo nos corredores sem saber onde estava. Até alcançar a rua onde encontrou a esposa e seus pais que ele não via a muitos anos.

- Desliguem: soluçou em prantos.

- Nos vamos desligar e você poderá ir com seus pais

Fechou os olhos e não viu mais nada.O bip-bip tornou-se um som longo e uniforme como uma reta

- bip-bip bip-bip biiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii